por Francis Kurkievicz*
EXŎDUS é o novíssimo livro de poemas de Elí Urbina, jovem poeta peruano que tem se destacado na cena poética latino-americana com a sua poesia e também com o seu trabalho como editor de livros e curador da revista Santa Rabia Poetry, revista esta que se dedica a divulgar, revelar e ampliar as vozes da poesia, sobretudo a Poesia Latino Americana. EXŎDUS é um livro nada modesto, uma vez que pretende trabalhar com um gênero literário raramente praticado entre nós, a poesia épica. O texto, puramente musical, centra-se na viagem quase mítica de homens pelas terras de Chimbote, onde devem, necessariamente, se confrontar com a geografia da própria humanidade. Traduzi os dois primeiros cantos de EXŎDUS para apresentar, em língua portuguesa, um pouco da poesia peruana atual e também singularizar a escrita deste querido amigo e sensível poeta peruano.
ELÍ URBINA (Chimbote, Peru, 1989). Poeta e editor. Foi finalista na XX Bienal de Poesia “Prêmio Copé – 2021”. Publicou os poemários: O Abismo Do Homem (Argentina, Buenos Aires Poetry, 2020, com Comentário do poeta espanhol Justo Jorge Padrón), e Exŏdus (Peru, Santa Rabia Poetry, 2022), versão bilíngue [espanhol/inglês] em tradução do poeta, crítico literário e tradutor estadunidense Jeremy Paden, e as plaquettes O Sal Das Hienas (Peru, Plectro Editores, 2017), e Fábula Dos Burros Selvagens e Outros Poemas (Espanha, Editora BGR, 2022). Faz parte de muitas outras antologias. Seus poemas apareceram em várias revistas especializadas e foram traduzidos para Inglês, italiano, francês, bengali, grego, sérvio, macedônio e croata. Fundou e dirige a revista e Editora Santa Rabia Poetry e sua coleção de poesia Pan-Hispânica.
I
EXŎDUS
Pelo menos
algo novo enfrentam
quando,
com o óbolo entre os dentes,
os mortos partem
para sua longa jornada;
enquanto os vivos
retomamos o mesmo caminho.
Christos Láskaris
COMO GALHOS NUS
Como galhos nus
no pântano estávamos,
homens desejosos e soberbos, oriundos
de todos os cantos
e todas as estirpes
contemplando as ruínas desmembradas e rosnando: “Aquí,
nada mais temos!”
“Resta-nos apenas o tédio!”
“Os dons e símbolos de outrora consumidos foram!”
Quando já fartos de tudo
saímos em marcha,
seguimos o caminho que margeia o Rio Negro
e abandonamos
pouco a pouco Chinpaenpteh*:
“Adeus, berço da nostalgia e dos bastardos!”
Escassas provisões
e bestas débeis
carregamos às costas, e as águas turvas nos guiaram
o mais longe que puderam
e desapareceram
depois como nós entre névoas atulhadas.
Assim, com dedos estendidos
– estilhaços sonâmbulos –
vozes iradas e passos ressonantes andamos
tateando, pisando ossos
sobre as areias, esqueletos,
em busca de abrigo até o sol se pôr.
O frio da noite
roía as nossas mãos
quando apalpamos lanchas mortas em cujos ventres
semienterrados nos metemos,
tremendo de raiva.
Ah, foi como sofrer progressivamente
o ódio dos deuses!
Alguns animais
sucumbiram de pronto – estátuas derrotadas –.
Outros caíram
em horríveis convulsões
com sal incrustado nos olhos diante da morte.
“Somos homens perdidos”
sussurrou alguém
e outro, em seguida, com palavras trincadas:
“Nós, os mais jovens,
estamos todos condenados”.
Sozinhos entre as sombras e a vertigem caliginosa
consumimos então
o cálice do silêncio
absorvendo seus dons com o olhar sombrio
e explorando as circunferências
da ossatura dos troncos
contemplamos as palavras com elas girar
– espirais do tempo –
em busca de uma escaldadura,
e finalmente nos curvamos ao recordar com pesar
os já desamparados
nomes da ternura,
apelidos que perderam seus rostos para sempre,
e ansiamos pelo calor
dos antigos leitos,
sim, como aquele que empunha a sós uma estrela
e chora enquanto queima
tão silenciosamente,
e novamente sentimos as culpas do passado
mesmo quando sossegamos
nosso apetite corroído
com carnes rançosas e licores amargos.
AINDA NÃO HAVÍAMOS DORMIDO
Ainda não tínhamos dormido
e já nos colocamos em marcha.
Com lábios lacerados e membros entumecidos
pelo rigor do clima
avançamos pelo amanhecer
através da névoa por um caminho ameno
entre os juncos secos
que ali havia,
e chegamos então a um trecho nauseante
e ouvimos
um angustiado grasnar,
abanos impotentes, ruidosa agitação
e um grande mormaço ao fundo,
e súbito vislumbramos
o mar intoxicado e todos nos detemos
ao lado de dunas,
sem pronunciar palavra.
Ondas de fúria estéril vez e outra rompiam
contra trastes de ferro
e plástico, mastigando
as areias – malhas de algas rígidas e redes
podres – mutilando-as,
e aqui e ali grasnavam
sem pausa aves marinhas terríveis como espectros.
Algumas batiam, ao redor
de nós, suas asas sinistras.
Outras rasgavam a carne encalhada dos lobos
com seus bicos possessos
e outros ainda trespassando
as águas sem pescar, alcançado presa alguma, agonizavam,
e como quem se entrega
a profundas contemplações,
isolando-se nas cavidades surdas da própria mente,
assim me encontrava
entre todos inesperadamente
observando à frente com os lábios perplexos
as águas de outrora
e sua imensidão azul,
o dourado da areia, os caranguejos vermelhos
e correndo atrás deles
aquele menino que fui
guarnecido por um feliz céu de alvas nuvens
e sob olhar do meu pai
quem tanto me amou.
“O que espera? Que olha aqui sozinho?
É hora de ir”,
surpreendi-me com alguém
e eu nada disse, apenas um áspero suspiro exalei.
Juntos, com olhos obstinados,
nos colocamos em marcha.
Que terra buscávamos, que destino sublime?
Durante o dia desprendíamos
os pés das areias,
com o silêncio à boca e os ventos embaciados
fétidos entre nós,
e à noite,
abrigados em valas nos cobríamos com trapos
irados, tremendo
ombro a ombro
e praguejando a alta desídia dos velhos deuses.
Assim, até que finalmente
deixamos as margens
e transpondo um labirinto de pedras cavilosas,
subimos por um caminho estreito
e sem saber como
logramos as alturas de onde olhamos
uma praia de ondas azuis
e seixos negros,
para cuja solitária bacia descemos ansiosamente.
NOTAS:
CHINPÆPTEH: é, segundo o pesquisador Orlando Carrasco Bardales, o nome Mochica e origem etimológica do porto de Chimbote*. Significa: “O sal não é do lugar” porque os antigos marinheiros trouxeram o composto dos vales vizinhos para salgar seus peixes e comercializá-lo (CARRASCO, O. (2009). Notas para uma história de Chimbote. Ornitorrinco Editores. Pp. 71-72).
Chimbote, é uma cidade portuária no norte do Peru, conhecida desde o início da era cristã por sua baía paradisíaca e cujas areias eram povoadas por grandes culturas pré-incas que lutavam pelos recursos naturais do lugar. Com o estabelecimento de empresas siderúrgicas e de pesca, esta cidade tornou-se, em meados do século 20, a cidade portuária mais produtiva do mundo, e seu apogeu econômico atraiu pessoas de diferentes cidades em busca de trabalho. Infelizmente, a exploração de seus recursos e o descaso de suas autoridades e habitantes logo transformaram o porto em um dos lugares mais poluídos do país e de toda a América do Sul.
Francis Kurkievicz é poeta, vez ou outra ousa invadir outras searas resenhando livros, traduzindo poemas e entrevistando poetas distraídos. Publicou pela editora Patuá o livro de poemas B869.1 K96, em 2020.