A maternidade incômoda na tetralogia napolitana: Emilia Soares investiga o universo ficcional de Elena Ferrante

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por Aristides Oliveira

Dia 15 de junho será o lançamento do livro da pesquisadora Emília Soares no Salão do Livro do Piauí (SALIPI), que estudou com profundidade a obra da escritora italiana Elena Ferrante nos últimos quatro anos. Para a psicanalista e psicóloga Tatianne Dantas, “Entre as diversas pesquisas que surgem no esteio da obra de Elena Ferrante se destacam, no cenário internacional, as que dialogam com a crítica literária feminista. No Brasil, a tese de doutorado de Emília Soares foi uma das primeiras a propor essa conversa. (…) Emília desenha um estudo tão vertiginoso quanto o texto literário de origem; com densidade e rigor teórico, sem esquecer a generosidade para com as leitoras e leitores que se interessam pela obra de Ferrante, em especial a Tetralogia, a quem a pesquisadora dedica especial atenção”. A revista Acrobata – interessada na autora que vem conquistando leitoras(es) ao redor do globo – acompanhou o todo o percurso de escrita deste livro desde o início, rendendo duas entrevistas que podem ser lidas no site. Para fechar esse ciclo de conversas, convidamos a todas(os) a conhecer o resultado dos estudos, adquirindo o livro e curtindo esse papo que tivemos com ela.

O que representa para você lançar este livro, após anos de dedicação à tese sobre a Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante?

O livro “Elena Ferrante e a poética da maternidade” representa a consolidação de vários estudos acerca da produção ferrantiana, incluindo artigos, teses e livros publicados tanto no Brasil como em outros países. Essas leituras me levaram a um lugar de reflexão sobre o conjunto da obra da autora em consonância ou dissonância com as leituras que já tinha realizado sobre outros autores e autoras. Foram quatro anos de estudos até que esse livro pudesse vir à tona e encontrar o seu próprio rumo, ampliando o debate sobre o assunto.

No meu livro procurei obedecer ao universo acadêmico da escrita, mas não deixando de lado a acessibilidade a outros leitores e leitoras, visto que o objetivo de toda escrita deveria ser, aos moldes da própria Ferrante, conduzir os leitores, por meio de linguagem simples, às mais profundas questões.

Por meio de percurso histórico, social, literário e psicanalítico, busquei posicionar a poética de Ferrante no que concerne a uma das questões mais importantes para o feminismo: a maternidade.

O modo como ela se apresenta na obra de Ferrante é bastante peculiar e abrange a desmitificação dos estereótipos, como o da mãe-boa, impossível de realizar-se enquanto desejo. Nem as mães conseguem atingir o ideal de perfeição e, muito menos, os filhos e as filhas. O projeto narcisista, que consiste em projetar no outro o que não se pôde ser, do filho-herói ou até mesmo da amiga-genial, atravessa o terreno pantanoso da frantumaglia.

Em meu livro também busquei analisar obras que julguei fundamentais para a compreensão da Tetralogia, como as de: Morante, Proust, Aleramo, Brontë, Lispector, Stein, Starnone, Sebold, Ibsen, Hoffmann, para citar alguns.

Como você pensa o processo de adaptação de livros para a TV/Cinema? Já que estamos falando de Ferrante, qual sua leitura em torno da adaptação das suas obras para o formato audiovisual, na série My Brilliant Friend? Está gostando ou a obra deveria ficar quieta nas páginas?

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Desde o belíssimo filme “L’amore Molesto” (1995) de Mario Martone, com a presença marcante da atriz Ana Bonnaiuto trajada de aceso vestido vermelho, até as mais recentes produções como as séries My Brilliant Friend e A vida mentirosa dos adultos podemos perceber o quanto as obras de Ferrante são plásticas e possíveis de leituras bastante artísticas.

É fascinante nos depararmos com esses presentes que nos são ofertados pelas películas, cada uma atualizando e reinventando a obra literária de Ferrante à sua maneira. Temos não só séries e filmes, mas também adaptação ao quadrinho da obra “L’amica geniale”, como a de Chiara Lagani (dramaturga e intérprete da companhia teatral Fanny & Alexander) e Mara Cerri (uma das maiores ilustradoras contemporâneas que também ilustrou “La spiaggia di notte”). Essa adaptação também recria a ambientação e as personagens por meio de cores, rabiscos, borrões e apagamentos que nos aproximam da riqueza de sensações provocadas pelo imagético.

Você é uma pesquisadora que vai direto na fonte, o que a fez você se tornar uma estudiosa em italiano e visitar Nápoles. Quando chegou lá, que atmosfera você vivenciou, atravessada à leitura das obras de Ferrante?

Estudar italiano foi um desafio para quem resolveu mudar completamente o projeto de tese. Quando fui apresentada à obra de Ferrante pelo meu orientador italiano Yuri Brunello, não sabia ainda de fato o que aconteceria. Logo fui tomada pelo incômodo do primeiro livro publicado por Ferrante.

Fui capturada pelo trauma de Delia que, infelizmente, é um trauma muito comum entre nós mulheres, ainda difícil de expor em palavras. O livro me capturou e não tive forças para escapar dele.

Logo, entendi que iria mudar todos os meus planos após uma noite de insônia por ter lido Um amor incômodo de uma tacada só. Depois fui ler A amiga genial e fui arrastada ora para o fascínio por Lila, ora pelos sentimentos inseguros de Lenu, mais próximos de “gente como a gente”, que estuda muito para conseguir uma posição na sociedade.

Visitei Nápoles primeiro pelos livros de Ferrante e, depois, em 2018, coloquei meus pés na cidade. Senti os olhares maldosos e machistas, aqueles mesmos que perseguiam Delia, senti a proximidade com o nordeste do Brasil, como uma vez comentou Lenu, vi também a transição entre as duas Nápoles que nos apresenta o olhar de Giovanna em A vida mentirosa dos adultos, uma visível e outra invisível, esta apresentada pela convivência com a Tia Vittoria. Todas essas leituras nos fazem perceber o quanto Nápoles pode ser uma cidade que canaliza várias partes desagradáveis do mundo e de nós mesmas.

O que você quer dizer com a expressão “maternidade incômoda”? Que linha de reflexão sua tese nos traz para refletir sobre o ato de ser mãe em nossa conjuntura?

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Em primeiro lugar, a expressão foi extraída da tradução do título L’amore molesto para Um amor incômodo. Essa obra em especial reflete a dificuldade de identificação de uma filha com uma mãe. Enquanto morta, a mãe é uma figura mais fácil de analisar, de ver os seus contornos, sem a sua presença incômoda. Amalia era uma mãe desejosa de liberdade e tudo que a filha, quando criança, o marido e a sociedade queriam era represar esse corpo, dominá-lo por medo do seu potencial de fuga.

Trazer esse sentimento que as personagens ferrantianas têm de se livrar da mãe, dos antepassados, das marcas de violência é uma constante na obra. As filhas não desejam repetir a história das mães. As mães, por sua vez, têm o desejo narcísico de que suas filhas sejam melhores que elas mesmas foram. Mas nem sempre há uma compreensão das partes em torno disso. A matrofobia, isto é, o desejo de aniquilar a mãe ou o medo de se tornar igual à mãe, apresenta-se de forma muito rica e variada nas obras de Ferrante.

Tira-se a figura bondosa e santificada que a sociedade impôs às mães e o que sobra é a mãe real. Aquela que abdicou a sua felicidade, que se casou cedo, que não fez o mestrado ou o doutorado, que não fez uma simples viagem, que nunca mais usou aquela roupa que gostava, que economizou o quanto pôde para sustentar os filhos, que não foi a várias festas porque não tinha com quem os deixar.

Esse encadeamento de tempos perdidos não volta mais. E não tem espaço para o arrependimento dentro da maternidade. Uma vez mãe, sempre mãe – como bem nos mostra a obra A filha perdida. Não há férias, pausas ou conclusões dentro da maternidade. Daí o incômodo sempre presente, porém pouco mencionado, sob o risco de desconfiarem que o amor materno é uma invenção social e que, portanto, o instinto materno, lugar da dádiva e finalidade de toda mulher, de fato nada mais passa de uma máscara cuidadosamente criada e santificada para que as mulheres vistam com suspiros de missão cumprida.

Os estudos ferrantianos te levaram a conhecer o trabalho de Elsa Morante. Como você avalia a recepção desta escritora no Brasil? Que livro você considera fundamental para que a(o) leitora(r) mergulhe no seu universo?

Motivadas pela “Febre Ferrante”, obras de autoras como Morante, Aleramo e Ginzburg foram retomadas, porém considero os estudos acerca da obra de Elsa Morante ainda um pouco escassos no Brasil. E essa autora tem muito o que contribuir para a compreensão da obra de Ferrante e além dela. As obras de Morante, em especial, Aracoeli, por exemplo, tratam da relação mãe e filho de maneira tão visceral e doentia por meio de linguagem memorialística que foge dos padrões para a época.

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Precisamos que mais livros de Morante sejam traduzidos para o português brasileiro, pois as questões que a autora derrama em suas obras ainda nos suscita diversos questionamentos sobre a mulher e sobre a literatura de autoria feminina. Um destaque especial é o quanto os personagens masculinos são presentes em sua narrativa, como ela constrói a questão de gênero e, principalmente, a questão da maternidade experimental para uma autora que não conviveu com a sua genitora. Ela fez dessa ausência materna, por exemplo, em A ilha de Arturo, material criativo para compor um personagem juvenil que vive em um palácio decaído sem a presença de mulheres. Em A história, seu mais famoso livro, temos maternidades divergentes em destaque, como a de mater-dolorosa, representada por Ida, ou a “mãe-desnaturada”, representada pela gata Rossella. Esses três livros considero fundamentais para a compreensão do universo ficcional de Morante, porém o que mais me perturbou foi Aracoeli.

Fala um pouco sobre a capa do seu livro. Quem a elaborou e o que esta imagem significa para você no processo de “capturar” a(o) leitora(or) para sua pesquisa?

A imagem que encontramos na capa é da artista olindense Juliana Lapa que gentilmente cedeu sua ilustração que fez quando grávida para compor a capa. A imagem de uma mulher dentro de um útero para mim remete ao local de dor para nós, mulheres, mas também de alegria, de criatividade e de poder. Remete às nossas origens, ao “pântano” em que estamos mergulhadas, que é um conceito que eu elaboro na minha tese. Acima do útero temos a imagem de um vulcão em erupção, tal qual o Vesúvio que ameaça destruir tudo pela frente. Assim entendo a potência feminina, como essa força ameaçadora que, se acordar, vai colocar tudo do avesso. Por isso, a sociedade falocêntrica vai continuar se empenhando em nos sufocar.

Atualmente, você é uma psicanalista em formação. Porque decidiu iniciar os estudos na área e quais suas primeiras impressões sobre as leituras que tem realizado?

Decidi ingressar no curso de psicanálise para poder compreender mais de perto as questões teóricas aliadas ao comportamento humano de fato. Entender como o inconsciente se opera utilizando a metodologia da interpretação, que já é um caminho oferecido pelo literário, fez-me também querer mergulhar na prática como analista em formação. Por meio de leitura crítica da obra de Freud e de Lacan, eu pude chegar a outras vozes, como as de Butler, Irigaray e Kristeva que me interessam profundamente por trazerem novas luzes feministas aos debates.

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