7 Poemas de Jules Morot (Loite, 1973)

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Tradução de Nicolau Saião*

Jules Auguste de Minvelle Morot nasceu em 1973 em Alc-le-Courtnay. Poemas dispersos em jornais e revistas, nomeadamente interactivas, depois agrupados e dados a lume sob o título “Le mardi-gras” (alguns dos quais saídos em Portugal na “DiVersos – revista de poesia e tradução”. Em prosa deu a lume “La chambre engloutie”, relatos e reflexões novelizadas de que extractos saíram na Agulha Revista de Cultura, dirigida por Floriano Martins. Licenciado em biologia marinha, exerceu o professorado. Depois da morte de seu pai tomou conta do ramo (criação de vinhos) em que sua família fez tradição.


MOZART

Lêem-se os gregos
suecos, alemães
ou a doce língua
de não sei quantos
de não sei que imóvel pedaço de página
claves de sol
talvez o latim o alano o islandês
e é sempre a mesma música
sempre como um veio numa flor grossa obscena
Diz um um alfinete diz outro
um parafuso
pois sim
uma fina difusa coisinha semimorta
semi-deitada
semi-cerrada
uma inteligente coisa muda
maior que um tiro na orelha
pois não
uma espécie de porta
de dor discreta.

Meu bom senhor
olhai
nos prados nas tabernas
nos ermitérios
nos armários
um rasto de cão

Nos óculos do primeiro violino
tudo desaparece.

Tendes vós sono, desejo
de novas estações? Tendes florins?
Tendes, acaso, em dias
já passados
mãos musicais, sinais
de outras mortes?


O URSO GANIMEDES

Ele levanta-se
coitado dele
e nós sentimos aquele arrepio inquietante
da sexta-feira ligeiramente escura
Cristãos comunistas desportistas consumidores de alcachofras
e mesmo outros de crâneo em silhueta contra a luz da lua
no meio do frio glacial do continente antártico
se bem me entendo financistas agentes de câmbio
comerciantes ruidosos alunos de artes polícias
personagens que fazem navegar os barquinhos nos tanques dos seus
jardins da infância
Velhos capões
Notamos dizia eu ou melhor notam vocês os que
ainda por aí têm sonhos
a sua poderosa silhueta de comedor de bagas de zimbro
de fruta da época se a conseguia apanhar
de uma perna descarnada de montanhês
nos tempos da grande solidão feliz

O urso que outrora ia de Somner Valley a Livington pelo meio
das gramíneas das faias das nogueiras até às primeiras encostas
da grande montanha verde e negra

*

O meu urso
suave como um lilás
como um carvalho das Ardenas
sem saber ler sem saber escrever
O de muito perto da terceira subida nas Rochosas
ou mesmo da quinta ou da sétima
lá onde havia entre os abetos seculares um pequeno
lago sonolento
e se dizia que por ali emigrantes antigos tinham rebentado
no inverno coloquial de Wyoming evocado em Toulouse

Aquela senhora conferencista de boa perna dava-me volta ao miolo
Até me fazia sentir câmbrias

de Santa Fé a Colorado Springs
o meu urso meu é claro ainda que de mil transeuntes contentinhos
Aquele que virando a cabeça erecto nos faz recordar o Quaternário
na sua imensa estrutura de velha fera indolente.

O Ganimedes
calmo empregado entre funcionários engravatados
pensa que pelas ruas faria dar gritinhos às raparigotas sem cuecas
a moda mais na moda de agora imaginem vocês
a sua companheira ursa perdida com a barriga ao léu

*

Ganimedes
No Zoo parisiense ele é um senhor cheio de categoria
mau-grado o seu silêncio habitual
chegam a atirar-lhe maçãs muitos lhe lançam
amendoins ou nozes de Agosto
e avelãs e até um maço de cigarros amarfanhado

O meu urso
Primo do meu primo Ribonard e dum grandalhão
mais tosco que a rocha Tarpeia
taberneiro merceeiro em La Jolle onde eu ia com o tio Lenôtre
comprar botas de caçador de perdizes
de cigarrinho mais que malcheiroso sempre ao canto da bocarra
sempre ensopado em branco e aguardente barata.
Ganimedes

sob o luar e os planetas libertos aguarda o momento de estoirar.


COMOÇÃO DE NATAL

Eu sou um espião mais que perfeito
os olhos as mãos a silhueta
tudo o que fui aprendendo tudo o que esqueci
tudo quanto Senhor vi depois da vossa morte
até as colheres de madeira e o prato grosseiro
ao jantar
ao começo da noite
mesmo as peúgas esburacadas do meu primo
mesmo a camisa esfarrapada do meu pai
os alegres e tristes olhos da minha mãe
e quanto compramos sem pagarmos
e sem um deus lhe pague

Tudo isso guardo no meu coração.

Nas noites nos dias da minha adolescência
quando a meditar me sentava
na pedra pintada de branco
no meio da horta da pequena Armandine
que me ofertava castanhas cozidas quando era tempo de Outono
e me limpava o rosto com um lenço de linho
olhando o meu suor de sangue.

Tudo isso é o meu tesouro
caro Senhor para si e para os vossos anjos
para os vossos assistentes na floresta do céu
para os notários de vosso augusto Pai
sem esquecer o garoto que vós fostes
e mesmo o mendigo que vos ajudou
a montar sobre o burrinho
que vos levou até à porta Susa
naquele dia da Páscoa.

Assim, Senhor, perdoai-me
as minhas faltas
as minhas repentinas alegrias
os meus silêncios estranhos

e todos os poemas que foram só pensamento.


A O. HENRY

Fizera-se-lhe luz no espírito
e ele deu a palmada uma maquia de centenas

O seu botão de colete p’ra nada mais lhe servia
na sua cela ele olhou-o atentamente
deu-se a esse trabalho
erguendo-o entre dois dedos o indicador e o gordo polegar

Cosera-lho nos velhos tempos a mulher
numa tarde feliz de bourbon e de beijocas benditas

Ele desconfia desconfia e todavia
muito ficara por resolver
talvez uns diamantes uns relógios umas correntes de ouro
mas nada lhe interessava já tivera necessidade
de madrigais e de algumas moedas sonantes
E tudo foi simplesmente desta bonita maneira

De muito mais coisas necessitamos nós
os seus velhos companheiros de passeatas por vilas barulhentas
de muito mais necessitamos nós
seguramente apenas pelos tempos sem data marcada

Amor amizade flagrantes delitos de mocidade
de muito mais necessitamos nós

e o mundo chega e apenas traz cotão sórdido nos bolsos.


O BESOURO

Soa lá fora
espalha-se pela casa
no calor das árvores que aguardam
o mais curto caminho
humano na direcção do ribeiro
o besouro o seu som de campainha
de sineta
astucioso repicar e logo
lembranças vagas na tarde
pequeno fio de memória nos nossos ouvidos
e é exacto um esvoaçante ser que em rodopios
perpassa
por sobre os roseirais
a sombra hirta dos sentidos.

Um harpejo
de violinos no nosso olhar reflectido
nos vidros
de hoje e amanhã
Agora um gesto um balbuceio
um simples animal de metal furando a tarde
seguro bem seguro
do seu talento da sua carne temporária
lembrança de céus distantes
de anos repassados de poeira

de roteiros felizes.


PARA GAZA

Gaza a bela, Gaza a pobre
deitada nas mãos obscuras do Hamas
como crianças israelenses nas colinas de Haifa
sem braços sem pernas
mutiladas por um foguete ou um morteiro
de homens que simulam amar Alah

enquanto outros na Europa fingem amar a Cristo
de modo que novamente erigem paredes entre a liberdade
e o sabor de um figo na Samaria ou Palestina.

Eu lamento os teus mortos que o fanatismo desejava
oculto como a mentira entre crianças e mulheres
que comeram o pão e trabalharam nas hortas
e brincavam jogavam fora das madrassas
onde se roubam as palavras de ódio
para que eles então percam as suas almas
sob as bombas dos aviões
para o benefício de Allah, os governantes

Gaza tu serás livre um dia
livre como o ar da floresta
e do deserto

Em tua homenagem eu como este figo humilde
um pobre figo de supermercado
e tomo uma taça de bom vinho
como se honrasse um futuro casamento

de um árabe e de uma bela judia.


O LUTO A ALEGRIA

Os amigos que estão
no seu pé de página
como em caixão florido
pelos tempos futuros
têm de nós o gesto mais perfeito –

um sorriso transido mas mesmo assim
verdadeiro
e muitas mãos para afagar lembranças
e muitos dentes luzindo para criar o verão
e muitos olhos em repouso para dizer que é tarde

e muitos gritos para dizer que é cedo
e que é a hora de acordar
e de dormir porventura
e de bailar entre as árvores
e de correr entre as sombras
e a luz que elas provocam
e de sofrer um pouco
um pouco ainda
como crianças sem remorso sem dor sem amargura
de novo em viagem

sem efígie sonhada
e já desaparecida.


Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Cabral Martins (1950), organizou a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado.

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