Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 40
Organização e tradução de Floriano Martins
Domingo López Torres foi poeta, ensaísta e artista plástico, que desempenhou um grande papel no desenvolvimento do intelectualismo revolucionário nas Ilhas Canárias. Publicou artigos incendiários em várias publicações trabalhistas, como La Tarde e Gaceta del Arte. Muitos dos seus escritos ligavam o Surrealismo ao marxismo. Em 1930, fundou a revista cultural, ideológica e política Cartones . Em 1935, abriu uma livraria-tabacaria que se tornou um ponto de encontro da extrema esquerda da elite política e literária canária.
Na revista surrealista Minotaure # 3-4, editada em 1933, em uma enquete sobre o encontro capital que marcou a vida de vários entrevistados encontramos esta resposta dada por Domingo López Torres:
Meu primeiro encontro capital ocorreu por volta dos nove anos: um livro técnico sobre casamento e higiene foi, para o meu temperamento da época, o primeiro que exacerbou meus desejos, o primeiro livro pornográfico que chegou às minhas mãos.
Esse livro me ensinou a hipocrisia dos preconceitos e o mistério imponderável das grandes pessoas. Senti então a vergonha das minhas partes sexuais dentro do meu short.
Além de sua poesia, onde cabe destacar a importância de Lo imprevisto, livro que situa seu autor entre os poetas mais notáveis da geração, López Torres também deixou inúmeros ensaios, que pretendia publicar sob o título de Surrealismo, o que acabou não sendo possível. Em um desses escritos situou o artista surrealista como alguém que “deja libre paso a la espontánea expresión del subconsciente haciendo de médium de sí mismo, atrapando desde las más altas ventanas los más bajos paisajes del espíritu”. Em 1937 seu corpo foi lançado ao mar dentro de um saco, como resultado de um dos momentos mais abjetos do regime de Franco.
Ao escrever sobre López Torres, o crítico Roberto García de Mesa, que o situa como uma das mais relevantes personalidades da literatura das vanguardas históricas nas Ilhas Canarias, sintetiza seu vínculo com o surrealismo de um modo que exige a sua presente reprodução:
Domingo López Torres derivou a sua poesia para um surrealismo comprometido com a revolução proletária e os conflitos do seu tempo. Neste sentido, a sua poesia evolui a partir de uma visão da paisagem meridional, selvagem, humanista, em Diario de un sol de verano (1929) – em linha com o que afirmava Pedro García Cabrera no seu ensaio “O Homem em Função da Paisagem”. (1930), texto ideológico do espírito da revista Cartones –, até se preocupar com uma estética intimamente ligada ao surrealismo, que, sem ignorar a imaginação e o grotesco, não deixou de apontar problemas sociais, como a invasão de pragas de gafanhotos, uso da liberdade individual, subversão dos costumes burgueses através da libertação sexual etc.
OS BANHEIROS (3 DA MANHÃ)
Espirais violadas de pressa
funcionamento contínuo, ruídos internos
pelos canais ocultos sem fronteiras
–labirinto sem onde, desejo sem freios–.
Eles quebram o sonho, o riso, as cores,
a dolorosa espera acelerada
pródigo na promessa, na asa, no prêmio:
veja-se subindo, leve, em pleno voo,
em direção a um céu, outro céu e outro céu.
Enquanto o esgoto escuro do desdém
insuficiente para tanta oferta
salta sobre a geometria da borda
inventando carrosséis encaracolados.
A brisa azul das primeiras horas
rendeu-se abertamente ao seu destino
teimosamente abre ruas estreitas
na densa cidade dos cheiros,
colocando uma auréola no relevo.
Não havia nenhum slogan ousado que contivesse
os don pedros dos três quartos
pulando freneticamente pelos corredores,
trincheiras íngremes de preconceito.
Os ventos traiçoeiros, flechas firmes,
Eles quebram diante do touro blindado
de tanto querer derrubar, quebrar a lacuna
de ordens quadradas altamente severas
e orações suplicantes e ardentes.
POEMA DA LAGOSTA
(Caíste sobre o leito dos fazendeiros
assassinando um sonho de altos valores)
I
Ventos e areias e pragas
para lembrar
o que conheces bem
o que todo mundo sabe:
que ninguém sabe
–Ah, sim, continente!
II
Porque eu queria parar
e o vento não me deixou.
Ele me empurrou sem piedade.
Mas eu queria parar.
Então, transparente de tudo,
Eu, por um mar sem vidro,
sem onde, ou quando, nada.
(Os céus desabitados
e os mares sem janelas.)
Eles me pegaram sem piedade:
as meninas de chapéu,
os meninos na lapela,
com pinos de aço.
O mapa dos meus sonhos
–sem norte, sem sul– corte
por listras verdes de sonho.
E eu, aviador, no céu,
navegando de lado.
Quebraram as asas do medo.
Em pacotes. Oprimido
pelas paradas do vento.
(Sim, nós o excluímos do nosso itinerário,
para viagens futuras, paradas em ilhas.)
III
(Bispos, vereadores, soldados e padres – de gala – marcham para o campo para exterminar a praga de gafanhotos.
Engenheiros agrícolas, com metralhadoras
nos picos mais altos das ilhas
– longe dos olhos curiosos dos tolos –
(os nativos têm os olhos secos de sempre olharem para o céu)
Eles arquivam recibos para preparar folhas de pagamento espaciais.)
ESCÂNDALO
Perdidos na noite daquele cinema,
Para lá das últimas poltronas
bem perto dos gozos e venturas,
tu e eu, pelas calçadas das pessoas,
em um filme que não acaba e sempre começa.
Lembro que Anny Ondra eram seus seios,
teus olhos e teus lábios,
que foram deslocados
por todos os meus corredores interiores.
Que alegria e que gritos!
Assim entramos no mundo dos véus
que inventou a tela e os suspiros.
*
Ontem, dois namorados foram surpreendidos em um cinema desta cidade, atropelando a moral burguesa, num tal estado de limbo e descaramento que a força pública teve que intervir. Outros casais aplaudiram nos últimos assentos.