Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 33
Organização e tradução de Floriano Martins
Antonin Artaud foi poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro. A visceralidade de sua escrita, inseparável de sua própria natureza humana, muitas vezes o levou a ser confundido com um mero anarquista. A relação com o surrealismo consolidou o que ele considerava como uma necessidade de introduzir transformações profundas na escala das aparências, no valor do significado e no simbolismo da criação. Segundo ele, o Surrealismo era antes de tudo um estado de ânimo, muito embora o estado de ânimo de muitos dos integrantes do movimento jamais tenha sido surrealista em essência. Em entrevista que fizemos, Wolfgang Pannek e eu, a Florence de Méredieu, biógrafa do poeta francês, ela observa que seria inevitável o afastamento dele do grupo surrealista. Segundo ela, o caminho de Artaud, cujo percurso se cruzará com as aventuras de muitos outros personagens do teatro, da literatura e do cinema, da psicanálise e da psiquiatria, será de fato envolvido num processo mais individual. Em razão de seus problemas de saúde, problemas com drogas e da errância que não cesserá de marcar seu itinerário. Indagada sobre a singularidade de sua escrita, Florence esclarece: A questão do automatismo e do controle de si mesmo, de seu ser, até mesmo de seu inconsciente é para Artaud uma questão cardinal. Não há um soltar as rédeas em Artaud, que quer controlar tudo, dominar tudo. A questão dos tratamentos psiquiátricos e do eletrochoque encontra-se, portanto, no centro da questão. Na medida em que o eletrochoque traz uma forma radical de soltar as rédeas, entendemos que Artaud vivenciava cada sessão como uma forma de violentação, de desapropriação radical de si mesmo. Daí então o impossível: retomar o domínio. Controlar o incontrolável. Isso será feito pela escritura e pelo conjunto dos pequenos Cadernos do asilo, escritos a toda velocidade, de maneira taquigráfica. E então vemos Artaud praticando essa forma de automatismo e escrita automática que outrora ele havia recusado, mas que se impõe a ele, nesse processo de criação estranho e singular que entrelaça indissoluvelmente o controle e o abandono. Através de uma forma de ressurreiçãocriativa original e singular.
POETA NEGRO
Poeta negro, um seio de mulher
te obceca
poeta amargo, a vida bole,
e a cidade arde,
e o céu se resolve em chuva,
e tua pena arranha o coração da vida.
Selva, selva, formigam olhos
nos pináculos multiplicados;
cabeleira de tormenta, os poetas
montam sobre cavalos, cães.
Os olhos se enfurecem, as línguas giram
o céu aflui às narinas
como leite azul nutriz;
estou pendente de suas bocas
mulheres, duros corações de vinagre.
TEXTO SURREALISTA
O mundo físico ainda está ali. É o parapeito do eu o que olha e sobre o qual restou um peixe de cor ocre avermelhado, um peixe feito de ar seco, de uma coagulação de água que reflui.
Porém algo se passou, de um golpe.
Nasceu uma arborescência quebradiça, com reflexos de frontes, gastos, e algo como um umbigo perfeito, porém vago e que tinha a cor de sangue aguado e por diante era uma romã que também derramava sangue mesclado com água, que derramava sangue cujas linhas pendiam; e nessas linhas, círculos de seios traçados no sangue do cérebro.
Porém o ar era como um vazio aspirante no qual esse busto de mulher vinha no tremor geral, nas sacudidas desse mundo vítreo, que girava em cacos de testas, e sacudia sua vegetação de colunas, suas ninhadas de ovos, seus nós em espiras, suas montanhas mentais, seus paredões estupefatos. E, nos paredões das colunas, haviam sóis queimados aprisionados ao acaso, sóis sustentados por jorros de ar como se fossem ovos, e minha fronte separava essas colunas, e o ar em flocos e os espelhos de sóis e as espiras nascentes, até a linha preciosa dos seios, e o oco do umbigo, e o ventre que faltava.
Porém todas as colunas perdem seus ovos, e na ruptura da linha das colunas nascem ovos em ovários, ovos em sexos invertidos.
A montanha está morta, o ar está eternamente morto. Nesta ruptura decisiva de um mundo, todos os ruídos estão aprisionados no gelo, o movimento está aprisionado no gelo; e o esforço de minha fronte se congelou.
Porém sob o gelo um ruído espantoso atravessado por prepúcios de fogo rodeia o silêncio do ventre desnudo e privado de gelo, e ascendem sóis dando voltas e que se entreolham, luas negras, fogos terrestres, trombas de leite.
A fria agitação das colunas divide em dois o meu espírito, e eu toco meu sexo, o sexo do baixo de minha alma, que surge como um triângulo em chamas.
INSULTO AO INCONDICIONADO
É pela bazófia
a suja bazófia
que se expressa
ele,
que não sabe
senão
colocar-se fora
para ser sem,
com, —
a bazófia
bem estrumada e espelhada
no cu de uma puta
morta e desejada.
Desejada, digo,
porém sem soltar o suco
das esquírolas
brancas, lambidas
(montes de muco,
a saliva)
a saliva
de sua dentadura postiça.
Com a bazófia
é possível livrar-se
dos ratos do incondicionado.
Que não sentiram jamais
que
a não forma,
o fora de lugar
da raiva sem condição,
chamada o sem-condição,
a interferência da ação,
a transferência pro deportação;
o restabelecimento fora do corte,
o corte dos tamponamentos;
finalmente o cimento
no não-fora,
a imposição do afora que dorme,
como um adentro, estourado das latrinas
do canal de onde cagamos a morte,
não equivalem às descamações
da concha de uma jovem morta
quando a jovem que a usa
mija de modo abortivo
sua urina
para atravessar
a sífilis.