Tristan Tzara (Romênia, 1896-1963) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 31
Organização e tradução de Floriano Martins

Iniciador do Dadaísmo, autor de todos os seus manifestos, posteriormente recolhidos no livro Sete manifestos dada (1924), o poeta Tristan Tzara foi também dramaturgo, diretor de cinema, crítico e compositor. Cultor da escritura automática, integrou tam bém o movimento surrealista. Autor de uma importante produção literária, cujas raízes se encontram no niilismo, investindo contra os valores culturais, estéticos e morais da sociedade – inclusive as convenções linguísticas tradicionais –, é uma das figuras destacadas da vanguarda artística. Autor de um livro fundamental, L’homme approximatif (1931), ao lado de Où boivent les loups (1932), L’antitête (1933), Sur le champ (1935), Grains et issues (1935), La main passe (1935), Ramures (1936) e Vigies (1937). A sua extensa obra inclui na etapa final, títulos em grande parte dedicados à crítica e aos estudos literários, como: Morceaux choisis (1947), Phases e Sans coup férir (1949), Parler seul e De mémoire d’homme (1950), Le poids du monde (1951), La prèmière main (1952), La face intérieur (1953), L’Egypte face à face (1954), Le temps naissant (1955), Le fruit permis (1956), Frère bois (1957), La rose et le chien (1958), Le secrete de François Villon (1961), Juste présent (1962), Lampisteries (1963) e Cinq poèmes oubliés (1965). Segundo observação de Neiva Dutra, O deslocamento da sintaxe, a associação de imagens contraditórias, a busca constante da surpresa na abstração ou no jogo de palavras, deram lugar, na última etapa de sua produção poética, a uma sóbria, serena e equilibrada reflexão que, após constatar o vazio e a náusea da existência, volta-se para o ser humano, buscando nele algum significado.


ÁGUA SELVAGEM

os dentes famintos do olho
cobertos de fuligem de seda
abertos à chuva
o ano todo
a água nua
escurece o suor da fronte da noite
o olho está encerrado em um triângulo

o triângulo sustenta outro triângulo
o olho em velocidade reduzida
mastiga fragmentos de sonho
mastiga dentes de sol dentes carregados de sonho

o barulho ordenado na periferia do resplendor
é um anjo
que serve de fechadura à segurança da canção
um cachimbo que se fuma no compartimento de fumadores
em sua carne os gritos são filtrados pelos nervos
que conduzem a chuva e seus desenhos
as mulheres o usam como um colar
e desperta a alegria dos astrônomos

todos os tomam por um jogo de dobras marinhas
aveludado pelo calor e a insônia que o colore

seu olho se abre apenas para o meu
não há ninguém a não ser eu que tenha medo quando o vê
e me deixa em estado de respeitoso sofrimento

ali onde os músculos de seu ventre e de suas pernas inflexíveis
se encontram em um sopro animal de hálito salino
afasto com pudor as formações nubladas e sua meta

carne inexplorada que brunem e suavizam as águas mais sutis


[O ESQUECIMENTO ENTERRADO]

o esquecimento enterrado na inencontrável crença
enterrada nas marulhadas nos descampados nos frutos
leito abundante de herméticas interrogações
onde engorda taciturno o gomo do raio
o trêmulo estandarte
quando o olho já não sabe socorrer
o pássaro morre diante do trajeto sem guia
surgido das torrentes de demônios
quando a solidão saturada de olhos secretos
se enche de orgulho na vegetação
as portas batentes de tua juventude se abrem
e o amor traquina através do espesso atraso
em vão as alabardas encheram de pasmo o tropel das brumas
que a majestosa força apontava — assobia assobia serpente —
as chegadas massivas te flechavam com suas mensagens de sol
onde tanto padecimento se mesclava que a luz
parecia coroar a incestuosa recordação


[A CABEÇA SOBE RODEADA]

a cabeça sobe rodeada de ecos sobre o rasto dos bramidos fumegantes
que os vulcões sulcaram ao longo das migrações de prospectores
ali em cima onde tudo não é mais do que pedra
e frágil gorjeio de sóis inconsolados seguido
o anêmico viaduto desemboca no funil de cal do vale engravatado de pórticos
e a fauna metálica formiga amargamente no mar de mofo e de peles


[O TEMPO DEIXA CAIR]

o tempo deixa cair pequenas polegadas atrás de si
sega as finas moléculas nas pradarias de água
domina as bolsas de ar atravessa sua selva
corta o verme da onda e de cada metade nasce repleta de luz a borboleta
no vulcão se enlaça ao longo de uma nota de violino
cacheia o corte errante do vidro nas finas horas de transparência
ali onde nossos sonhos revolvem o cantarolante manjar de luz


MENTIRA DE UMA NOITE BELA COMO UMA MULHER

mentira de uma noite bela como uma mulher
todos envelhecemos junto a seu leito de sangue
bela e ainda mais bela ao mesmo tempo da chama
não saberia engalanar noitadas mais rústicas

no fruto que amadurece te encerrei inteira
é minha vida com as bestas vorazes do riso
e a morta se fez voz no eco do espelho
onde se grava o alfabeto de vossos olhos oh desconhecidas

nova e ainda mais bela a relva doce do sorriso
na elevada fonte de braços estendidos para teu zênite
não foi mais do que um grito limite de ar
e a onda desfeita em alegria

quanto demora um tempo carregado de perdões
afundado no porto que já não abordaremos

o sol me esqueceu afora
de vinho claro

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