John Welson (País de Gales, 1953) – Série um Século de Surrealismo / Poetas

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Série um Século de Surrealismo – Poetas, 05
Organização, texto de Floriano Martins
Tradução de Allan Vidigal

O galês John Welson (1953) é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em exposições em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de sua terra natal, o País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados pela poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para construir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser. Em minhas conversas com Welson, ele mesmo aclara sua abrangente aventura criativa: Não vejo nenhuma contradição, nenhum conflito, não há forças se opondo ou opções preferidas de expressão, é o compartilhar a ideia, o convite a se unir na aventura, ser o mapa a cruzar o território interior feito de pintura ou palavras, não há diferença… Ao contrário, o desejo de abraçar a jornada da imaginação e a palavra e pincéis não são mais que catalisadores para capacitar o primeiro passo, a abertura da dobradiça da bússola para quem lê ou quem vê, para o salto da mente dentro do caminho que é a realização dos seus desejos. Permitir que todos os sentidos se apossem do possível, palavras, pinturas, imagens são a poesia da paleta. [FM]


PENSAMENTO SATURADO

Sono amuado
entre
gumes de ânimo,
sede de sussurros frágeis
em galope atravessado.

Sobre o silêncio de ombros de inseto
o soluço esvoaçante ergue a mão,
nade de lugar-comum gelado.

Encaras o silêncio aparado,
ninguém se importa,
o beijo zarpa na canoa,
ecos de veludo,
as pontas de teus dedos,
inócuas,
ausente o tato.

Isso tudo,
Tão distante,
Roupas encharcadas de memória,
excesso de “quem sabe, poderíamos “.
Mas isso foi antes.

Reflexo riscado
virada da maré
mudança de ideia
amarrar os sapatos
olhos fechados
rédea solta.

O riso oculta
lábios rançosos
leite talhado
e
alguém encontra
as esquinas que dobrou.
Não era para ser assim.

Distante,
mas tão distante,
o silêncio aparado
alto demais,
e o gume da faca
corta ao meio o pensamento.
ninguém quer saber,
lugar-comum gelado derrete
e se afoga.


MEU VALE

A cisma das colinas
história cobiça.

Campos pisados
esgueira-se bruma.

Arado metálico
senda silente.

Cruzado de ovelhas
rebanho dobrado.

Vale pé de corvo
riachos vagueiam.

Meu vale.

Árvores beijadas de vento
piscam frente ao sangue.

Dedos de muralha de pedra
terra agarrada.

Alerta do urubu
estômago rasgado.

Ressecado de chuva
respira o chão.

Ar silente
porteira aberta.

Este vale tem um cheiro
mas só eu o posso dar à luz.
Me foi dado,
de presente,
este vale tem um cheiro,
ressecado de chuva, beijado de vento,
cruzado por ovelhas,
nas minhas pálpebras
meu vale me olha por dentro.
Não ergo os olhos,
alvorece de novo.


ÓCIO DO VIDRO QUEBRADO

Acidentes de automóvel com textura de madeira
até os joelhos em mal-entendidos furtados
ela sorriu
voltou-se
seus lábios evadiram-se de um beijo.

Agora aqui temos o amanhã
fantasia de esperteza,
queda d’água dobrada
colher certeira no deserto frio.
Certeza aleijada.

Isso mesmo
língua presa,
sem palavras,
ficas de pé,
papel amassado
de invertebrados.

Dobrando a esquina
pedra feita em manteiga,
hesitação amarga,
infanticídio alagado de latidos.

Tatuagens tontas na neve
dançam sobre chamas apagadas
enquanto equações lagartas laçam a ingratidão dos tornozelos
decididos a fugir
da avalanche de solda da conformidade.

O rosto oval da cobra.
A rachadura de uma inocente parede caiada.
A dor do suor.
O carisma com bolhas,
ora, se nos divertimos?

Ao fim e ao cabo
o vidro quebrado dorme bem,
consciência limpa,
sem dividas,
sem medos constantes,
flexível
a linha esticada
o caos em cacos
maleável
esta fonte de consciência,
irá passar
e
revestida de grãos de
falibilidade, estéril
tremer sozinha
entre promessas dedilhadas.

Fofoca imparcial
sorvida e atirada
cuspida e esvaziada,
embebida e encharcada
queda livre,
colhida da fuligem da calçada
volta-se e hesita,
um olhar machuca
ferido e corado,
pulsante e frenético,
vazio de fôlego,
pisoteia,
a olhadela final engasgada.


UM MAPA PERDIDO

Ora veja bem,
pareceu tão esquisito,
alguém deixou um poema para secar ao sol,
Como uma passa, bordas ressecadas.
Passou um cachorro
farejou o sangue do poema e o comeu.

Ninguém virou o rosto.
Nada deixou de se mover.
O cachorro mijou numa árvore
e o poema escorreu rua abaixo.

Gatas esgueiraram-se das sombras
cheiraram o poema
e o levaram embora
para alimentar as ninhadas.

Ninguém firmou os olhos para ver.
Nada fez barulho.
Brotaram gatinhos
cobertos de palavras.
Pelagem estrofe
versos mamados
voz de língua áspera da eloquência.

O corvo que espreita
dane-se a cautela
vê gatinhos vestidos de palavras manchadas de leite,
mergulha
e bica os olhos dos gatinhos.

O gato da musa cega
tropeça por ruas de trevas,
seus poemas roubados
sem sol
descarnado
desprovido de novas paisagens.

Ninguém virou o rosto.
Nada deixou de se mover.
Mapa infértil
sem rota.

O drama líquido
concentrado
sufixado,
horizonte confiscado.
Ofuscação pálida
bocejo de ingratidão.


DO ESTÚDIO

Para Heather Nixon

Tinta que dançou
Da paleta de louros,
canto de rio,
olhos de música,
cor-de-rosa derretida nos dedos
corre nas pontas dos pés,
do amarelo alegria riso saltou.

Dançarina loura
Pássaro cantor de fitas rosadas salta
E a música de olhos amarelos
Felicidade os dedos de filigrana.

O sol cantado em tinta
riso de olhos louros
pontas rosa/amarelo dos pés
luz do sol derretida
num estúdio de abraços beijados.

Estúdio louro
Rio de olhos de sol
Amarelos que beijam
Dançando com os lábios cor-de-rosa
Do pássaro
Da paleta da alegria nas pontas dos pés.


TEMPO INDÓCIL À ESPERA

Cada pedra sem revirar
permanece precisa, retida.
Reflexo manchado,
toque de recolher do espelho
lavado.
salivação libidinosa
perda do fôlego.

Fruta oca
sugar sementes de sebo
a sanção sorvida
sugestão forçada,
o punho fraco
da criança faminta
jaz livre do peito,
molhado de pó,
vestido de bandeira,
a fúria da guerra.

O punho do soldado hesitante
dedos desajeitados
amarrado ao gatilho,
olhos de sono,
missão de pranto

E o alvorecer
parido do sol
cheira a vômito.
Travesseiros de pedra sem revirar,
sono torturado
oferece descanso rasgado.
A paz em bolhas,
o formato da memória,
agora silhueta vermelha
adorna inclemente o dia.

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