Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils
Nascido em pleno deserto do Atacama, o chileno Ludwig Zeller (1927-2019) atravessa o continente com extraordinário vigor existencial a deixar traços fundamentais por onde passa. Ainda no Chile, funda a Casa de la Luna, lugar de encontro e produção artística; no Canadá cria a Oasis Publications, destacada casa editorial com seu expressivo catálogo surrealista; no México dirigiu a revista Vaso Comunicante. Em toda essa relevante trajetória contou com a cumplicidade perene de Susana Wald, artista, ensaísta e tradutora, com quem viveu desde 1966. Em uma conversa com ela, Susana traça uma síntese da singularidade estética de seu parceiro: Na obra de Ludwig Zeller reina soberana a imagem visual. Isto tanto quando escreve seus poemas como quando faz suas colagens. A poesia de Zeller é expressa de tal maneira que seus versos são sempre visualizáveis e suas colagens sempre parecem poemas. Zeller como poeta full time fazia colagens combinando-as com poemas e escrevia poemas que combinava com colagens. Em sua obra se dão tanto os casos em que uma de suas expressões precede a outra como outros em que cada expressão se basta a si mesma. O automatismo e a ponderação se dão nas duas linguagens. Cuidados na técnica e na elaboração são também paralelos. Para Zeller o essencial no esforço e na criatividade é exteriorizar sua visão interior. De vasta bibliografia, destaco entre seus livros: Mirages (1977, em colaboração com Susana Wald), 50 collages (1980), Ejercicios para la tercera mano (1998) e El embrujo de México (2003), sem esquecer a singularíssima novela Río Loa, estación de los sueños (1994). Em 1986 participou da XLII Bienal de Veneza com um vídeo de 20 minutos, The alchemical body, que mescla colagens suas e pinturas de Susana Wald projetadas sobre o corpo humano.
FLORIANO MARTINS
A ABANDONADA AOS ESPELHOS
Por vinte anos busquei os polidos
cristais, os puros que vibraram
ao rumor das asas que o silêncio acaricia,
os lábios que se entreabriram à linguagem impossível
da Divina Imagem.
E ela se dobra murcha, pobre fibra de poeira
que cai sem piedade em adormecidos estames.
Pássaro-ontem, cobiçada serpente, abram,
cortem os fios que atravesso tremendo,
pupilas que florescem para impenetráveis signos.
Que máscara devo usar? Que fios sulcam a têmpora
do adormecido que grita? Corvo que se desprende até o abismo,
grasnido que ilumina as janelas do cárcere de sombras,
oh destroçada pele, o Labirinto! — Ali, tremendo, sozinha,
jaz a abandonada aos espelhos.
Decifrarei tua sede? O sonho será ouvido?
Não movam mais os fios com que se choca na sombra,
Procurem, uma vez mais procurem na estância sedenta.
PAISAGEM PARA CEGOS
Já não me lembro quando me afastei dessas chagas.
Vou gritando às escuras, com a cabeça escavo
No muro os anos multiplicam seu enxame,
Não sei se estou desperto se me dão leite ou vinagre.
Abro em unhas minhas gemas, porém elas se prolongam
Bem além onde latejam suas vozes crepitando,
Regressará com as chuvas comi a própria língua
Os globos dando volta ajustavam as contas.
Onde estamos às tontas buscamos um caminho
Sob o sol os tocos inscrições com ira,
De gelos acesos nos levamos nos metemos carvões
Nos olhos — docemente se lambem os olhares.
O que vês tu? Eu te vejo bocejar como peixe em outro ar.
O que vês tu? Apenas um ermo de espelhos e a faca.
O que vês tu? Minha raiz arrancada das plumas tuas entranhas.
O que vês tu? Eu não vejo. Eu apenas te pressinto.
FIGURAS CHAMANDO EM UMA PORTA INCENDIADA
Os relâmpagos cruzam uma grande pedra negra
Que de tanto rodar ficou na carne viva, sumiu
Em um buraco e tem dobradiças, tem estuques com sangue
E detrás dela o fogo, as línguas que devoram sua armação
Ressonante de lascas, de brasas sulcando o duro
Madeirame, suas tranças de cinza que se enrugam.
E ali estamos os três, qualquer um de nós
Chamando em grandes vozes no poço queimante
Da visão. A mais bela, a doce, com a viola de amor
Às costas; e o que tudo sabe e no entanto teme
Que os tições lambam seu estrolábio de vidros coloridos.
Ou a criança que percorre as escadas dessa casa incendiada
Que no meio da noite se desdobra como uma flor
De pranto… Onde estamos? Quem chama lá fora,
Por piedade, quem chama?
Desperto, escuto um rio de cinza imóvel.
Quantos dias perdidos, quanto pranto!
Suas bocas crepitando aqui em minha almofada.
PEDRA DE ANIVERSÁRIO
A René Magritte
Debruçada nos vidros a pedra azul do olho
A pedra que ama o Mar dos Sargaços,
Apertada na mão como um líquen
Ou como um caracol que se dissolve em sua própria maré.
A pedra no salão onde ninguém mais vem
Quieta na almofada como o que fala sozinho,
Machado que é somente uma pálpebra ou um lábio sobre a cicatriz
De cada dia onde o mar abre suas dobradiças.
A pedra palpitante, tíbia como a pele atroz do nó
Que chama em grandes vozes desde o bosque.
A pedra que caiu do buraco negro
Que há mais além do sol, a que vem
Rodando feito carvões há um bilhão de anos.
A pedra branda, bichada do pesadelo
De ver com um olho só o ranger da lua,
E esperar que alguém venha, um senhor com chapéu,
Um seio encadernado, um sexo ardendo,
Para romper a maçaneta com os dentes e queimar o silêncio.
DELÍRIO AUTOMÁTICO
Um desejo se acende e mil bocas se entreabrem
Em palavras, florescem as imagens essa locomotiva da noite
Que avança soa a vertigem se apertas o travesseiro
Recorda de tirar os óculos porque há um nó cego
Onde ferve o sangue percebes que os limites não existem.
As lembranças são guardadas em caixinhas, afastas os ossos
Enroscando os gritos que sobem pelas costas aos borbotões
Essa raiz vulcânica que devora os homens
Por trás de teu coração o relâmpago abre um ramo de veias.
Sobre a geografia dos corpos pestaneja aquele olho
Vão as aves que portam a semente infinita, rompe em ti
Abre-te em dois em quatro cobre-nos a maré
Como a esses endemoninhados no baile buscando a meada.
Tudo em sentido inverso aquele ventre de lontra
Vibra ao pranto em enxames multiplica a torrente
As pedras do prazer vibram ao tique-taque da chuva
As víboras despertam no relógio. Por que te dói o pranto?
Esse violão fervente que delira é teu corpo
Febre de framboesa é a delícia de voltar a sonhar contigo
Estende nas areias aquelas coxas brancas do almíscar
O desejo te encurrala, quando gritas goteja o mel de teus mamilos.