Agustín Espinoza (Espanha, 1897-1939) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 35
Organização e tradução de Floriano Martins

Agustín Espinosa (1897-1939) foi o senhor de um castelo de cartas eróticas, o mestre de andanças erráticas pelas ruas de uma cidade imaginária repleta de artifícios sexuais que buscavam a todo custo – um custo mesclado de sátira arruaceira e fina ironia – dessacralizar a realidade de seu tempo. Ele mesmo diria: O que procurei alcançar, acima de tudo, foi isto: um mundo poético; uma mitologia motriz. A minha tentativa é criar uma nova Lanzarote. Um Lanzarote inventado por mim. Seguindo a mais ampla tradição da literatura universal. Lanzarote é a ilha mais oriental do arquipélago das Canárias, uma região repleta de vulcões adormecidos, onde foi morar Espinosa em 1928. A ilha é o cenário imaginário de Lancelot, 28°-7°, guía integral de una isla atlántica (1929), mas sobretudo da novela Crimen, este livro fascinante, novela maldita, provocativa, com que Espinosa inaugura o gênero no surrealismo em língua espanhola. Publicada originalmente em 1929, teve sua tiragem ocultada, em grande parte destruída pelo Franquismo, foi recuperada em 1974, mas somente em 2019 alcançaria uma edição definitiva.


ELOGIO DA PALMEIRA COM VENTO

Bem – palmeira com vento de Lanzarote –; bem.
Tinhas inveja dos moinhos e dos girassóis. Roletas e carrosséis. Dos astros com sistemas e das viagens de circunvolução. Das hélices. Dos discos de gramofone. Das rodas azuis das fábricas. De tudo que gira, de tudo que volteia incansável, tinhas inveja.
Bem – palmeira com vento de Lanzarote –; bem.
E por isto chegaste a Lanzarote, ilha de vento perene: ilha de alíseos. Nela plantaste tua barraca. E agora superaste todas as antigas invejas: dos moinhos de vento e dos girassóis; das roletas e dos carrosséis: dos astros com sistema; das viagens de circunvolução; das hélices, dos discos de gramofone; das rodas azuis das fábricas. És a primeira entre todas as coisas que aprenderam a arte da cambalhota ao redor de um ponto absoluto.
Agora és tu – palmeira com vento de Lanzarote – a invejada. Por tua cor alegre. Por tua honestidade. Por seu amadorístico significado.
Deixas que teus braços verdes girem sob o vento. Exerces uma esportividade pura. És – hoje – a única hélice, o único carrossel e a única roleta que gira apenas por girar.
Bem – palmeira com vento de Lanzarote –; bem.


ODE A MARIA ANA, PRIMEIRO PRÊMIO DE AXILAS POR DEPILAR DE 1930
[fragmento]

Falemos de Maria Ana e suas axilas por depilar.
Falemos também do Destino.
Agustín Espinosa, construtor de esgotos de sonhos adversos.
Agustín Espinosa, colecionador de lírios inumeráveis.
Enamorados de Maria Ana.
Jinetes de seu sexo único.
Maria Ana, vacilante entre os dois Agustins.
Teria de acabar a empresa rompendo amizades, como nas canções antigas: EIS AQUI QUE É TUA A ROSA, VENCEDOR?
Porém deixar 3.114 pelos mal-acostumados, para inventar 489 + 489 pelos esquecidos – para descobri-los – era já coisa de aventuras de agora.
Maria Ana não havia comprado nunca lâminas Gilette.
Maria Ana tinha 489 pelos na concha de cada uma de suas axilas.
E foi o que viram colecionador e construtor de esgotos.
Unicamente por seus próprios ventos eram então um e outro governados.


FAÇANHA DE UM CHAPÉU

Um chapéu era o protagonista deste divino sonho divino inenarrável.

Do andar demasiado alto de uma casa em obras eu o vi caído no meio da rua, esperando firmemente a hora próxima de um encontro exato. Ele estava prestes a perecer várias vezes sob inúmeras rodas de carro. A brisa da noite o libertou de uma ponta de cigarro que havia concluído a perfuração da asa. Uma saliva caiu tão próxima dele, que o salpicou, embora de modo bastante leve. O fino sapato de camurça de uma jovem loira lhe roçou bem levemente, e eu vi o chapéu estremecido até o copo dolorido de um sexo formado como que por associação de úlceras recentes.

Anoitecia, quando surgiu em uma esquina um homem com a cabeça descoberta. Apressado atravessou a rua, e ao passar pelo chapéu se agachou dissimuladamente, o recolheu do chão e o pôs lateralmente em sua orelha esquerda. E logo se perdeu mais abaixo, em meio à multidão constituída àquela hora exclusivamente por funcionários e operários recém-saídos do trabalho.

Saltei até a varanda, a tomei pelo braço, e saímos juntos, sem que uma só palavra se metesse entre nós.

Ele a levava pela mão como se fosse uma menina de seis anos, quando tinha mais de quarenta. Ele a erguia nos bondes sem maior esforço; e a arrastava, mais do que a acompanhava; porque apesar de sua indiscreta obesidade, era tão baixa, que não pesava – ou ao menos isto me parecia – quase nada.

Assim caminhamos por várias horas através da cidade.

Ao final de uma rua, pequena, porém bem larga, que, sobretudo àquela hora, tomava ares provincianos de praça, estava a chapelaria que procurava.

Eu o reconheci rapidamente, por sua cara de suicida e por uma imperceptível queimadura de cigarro junto ao laço. Ela se opunha a usar aquele chapéu de homem, alegando que era um chapéu de homem. Eu tratei inutilmente de convencê-la do arbitrário de uma teoria que queria diferenciar sexos já bem diferenciados. Abusando unicamente de minhas forças, consegui lhe por o chapéu, que, como lhe estava um pouco estreito, congestionava cruelmente o rosto e lhe destacava ainda mais as rugas da fronte.

Eu devo ter lhe causado muito dano, porque ao saírmos da chepelaria ela chorava.

Ao amanhecer do dia seguinte foi encontrado em uma alameda na periferia o cadáver de uma menina de seis anos. Usava um chapéu de homem, preso por um grosso alfinete, que, perfurando seus dois parietais, lhe atravessava a massa encefálica.

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