Tradução e apresentação de Floriano Martins
Costas Reúsis (Constantinos Papazanasíu) nasceu em Atenas (Grécia, 1970). Procedente de Tymvo, região tomada pelos turcos, em Mesaoria (Chipre), reside em Nicosia. A crítica o considera um dos mais importantes poetas gregos da atualidade. Em minhas conversas com ele cuja prosa poética possui imensa afinidade com o ambiente mágico e de livre associação do Surrealismo, eu lhe indaguei sobre o movimento Facção Irreal Nico©ia, por ele fundado em 2005, do qual sempre foi o único membro. Reúsis então me disse: Elaborei exemplares impressos de minha obra e levei a cabo outro tipo de ações poéticas, assim como também organizei uma série de leituras de poesia, sempre em Nicosia, expondo e mostrando ao público o papel oportuno que representa o recitador no enterro da Poesia. Seguimos conversando, ele me disse que não gostaria de falar de sua poesia, pois se sentiria mais à vontade com a total ausência de informação a seu respeito que ele poderia dar ao leitor. Também me disse que considera o surrealismo uma fonte de descobertas de novas trilhas para sua poesia. E sugeriu a leitura de um livro: La irrealidad submarina (1993-2015), antologia de sua poesia, publicada na Espanha em 2017, edição bilíngue na tradução de Mario Domínguez Parra. Os poemas que traduzo agora foram possíveis graças ao auxílio da tradução de Domínguez Parra e minhas conversas com Costas Reúsis. O tradutor observa que: Uma das principais influências que estes poemas exerceram sobre mim foi a possibilidade de traduzir vários poetas bem distintos entre si, condensados em Costas Reúsis, admirador e praticante ele mesmo das vanguardas. Outra, a enorme dificuldade de alguns desses poemas, sobretudo aqueles escritos em prosa. Quando alguém, como tradutor, acredita haver superado essas dificuldades, a felicidade se vê refletida nos textos resultantes. É bem verdade o que comenta Domínguez Parra, a prosa poética de Reúsis traz em si uma síncope perene, não tanto pela ausência de pontuação, mas pelo modo como engata frases e imagens, o que lhe torna bastante peculiar. Abraxas
OBRA
– Camaleón, Atenas, 1995, 2000.
– Feuille Volante de irreal atrevimiento, ediciones Τυφλόμυγα, Atenas, 2008.
– El cráter de mi risa, ediciones Φαρφουλάς, Atenas, 2009.
– Quilla (poemas 1993-1997), ediciones Φαρφουλάς, Atenas, 2012.
– Narikaté-Una mujer que no existió, ediciones Φαρφουλάς, Atenas, 2013.
– Un hacha se asienta-Sobre la garganta de la mujer abrecartas (73+14+3 poemas sky high), ediciones Φαρφουλάς, Atenas, 2015.
– La irrealidad submarina (1993-2015), antología bilingüe, traducción de Mario Domínguez Parra, ediciones de La Isla de Siltolá, Sevilla, 2017.
– Trizas (Poema para 12 Horas & 3 Voces), ediciones Αιγαίον / Κουκκίδα, Atenas / Nicosia, 2018.
– Sollozo desafinado [versos torpes], incluido en el tomo, En el cresol [Cuatro cómplices], ediciones Τυφλόμυγα, Atenas, 2019.
Ascensão do Asno
um sapatinho ortopédico percorre sua educação ufano vivo descobre o que a ferida de um antropoide produz perdendo azeites peidando volatilizações desvirginando funis onduladas uniões de nervos o assento desata o voo realizando traslados um banho turco um invisível dervixe uma ducha em construção uma excursão de sexo demente e todo o mais verde replicam ao bárbaro um prado vestido de primavera luta por respirar no território nacional de um mortal todo o oculto restabelece uma assembleia assassina pensão dos calçados da expedição mascaradas escavadeiras jogam escombros na memória da palmeira destruindo a existência daquele que apareceu com a forma pobre de um ser humano o condutor do tratou lançou o fluxo da absoluta necessidade o foguete desde o começo planejou a cor do mundo servindo o enigma do rombo um esquema chega para virar ao contrário o século da galopante sagacidade[1] na anarquia do cruzeiro avance uma forma aristocrática de mulher vista morta a míngua da riqueza emergentes complexos impulsionam a vida microcosmos na alquimia universal da noite dominando o parasita pendente oniricocina algo
Estacionamento na Eternidade de uma Semana
a confusão da borboleta penetra na insônia de uma repetida tormenta preservando as características de uma jovem morena vestida de negro tudo o que não a havia admitido se desveste o infranqueável pronunciando uma dor recente na sala de cirurgia da aparição da insólita cavidade segundo som lateral indicativamente riscando uma nova consolidação imaginativa reunião de vagabundos facciosos que ladram o universo amanhece no Encédalo suboficial encarregado da comunicação por sinais da espécie sempre ondulando desencrava o corpo oferecendo reverência com escassa apólice o do jejum florescido comportamentos humanos não comentados preparam a descida ao Hades sudário regressa com as mãos nos bolsinhos fantasmáticos perplexa ocultamente a morte julgou a vida obedece à antecâmara de uma semelhante situação as apostas herdam a absoluta hípica antropófaga o amor se enfia em nossos lugares
Estrutura de Fantasmas Heréticos
a discórdia opera centrando vespeiros na fundação da utopia da colônia equipe de sujeitos suspeitos traslada o sacrilégio comportamentos celestes coletivos observam a inútil bifurcação emite com um corte de mangas acampando em uma sociedade irreal onde a morte ai de mim tem senhorio[2] um silêncio tagarela continua se arrastando no ridículo do corredor vazio um peru machão congela pronto para ser quebrado como um melão sopapo acalmando a vista no pesadelo das visões censuradas bárbaras hinários bizantinos condenam ao ostracismo a humildade da sabedoria da ateia continuando o sanguinário sermão do sultanato dos cruzados ou quando a corista do pimentão se converte em fantoche do norte[3] degolando com pegadas a parcimônia exterminadora do arrecadador suado
Quatro Meses
à direita a boneca russa à esquerda o pavão o pelicano de Singapura considerou os abridores de cartas assim como os cornos colocou algo mais perto da nuca no centro o ocidente com o tigre de cristal como base oh que puteiro que cheiros olha também a viadagem de pernas abertas o cavalo ssss que a chuva varra a areia o jasmim o jasmim que se encontrou cheio de merda de pó no pó voo como se namora um zangão é e não é e por casualidade uma mulher gesta por esporas o escrivão o mal poeta do sol pacificado mandato que em meus domínios tange love will tear us apart[4] obsequia obsequia obsequia e almas colheita quando a beleza beijou a aurora except the sight of dust[5] a desejo outra vez a desejo sua xotinha morena que com loucura busquei minha língua mágica ágil para habitar uma canga com os quatro répteis tornado cortina teimosia ípsilon que por casualidade possui é estreita plena corta flexível que arribou desde Hermione da beta que provou pela primeira vez a salubridade buscas a caneta a esponjinha da orelha no chão e dentro daquele tímpano ondeia abrindo a cavidade a água passagem para marchar nadando as vísceras as vísceras nadando e nadando outra vez delas teve cuidado e denunciaram coisas não midas o contrário ao contrário o que quer que se abra para caminhar é terra firme este calor que aguarda
O Exército de Arquíloco[6]
diante do cheiro de bílis me ajoelhei todo o humano que regressa palavra fluída passo da escuridão ou luz do mundo a de mais além se ajustando o terror entardece o horror exposto ao sol passos sujos erotismo ilegal figuras desbocadas do quarto ao lado com velórios extravagantes saciando a sede anarquicamente o broto selvagem jardineiros hermafroditas com a responsabilidade de uma semente de barricada perseguindo a fé com um lápis carregado conjeturando continuam até invisíveis trincheiras de almas violadas assim os subversivos gestos nas masmorras de seus antepassados fazem pedacinhos sua iniludível perda a degradação que pediste queima o homem na solidão um sinuoso plano rodeia a loucura por conhecimento com frequência regresso carrancudo ou afetado tenho careta e jamais me escondi de ninguém em vosso teatro de trapaceiros me oponho proferindo sandices
O Enigma do Anátema
na espuma da necessidade do declive cervejeiro admiro o galope do morcego anunciando fanfarronamente a primavera da noite que esbofeteia a caminho rasgando como taquicardia verborragias de realistas e de outros sacrílegos arrivistas que não opinam que o bando de pássaros encare vaginas gorjeando a morte de um dia literalmente galante com o comportamento de Karaguiosis[7] de forma irrealista banhando amados particípios nas seleções musicais de pintores de desenhistas na rede de sobrenomes de clandestinos de plástico tudo o que colide em um segredo não-transmissor decifra a inspirada navegação de murmúrios extra-sensoriais uma vez que o significado de um silvo pressupõe a duração e não a apressada migração ou o regresso turístico
O Resplendor Empoleirou-se Constelação
no osso que não necessito nomear se executou o orgasmo do infrutuoso esforço infrutuoso das cerejas tudo o que pesou o fruteiro numa bolsinha de papel foi necessário o atraso da pré-história para que de repente se julgue a conversão à nova moeda conduz os cambistas de sentimentos o incesto meio-ambiental fabricado do preço da perda do benefício a trinitária foi derrotada pela planta por causa do peso dos corpúsculos no universo o argênteo navegante acompanhava a armada estelar no planeta com os obséquios dos iniciados ou diques pressentidos
Os Ciclâmicos de Narikaté
um gesto noturno intervém oferecendo a terna rasteira no caminho de um escritor apontado comovido tentáculos de infinitos versos repetem as letras em dribles de perspicácias gregas da época da aterrissagem retilínea até a curva de uma ou da ômega o mar enfeitiçava com ondas esse final
Escritura Ébria
nos piores instantes baixando a cabeça deposito o olhar bárbaro rastreando o desalmado da existência centrando o ídolo encerrado de uma mutável falcatrua aclaro o indizível que tropeçou para que não te maravilhasses com as visões para ofertar dentro do poema indo te encontrar com a morte com o sonho com versos úmidos recentemente cortados do jardim que abriste e que te pertence de maneira não ortográfica vejo o mundo me mantenho afastado dos céus tão próximo dos comportamentos de pessoas às quais amo com loucura arranhando letras mão endemoninhada conduz as palavras aos pedacinhos
Os Rostos de uma Paródia
dedicado ao poeta Mijalis Pierís
cidade suja orgulhosa de suas vísceras estropeada da mulher púbis que ressecou os humores de quem pedirás selvagem o herdeiro retrocede para que dentro dele saúdes o vento nervosamente deixando letras palavras incoerentes esquizofrênicos assassinos se encontram com poetas esquizofrênicos nos santuários de um bordel cirúrgico de uma grande puta que de repente é a sua mãe que leva posta roupa velha de outra festa cheirando a libertinagem sangue de um leitão imolado podridão de um dente molar no funeral do doce dentista terapeuta todos os gritos que vêm na sequência trazem a mandrágora que trata de saborear um nervoso vendedor de coplas um pouco antes do suicídio de sua idade de repente mortal o verão brinca até o poema e ofegante desperta mulheres que passam apontam corretamente fazendo saltar pelos ares o objetivo no centro círculo em com círculo a cauda do veranista
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Notas do tradução
[1] As palavras em itálico pertencem ao poema “O íntegro senhor Aléxandros”, de Nikos Karusos (1926-1990), exatamente a seu livro Semelhança coberta por ervas daninhas (1974).
[2] Estas palavras em itálico provêm do poema de Dylan Marlais Thomas (1914-1953), “And death shall have no dominion”, de seu livro Twenty-five poems (1936). Para o espanhol foi utilizada a tradução de Esteban Pujals (Poemas 1914-1952, Visor, 2001).
[3] Estas palavras em itálico provêm do poema Amorgós, de Nikos Gatsos (1911-1992).
[4] Título de uma canção de Joy Division (N. do A.)
[5] Verso da letra de uma canção do grupo psicodélico dos anos ’60, dados desconhecidos. (N. do A.)
[6] Arquíloco de Paros, poeta grego. A seguir traduzo um resumo biográfico de H. D. Rankin: “Era o filho de Telesicles, que fundou uma colônia em Paros, e sua mãe era uma escrava. Ele ficou decepcionado pela possibilidade de se casar com Neobule, a filha de Lycambes. Possivelmente propiciou que alguns membros de sua família se suicidassem por causa de suas sátiras. Meteu-se em política e na guerra. Morreu em campo de batalha. Disse muito de si mesmo e de sua própria vida em sua poesia. Levou uma vida errante. Em ocasiões atuou como soldado mercenário. Viveu durante o século VII a.C.” (vid H. D. Rankin, Archilochus of Parus, New Jersey, Noyes Press, 1977, p.10). Segundo Rankin, sua obra fragmentário “é suficiente para assegurar a alta reputação de seu gênio na antiguidade” (op. cit, p. 85). No livro Líricos gregos arcaicos (Acantilado), do tradutor, ensaísta e filólogo Juan Ferraté (1924-2003), é possível ler uma seleção de poemas traduzidos de Arquíloco. (NTE – Nota do tradutor espanhol)
[7] Personagem principal do teatro de sombras grego. Também significa, metaforicamente, “palhaço” ou “faz-me-rir” (NTE)
Floriano Martins (1957). Poeta, ensaísta, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Estudioso do Surrealismo e da tradição lírica hispano-americana.