Christian Dotremont (Bélgica, 1922-1979) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 22
Organização e tradução de Floriano Martins

Christian Dotremont reuniu em livro seus primeiros textos, sob o título geral de Ancienne étéron, em 1940, tendo chamado a atenção de surrealistas como René Magritte, Louis Scutenaire e Raoul Ubac. Em seguida, ele conheceu Picasso, Éluard, Giacometti, Cocteau e, ao lado de Joseph Noiret, Pierre Alechinsky, Asger Jorn e Karel Appel, acabou formando o movimento COBRA, fundado por ele em 1949. O grupo se dissolveria dois anos depois, porém nada impediu que seus integrantes seguissem buscando novas experiências estéticas. Especificamente no caso de Dotremont, era fundamental pôr em cheque as relações entre palavra e imagem. Ele chegou inclusive a criar o que chamou de logogramas, uma espécie de caligrafia imagética que nos desafiava a uma leitura tão original quanto a sua criação. Em um revelador ensaio, o crítico Pierre Taminiaux, observa dois aspectos muito relevantes, um deles sobre a identificação de Christian Dotremont com o Surrealismo: A referência ao grupo surrealista revolucionário implicava que artistas e poetas como Dotremont permaneceram fiéis ao espírito original do surrealismo, o dos anos vinte e trinta. Este espírito radical e intransigente foi de alguma forma diluído ao longo do tempo para abrir caminho a outro surrealismo, mais estabelecido social ou culturalmente e menos engajado politicamente. Também importa destacar o que Taminiaux disse sobre aspectos polêmicos envolvendo Surrealismo e COBRA: De certa forma, a evolução pessoal de Breton testemunhou uma forma de regressão e até de abdicação que os artistas e poetas de vanguarda belgas recusaram. A sombra do surrealismo permaneceu avassaladora, no entanto, a ponto de rapidamente encontrar muitos seguidores na Bélgica. Em muitos aspectos, deu continuidade à forte tradição barroca e sobrenatural desta cultura, que foi incorporada em particular pelas obras pictóricas de James Ensor e Léon Spilliaert. Esta tradição continha uma ruptura inequívoca com o dogma realista da arte académica clássica. […] COBRA rejeitou de alguma forma a vanguarda cubista e a sua inclinação para o formalismo cerebral, mas também um pintor como Mondrian, em favor de uma espontaneidade reivindicada por cada um dos seus membros. O grupo surrealista revolucionário, segundo as próprias palavras de Dotremont, também fez parte do movimento da frente internacional de artistas experimentais. Sem o sentido de livre experiência não se podia valorizar o acaso, para que assim arte e poesia, linguagem escrita e linguagem plástica, vida e obra, não cessassem o movimento contínuo de integração, de fusão, de modo que o criador é aquele que revela o sentido eterno da própria existência humana.


VELHA ETERNIDADE, V

O que era antes? – um pequeno quarto involuntário onde dormi sozinho – para abrir a claraboia, uma corda estalou – e para abrir minha esperança – o que era antes? – imagine uma estrada ladeada de estradas – com um papel no final. – Eu disse não – no sábado me vesti de homem feliz –, mas era uma roupa alugada – foi muito solitário? – Não menos. – Era muita sombra, era livro, era verso entre prosa; portanto, uma obscuridade – sozinho, meus olhos explodiram de luz – e o que mais? – O invisível.


PETITE, III

Eu disse a ela que ela era linda e que eu estava com sede e que ela sabia me dar de beber.
Ajoelhei meu desejo diante dela e ela o levantou.
Porque nos tornamos dois irmãos em uma aventura maravilhosa.
Havia luzes engraçadas provocando a noite.
E lá estávamos nós entre as árvores e nossas sombras se misturavam atrás de nós.
E tudo o que era dela e meu se misturava como flores diferentes em um único buquê.
As flores que trouxe eram flores malignas, não muito bonitas.
E as flores que ela trouxe eram incrivelmente bonitas, perfumadas e novas.
Mas casamos com nossas diferenças infantis e demos o buquê para nós mesmos.
Ela não disse grandes palavras, mas disse que acabara de ter uma aula de história.


VOCÊ É FORTE?, II

Estava nevando? – Quando ela me escorregou aquele pedacinho de neve, o sol havia se escondido para que nada do nosso encontro derretesse, para que o fogo entre nós acendesse sem ajuda, só por causa do nosso calor, só por culpa do nosso calor. Nosso silêncio, e além disso… – E além disso? – E daqui vejo que estávamos enterrados sob não sei que neve, não sei que céu, sob uma imperfeição ofuscante como espuma, inclinada como o mar, sob o peso terrível do presente. – Mas para que futuro você deu a senha?


AS TRÊS FLORESTAS [fragmentos]

Foi em uma noite de verão que ouvi pela primeira vez a floresta falar, parei para que o som de meus passos – controlei minha emoção para que as batidas de meu coração – não se misturassem com essa voz tumultuada das folhas – galhos esmagados e musgo escorregadio – e pulsante com odores e pássaros – claro no verão, mas sombrio na noite. Mas eu não entendia – não entendia nada – não estava acostumado – e de minha parte não disse nada.
Você estava comigo quando outra floresta – outra noite – de outro verão, falou comigo – falou primeiro com você – falou conosco –, mas era a mesma voz, eu a reconheci imediatamente. Você poderia ter entendido facilmente – você conhece as florestas de cor – e eu poderia, já que você estava lá – entendido alguma coisa – apenas o suficiente para adivinhar muita coisa. Mas vejam só, nós dois apenas ouvimos a voz, tanto nosso amor nos ocupou com seu silêncio – e sua própria canção.
Eu estava sozinho outra noite – olhando para a floresta – pela janela – já que só somos dois morando e eu disse a mim mesmo que você estava em uma ponta da floresta – e que eu estava na outra – e que havia basicamente apenas uma floresta – no mundo – entre nós – e eu esperava que de árvore em árvore roubasse caprichosamente sua voz – meu amor – até mesmo meu amor. A floresta, enquanto eu olhava, falava, mas eu não entendia – eu escutei você, muito.


[DEVEMOS ROUBAR O FOGO]

Devemos roubar o fogo sem perder as brasas ou as cinzas, nem o frio para o qual o acendemos, nem o frio para o qual ele desaparece. Pegamos o fogo, as brasas e as cinzas, mas tendemos a escapar do frio, ou seja, das poucas margens que às vezes criamos, e das margens que, de qualquer forma, estão entre e nas margens, quem quer que seja, está fora. Sevettijärvi é a margem do exterior, que tem o seu entre, o formidável entre nada que eu disse. Vou partir para Sevettijärvi, com um pouco do meu queijo na mala, ele contém um bilhete da Laila, o pelo do glutão, retângulos cheios de rascunhos de Bachelard, Bove, Beckett, um segundo suéter, uma câmera, a poeira que coleciono sem cansaço, e os rascunhos que eu mesmo faço em retângulos de papel avião, papel máquina; o sabão escorregou, há uma hora, no balde, e caiu no canal de gelo onde despejei a água, e de repente foi repurificado, por esta morte, e eu o peguei, está lá também, um retângulo derretido, ainda carregado com um pouco de gel. Essa geada vai durar até Sevettijärvi? Quase sempre é a mesma coisa. Eu me pergunto se meu cigarro vai durar até a pedra rúnica, se meus cadarços vão durar até hoje à noite, se minha respiração vai durar até amanhã, e se nada ceder imediatamente, nada se segurar, e eu recolho, eu me recomponho, e desta pilha de restos, tento fazer uma pequena fogueira para alguns outros. Quanto a mim, tenho um pouco de fogo de alguns outros, e às vezes dos mesmos, mais aquele que me coloca à vista quando sou forçado a ofendê-lo, o que previ apenas em Sevettijärvi.


ESTARMOS JUNTOS

Minha esposa é um arbusto vivo de moiré,
o mar, uma grande bandeira caída,
o fogo é o sonho da árvore,
o vento, uma grande bandeira desbotada,
mas a guerra não é paz.
Não basta falar ao contrário
sobre ser uma lagosta de língua comprida
para sonharmos.
Não basta falar de bom tempo
enquanto abrimos um guarda-chuva
ou abrir um guarda-chuva
enquanto nos preparamos para a primavera.
Não basta untar os canhões
e colocar nos braços favores de azeitona.
Uma mentira nos acorda
se sonhamos com a verdade
a pontinha da sua orelha
faz barulho para acordar
os mortos que temos na memória
e nosso sonho não dorme
e nossa memória não dorme
estamos parados em nossas salas
e parados em nosso sonho.
Nossas cabeças teriam que ser cortadas
para que pudéssemos usar seus capacetes. Seus erros
teriam que arrancar nossos corações.
Não basta uma máscara
nos assustar ou nos fazer rir,
nós rimos até respirar.
Não basta fazer barulho com máquinas
para bater na mesa onde escrevemos
para que escrevamos obrigados
Não basta linchar pessoas inocentes
para registrar queixa contra a ideia
de rastrear o que é vermelho se não for um cardeal.
Não basta fechar a porta
para dizermos que casa linda,
nem fechar os olhos.
Mas basta uma flecha do sol
para derrubar a noite,
só precisamos estar juntos.

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