Thérèse Renaud (Canadá, 1927-2005) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 27
Organização e tradução de Floriano Martins

Ao eclodir em Quebec o manifesto Refus Global, 1948, um dos mais intensos desdobramentos do Surrealismo no continente americano, a poeta Thérèse Renaud estava entre os signatários, ao lado de seis outras mulheres. O grupo identificado como Automatistas representou um alto momento revolucionário da cultura canadense. Uma presença feminina tão intensa no manifesto, no entanto, não teve correlato nas mostras coletivas do grupo, capitaneado pelo artista Paul-Émile Borduas. Thérèse foi a única mulher poeta, em meio às demais que atuavam em ambiente plástico. Nenhuma delas jamais foi convidada a participar das exposições. Entre as confluências com inúmeros tópicos do Surrealismo a misoginia repetia no Canadá a mesma máscara francesa. Declaradamente surrealista desde os primeiros momentos, Thérèse foi consolidando uma poética marcada pela expansão do imaginário e o mergulho no inconsciente. Tal afinidade com o Surrealismo revelou igualmente uma transgressão de linguagem em relação à lírica canadense. A ida a Paris, que lhe permitiu encontrar Artaud e Breton, não obteve os frutos esperados. Ao acompanhar o marido – o artista Fernand Leduc, também ele integrante dos Automatistas –, Thérèse não foi vista senão como esposa e mãe. Aviltante recepção lhe deixou bem claro que não encontraria melhor destino senão no exílio interior, perspectiva que propiciou uma mais ampla dimensão de sua poesia.



PARA LOUISE

Passei o dia contando as dobras
que meus passos fazem na neve
Passei o ano sonhando com um
misterioso passeio de nuvens espumosas
Colhi três pétalas de lírio para
fazer um vestido
                                  Acaso ouvi a campainha tocar?…
Saí de quatro para conquistar
as ilhas outonais
                                 Acaso ouviste o sino rezando?…
Não precisei fazer mais nada, pois sou
a Abelha do Desejo…


[ESCUTEM MINHA CANÇÃO]

A Fernand Leduc

Escutem minha canção de criança piche:
Eu sou a pequeno polegar
e tenho os dedos limpos
Eu sou grande velocidade
e sem ter nádegas
me sento
sobre os pés
Conheço os espaços
e me afundo nas chávenas

Quando bocejo chorando
vou-me embora beijando
as ervas dos chicotes-prazeres
e quando pareço rir
é porque caminho sobre o asfalto-desejo

Jamais sonhei
sem me ouvir chamar
e só tenho amor
pelos gatos e pelos ursos

Achei uma noite de claras estrelas, três pedras que pus no bolso hoje as retirei depois de tê-las esquecido por três dias


[NUMA CONCHA DE OSTRA]

Numa concha de ostra pousei minha cabeça. As ervas curvaram a cavilha e eu fui ao encontro de três viajantes.

Um deles tinha luva nas mãos. Essa luva representava os lamentos do vento. Eles me disseram: Venha conosco. O caminho é longo e penoso, mas ao final há uma clareira com flores sorridentes no sol e um riacho brilhante na noite.

Ao longo do caminho quebrei o polegar, mas um urso veio lambê-lo e então peguei pedras e as lancei por trás de mim.

Na segunda noite rocei-me nos fogos que as estrelas deixam em seu percurso apressado e senti as carícias ardentes da lua.

Ao chegar à clareira peguei meus pés doentes e os lancei no riacho.

Desci meu corpo inteiro nos fossos e fechei a concha da ostra…

 

 

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