10 Poemas de Hans Arp (Franco-Alemão / 1886-1966)

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Apresentação e tradução de Floriano Martins

HANS ARP (1886-1966) foi poeta, ensaísta e artista plástico, ligado tanto ao movimento Dadá quanto ao Surrealismo. Sua obra, sem importar a região em que se manifeste, estava sempre possuído por um fino e exuberante sentido de humor. Como bem observou Marcel Duchamp, seus poemas despojaram o mundo de suas conotações racionais para alcançar o sentido mais inesperado por meio da aliteração ou do simples despropósito. Não estaria de mais dizer que Arp pode ser considerado um dos mais autênticos e relevantes poetas do Surrealismo. Bilíngue, escreveu tanto em alemão quanto em francês. Neste segundo idioma, é autor, juntamente com Vicente Huidobro, em pleno exercício de escritura automática a quatro mãos, de um livro intitulado Três novelas exemplares, cuja tradução ao português foi feita por Floriano Martins e publicada, em 2012, pela Sol Negro Edições.


KASPAR É MORTO

Infelizmente nosso bom Kaspar morreu.
Quem vai agora esconder a bandeira queimada na trança da nuvem diariamente sombria como um truque.
Quem vai agora virar o moedor de café no barril primal.
Quem vai agora atrair a fêmea idílica do saco fossilizado.
Quem vai agora assoar o nariz de navios guarda-chuvas vento-úberes de abelhas-pais fusos-de-ozônio e desossar as pirâmides.
Ai ai ai nosso bom Kaspar morreu. Santa fumaça Kaspar morreu.
Os ruidosos shmarks em dor dilacerante nos sino-celeiros quando seu nome dado é pronunciado.
É por isso que eu continuo a suspirar seu sobrenome Kaspar Kaspar Kaspar.
Por que você nos deixou. Em que forma é que a sua bela alma grande agora vagou.
Você se tornou uma estrela ou uma corrente de água quente em um show-rodopiante ou um úbere de luz negra ou um tijolo transparente ou um tambor gemendo de essência rochosa.
Agora as nossas alturas e os dedos estão secando e as fadas se encontram semi-queimadas na pira.
Agora, a pista negra de boliche troveja atrás do sol e ninguém mais pára as bússolas e os carrinhos de rolimã.
Quem agora come na mesa só com os pés descalços com o rato fosforescente.
Quem agora afugenta o diabo Sirokkoko quando ele tenta seduzir os cavalos.
Quem agora explica os monogramas das estrelas.
Seu busto deve enfeitar as lareiras de todos os verdadeiramente nobres, mas isso não é consolo e rapé para uma caveira.


MEU PRÓPRIO ROSTO

Nas ruas cinzas crepusculares
massas cinzentas marcharam para cima e para baixo.
Elas entoavam cantorias e salmos como samovares.
Eu já não podia reconhecer
quaisquer pormenores.
Em seguida, elas se dissolviam
e tornavam-se um espaço cinzento.
O espaço parecia ser uma passagem, ampla e sem fim
cada vez mais à distância se tornando escura,
afundando no fundo, no interior.
Eu dormi e acordei
e mesmo durante o sono agitado
desembalava ovos cinzas em seus discretos dados cinzas.
Certa vez um ovo caiu de minhas mãos,
despencou no chão e quebrou,
e de dentro lançou uma infinidade de pequenos dados cinzentos
cobertos com sonhos coloridos, brilhantes.
Em um painel de janela escura eu vi meu próprio rosto
pressionado contra o vidro
observando-me com interesse.


PONTEIRO DOS SEGUNDOS

que eu quando eu
um e dois é
que eu quando eu
três e quatro é
que eu quando eu
o que dizer
que eu quando eu
tiques e taques isto
que eu quando eu
cinco e seis é
que eu quando eu
sete e oito é
que eu quando eu
se isto pára
que eu quando eu
se isto for isto
que eu quando eu
nove e dez que
que eu quando eu
11 e 12 isto.


O AR É UMA RAIZ

O ar é uma raiz.
As pedras estão cheias de ternura. bravo.
bravo. as pedras estão cheias de ar.
as pedras são ramos lacrimejantes.
sobre as pedras substituindo a boca
cresce o esqueleto de uma folha. bravo.
uma voz de pedra face a face e pé ante pé
com um olhar de pedra.
as pedras são atormentadas como carne
as pedras são nuvens para sua segunda
natureza danças para elas em seu terceiro nariz.
bravo. bravo.
quando as pedras se arranham elas mesmas, as unhas crescem
nas raízes. bravo. bravo.
as pedras acordaram para comer na hora
exata.


A PLANÍCIE

Eu estava sozinho com uma cadeira em uma planície
Que se perdeu em um horizonte vazio.

A planície era perfeitamente pavimentada.
Nada, absolutamente nada, mas a cadeira e eu
estávamos lá.

O céu era sempre azul,
Nenhum sol deu vida a ele.

Uma luz, inescrutável insensível
iluminava a planície infinita.

Para mim este dia eterno parecia ser projetado –
artificialmente – a partir de uma esfera diferente.

Eu nunca tinha sono ou fome ou sede,
jamais quente ou frio.

O tempo era apenas um fantasma obscuro
uma vez que nada aconteceu ou mudou.

Em mim o tempo ainda viveu um pouco
Isto, principalmente, graças à cadeira.

Por causa da minha profissão com isto
Eu não perdi
completamente o meu sentido do passado.

Agora e então eu disparo, como se fosse um cavalo, para a cadeira
e trota ao redor com ele,
às vezes em círculos,
e às vezes indo para a frente.

Eu suponho que eu consegui.

Se eu realmente consegui eu não sei
Pois não havia nada no espaço
Que me permitisse verificar meus movimentos.

Enquanto eu me sentei na cadeira pensei, infelizmente, mas não desesperadamente,
Por isso que o núcleo do mundo exsudava tal luz negra.


MANCHAS NO VAZIO (fragmentos)

a idade vive de cabelo em cabelo
através do ar que ficou órfão
vive como um ovo
que choca frutas
sobre uma corda estendida entre duas asas
o ar tem a idade das asas
as frutas nascem das asas
as folhas das asas sangram
sobre as caldas do ar

***

cabeças de mortos
que brilham como sóis
giram sedentas até a fonte do vazio
desdenhadas pelos patos avaros
os mamões glutões
e os e etc


as paredes são de carne humana
os fungos têm voz de trovão
e hasteiam espadas enormes
contra os ratos ancestrais
que possuem dentes de elefantes

***

as tetas de porcelanas se balançam
sobre alguns trapézios
entre ramos de gravatas
enquanto as estrelas cochicham
e voam de fruta em fruta

***

o fim do ar
e o fim do mundo
são redondos como globos
mas enquanto o fim do mundo
está sentado em sua cadeira dobrável
o fim do ar salta
de uma árvore de torneio
até uma jaula vazia
que esvoaça no branco


PRAÇA BRANCA

esta manhã coloca em meu caminho
apenas o bibelôs da morte
os sinos tocam anos em cada minuto
passam anos que têm leques de formigas nas cabeças
passam anos que têm focinhos vegetais
e barbatanas de gênio
passam anos que afugentam anos pequenos

a luz da arte fala do suicídio delicioso
fecho os olhos e me encontro na praça branca
a água da praça está agitada
ondas enormes se precipitam sobre as casas
e arrancam os lábios
que os pássaros colocaram nas janelas
abro os olhos
as crinas brancas se põem a voar
sonhadores de mãos dadas como os cegos
atravessam a praça
o vento acaricia as plantas domesticadas
fecho os olhos
é de noite
de imediato me desperto na noite
os pássaros cantam
é de dia
montanhas líquidas flutuam no ar
abro os olhos e durmo de pé na praça branca
a umbela das estrelas se cobre de lábios


COLMÉIA DE SONHOS

as flores se vestem com relâmpagos
na plumagem da estrela dorme o sonho de carne guarnecido de seios
o sonho tem na boca uma estrela como o gato tem na boca um rato
as flores de carne têm língua de sonho
estrela de bruma

a estrela de carne sob a abóbada do tempo
o tempo ronrona como um sonho
ao redor dos seios ao redor das colméias de sonhos dormem as estrelas
bruma de flor
plumagem de estrela
as flores ronronam

as estrelas ronronam diante da colméia dos relâmpagos
rato de bruma
rato de estrela
rato de flor
o sonho é um gato sua língua é uma flor

a carne ronrona na plumagem do tempo
os ratos e os gatos dormem sobre a língua do tempo
o relâmpago dorme sob a abóbada de bruma
as estrelas se vestem com seios
a língua de bruma na boca de flor
a boca de bruma sob a abóbada de carne


O PAI, A MÃE, O FILHO, A FILHA

O pai se pendurou
no lugar do pêndulo.
A mãe está muda.
A filha está muda.
O filho está mudo.
Os três seguem
o tique-taque do pai.

A mãe é ar.
O pai voa através da mãe.
O filho é um dos corvos
da praça São Marcos de Veneza.
A filha é um pombo correio.

A filha é doce.
O pai come a filha.
A mão corta o pai em dois
come uma metade
e oferece a outra a seu filho.

O filho é uma vírgula.
A filha não tem rabo nem cabeça.
A mãe é um ovo esporeado.
Da boca do pai
pendem rabos de palavras.

O filho é uma pá estropiada.
Por isso o pai se vê obrigado
a trabalhar a terra
com a língua.
A mãe segue o exemplo de Cristóvão Colombo.
Caminha sobre suas mãos desnudas
e pega com seus pés desnudos
um ovo de ar após outro.
A filha repara o desgaste de um eco.

A mãe é um céu acinzentado
e abaixo muito abaixo se arrasta
um pai de papel secante
coberto de manchas de tinta.
O filho é uma nuvem.
Quando chora, chove.
A filha é uma lágrima imberbe.


SOFIA

Qual era teu sonho
quando deixaste esta margem?
Sonhavas com uma balsa de estrelas à deriva,
sonhavas com abismos de candura?

Separaste as esferas intransigentes
para tomar uma flor.
Eras o eco de um mundo de luz.

As borboletas representam uma cena de tua vida
que mostra o despertar da aurora em teus lábios.
Uma estrela se forma seguindo teu desenho.

A cortina do dia cai para ocultar os sonhos.
És uma estrala que se transforma em flor.
A luz desliza sob teus pés
e asas radiantes te rodeiam como um cerco.

A flor se balança em suas asas.
Ostenta uma jóia de orvalho.
Sonha com uma lágrima de sutileza.
Seus beijos são pérolas.

Ela desaparece, desaparece
em suas própria luz.
Ela desaparece, desaparece
em sua pureza, em sua doçura.

Sonhaste sobre o índice do céu
entre os dois últimos flocos da noite.
A terra se cobriu de lágrimas de gozo.
O dia despertou em uma mão de cristal.

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