Rikki Ducornet (Estados Unidos, 1943) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 24
Organização e tradução de Floriano Martins

A ideia de plágio surge como uma provocação, ao questionar a sisudez de uma patente da criação. No entanto, seu recorte essencial aponta na direção da subversão e não da mera cópia. A criação não se desfaz em momento algum de sua imperativa assinatura. O plágio é um ardil e, com o tempo, se tornou enfadonho. Uma conversa com a romancista e ensaísta Rikki Ducornet e aprendemos muito sobre o desgaste de certos truques da linguagem. Uma dessas lições diz respeito à sua leitura do Surrealismo como uma mutação espontânea, ou, como ela cita Aimé Césaire: O surrealismo é uma disponibilidade permanente para o maravilhoso. Neste sentido é fascinante a ideia de Rikki de que criar equivale a ser perseguida por uma coisa selvagem na floresta. Avancemos com ela: Estar plenamente viva, ou seja, galvanizada por Eros e suas encarnações ilimitadas – é habitar no coração vivo do surrealismo, aquele lugar de encontros excitantes, ambíguos e, acima de tudo, maravilhosos. Não nos esqueçamos que Rikki compactua com um Surrealismo não-ortodoxo – uma maneira de lidar com a ortodoxia e a má fé é o humor negro – e o ambiente quase sempre satírico de sua narrativa é intensamente mágico, compartilhando correspondências entre realidades aparentemente afastadas entre si, com uma precisa noção da liberdade do corpo, da imagem, do maravilhoso. Sua voz brilha, reveladora: Para amar o outro, o estranho, os aspectos misteriosos do mundo; para ser um ente livre, um ser autônomo, destemido e imaginário; para abraçar e proteger o mundo natural e criar para si e para os outros o espaço no qual a transformação e a criação são sempre possíveis, é preciso amar o corpo, o corpo mutável, o frágil e o mortal. Eu acredito na alma sexual.


[NAQUELA MESMA NOITE]

Naquela mesma noite, naquele momento na mais doce das tardes,
bem ali, do outro lado da rua, no gramado,
suspenso naquela árvore, naquela
cerca – ali – vês? (Tudo bem. Estou aqui contigo.)
Tudo chamuscado:
as escamas das cobras,
o pelo das onças,
seus olhos, os
ossos de suas patas, os
órgãos macios e propositais
sua beleza, oh!
A beleza das crianças!
Acontece rápido, um mundo reduzido a cascalho a vapor,
Um fedor que não nos pertence e ainda assim é nosso.
Vês? Ali?
O coração balançando em sua corda?


[COMO EM UM AEROPORTO]

Como em um aeroporto, no metrô, em uma rua da cidade, em uma cela de prisão, nas escadas da prisão, sob custódia; tudo começa em uma calçada ao lado de um parque da cidade.
E então um menino e todas as coisas ao seu redor vaporiza
Foi assim
Quando a língua foi cortada da garganta do mundo.
Nós nos escondíamos como baratas atrás dos vasos sanitários, mas não conseguíamos nos tornar pequenos o suficiente.
Dessa forma, traídos – como a criança –, escondidos atrás das cortinas, debaixo da cama, no fundo do armário, no porão, no vagão do trem, no sobretudo da mãe pendurado em um gancho. Parados ali, magros como um alfinete, pequenos como um grão de ar, envoltos no próprio corpo que, quando golpeado repetidamente, se parte.


[ELA DISSE]

Ela disse: Meu corpo é meu, veja.
Quero dizer, é sagrado, de alguma forma.
Mantenha uma distância respeitosa.
Ela disse: Eu não sou um animal.
Ele a ignorou, e após fazê-lo
galopou para longe feito um cavalo da cor de chumbo.
Ele tinha o rosto de uma cabra.
Branco como queijo.
Segundo as autoridades,
ela fechou os olhos.
A faca foi deixada deitada com a ponta afiada para cima,
ela pendurada por uns fios de cabelo.

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