Vozes do Punk Vol. 19 – Maria Caram e a força da sonoridade feminina no cenário independente.

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por Aristides Oliveira

Maria Caram é uma pesquisadora apaixonada por som. Conheci o trabalho dela ouvindo o projeto Motoserra, que faz em parceria com a querida Olga Costa (em breve será nossa entrevistada aqui!) Nesse bate-papo, podemos conhecer melhor a trajetória da Maria como produtora de eventos na área e uma afiada estudiosa da música feminina nacional e internacional. Transitando entre o indie, eletrônico e punk , as vivências sonoras de Maria Caram é uma verdadeira aula sobre a importância das mulheres na história do rock.

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Você nasceu em Belo Horizonte, mas viveu uma temporada em Fortaleza. Os sons desses lugares têm alguma importância na formação da sua identidade musical?

Na verdade, eu vivi toda minha infância, adolescência e começo da vida adulta em Fortaleza e não só os sons de lá, como a cena independente da cidade são fundamentais para minha identidade musical. Tem uma variedade de casas independentes que funcionavam muito na raça e que me ajudaram a entender que havia um trabalho intenso por trás dos shows que eu gostava. Lembro de ter ficado muito fascinada a primeira vez que vi Alcalina no palco, era a primeira vez que eu via uma banda com garotas e até hoje a Thaís Aragão e a Fernanda Meireles são ícones em muitos sentidos para mim.

Curiosamente, a pesquisa musical sobre o Ceará mais antigo só veio depois que me estabeleci em Belo Horizonte. Aqui, me envolvi com uma cena mais experimental e comecei a trabalhar oficialmente com produção de eventos. Foram experiências que mudaram minha vida, como o festival Não Onda, com 11 bandas de rock torto em 2 dias em uma das casas mais icônicas da cidade. A música belorizontina é vasta e variada, não tem como não ser tocado por alguma coisa dela.

Desde quando você curte punk rock? Que sentido esse som faz na tua vida?

Eu era originalmente muito mais ligada em indie e electro rock do que em punk, curto muito música eletrônica também. Sou uma punk tardia. Só comecei a me ligar em punk mesmo já em BH: um ex namorado gravou um disco para mim com várias faixas que ele curtia e no meio tinha a versão das Slits para “I’ve heard you through the grapevine”. Foi um ponto de virada na minha relação com a música, pesquisei muito sobre elas, descobri uma cena punk inglesa super rica, criativa, ativista, ainda demorei pra chegar no punk americano.

Quando comecei a frequentar raves, a galera distribuía uns zines que falavam da “filosofia P.L.U.R” (Paz, Liberdade, União e Respeito) e isso me fascinava demais. Fui sentindo essa essência se perder com as raves se elitizando muito e quando eu descobri o punk, as comunidades, o faça você mesma, as questões políticas, foi como me sentir em casa novamente. Gosto do som cru, mais sujo, feito como dá para fazer, mas com muita intenção, mas acima de tudo gosto do fato que o ambiente punk é onde todo mundo está fazendo o que dá conta para melhorar e transformar o mundo.

E a Motoserra? Como vocês fizeram para elaborar esse projeto e o que ele representa no contexto que vivemos?

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A Motosserra começou como um  “trabalho de escola”. Eu e Olga fazemos pós em rock na Santa Marcelina. Adoraria dizer que foi uma identificação imediata e toda essa história romântica de click criativo, mas na verdade acho que nos aproximamos por estarmos em momentos parecidos em relação a música e por termos dificuldades semelhantes nas disciplinas. Com isso, acabamos descobrindo influências semelhantes.

A primeira música do duo a Olga praticamente esculpiu. Ela tinha pedido para eu colocar som numa letra dela, mas eu não toco nada, então fiz uns ruídos, ficou bem ruim. Mas ela pegou a base e cantou a letra de AmaZona por cima e ficou foda. A gente mexeu depois disso, entraram as guitarras da Mel Martins, tem uma versão com o Matheus Palmieri, mas era uma canção pronta desde a primeira gravação.

Não sabíamos se ia sair disso, mas um dia o Diego do Hominis Canidae fez uma chamada pedindo música inédita para a coleta mensal do site e eu enviei a minha. Ele disse que colocaria se eu me comprometesse a gravar outras coisas. Para mim, foi aí que virou banda (embora eu ainda tenha dificuldade com esse status) e agora temos muitos parceiros para fazer funcionar. É bem “do it togheter” para citar minha amiga e artista Natacha Maurer, e talvez isso seja a maior importância da Motosserra pro contexto atual: não deixar a gente perder de vista quem está do nosso lado em tantas batalhas cotidianas.

Como você compreende a conjuntura do punk rock (e o rock em geral) vivenciar um protagonismo cada vez mais feminino?

Acho incrível ter muitas mulheres se destacando, mas essa conversa sobre protagonismo é complicada. Primeiro, porque no fim das contas estamos sendo sempre preteridas em favorecimento de algum homem. Segundo porque, recentemente, estudando sobre o movimento grunge, me deparei com uma colocação muito interessante: sempre que as mulheres começam a se destacar na música, isso é colocado como se a partir daquele momento as mulheres tivessem aparecido na história.

Então a gente vê isso no punk, vê isso depois no riot grrrl, e até 2022 quando colocaram a Billie Eilish como protagonista de um movimento de ascensão feminina no pop. Isso é muito complicado porque vemos esse “protagonismo” sempre em ondas e vagas, então é como se fosse algo fora da curva, quando na verdade, é parte inerente da história. As mulheres não são uma exceção que aparecem no punk ou agora no pop punk. As mulheres estão na origem do rock e sua presença contínua e história precisa ser investigada e contada.

Um som lançado pela Motosserra em junho/2022 foi a canção rio_rua. Que tipo de experiências você passou para escrever essa canção e que lições o isolamento da pandemia trouxe para seu processo criativo?

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Essa letra foi escrita em 2015 e é sobre uma série de crises de ansiedade que eu tive durante esse ano. Em algum momento passei a identificar os padrões de comportamento e, na época, tinha acabado de conhecer o trabalho do compositor Alvin Lucier, fiquei fascinada com a repetição, então essa é a história da letra. Só que mostrei para algumas pessoas na época e a reação foi meio indiferente. Não estava segura em relação a ser uma música até ouvir as guitarras que o Alexandre Lopes fez, todo aquele noise, uma aflição da porra. Ali eu vi que tinha feito uma coisa que podia dar caldo (e o caldo só engrossou com as ideias da Olga, Rafa Luna e Juliana Altoé).

Meu processo criativo em música só existe e só foi possível por causa do isolamento e agradeço imensamente ao Ciro Visconti, Heraldo Paarmaan e Rodrigo Bragança pelo apoio e estímulo nesse caminho que eu nem sabia que podia existir.

Mas para mim, cada vez mais, processo criativo é trabalho. É ficar atento ao mundo, fazer notas do que te chama atenção, separar um tempo para olhar esses rascunhos e trabalhar muito em cima deles. É um processo um pouco coletivo também, preciso da troca para criar, nesse ponto, o isolamento me ensinou a ter coragem de transpor as distâncias e me conectar com pares, tenho aprendido muito sobre aceitar ajuda, receber e oferecer colaboração. É uma lista infinita de pessoas generosas para agradecer.

 A partir da sua participação no podcast Undergrations, que avaliação você pode fazer aos leitores e leitoras em torno da produção musical independente no Brasil?

Nossa produção é absurda em volume, variedade e qualidade. Tem muita gente fazendo música muito boa, em diferentes estilos em todos os lugares do país. Mas a gente tem se tornado cada vez mais dependente do algoritmo, seja para escutar música, seja para jogar nossa música no mundo. Temos uma cena rica, mas precisamos colocar ela para conversar, circular, relacionar e crescer para além de likes e para além das políticas de incentivo, porque como vimos, em quatro anos as políticas de incentivo podem ser destruídas, mas vai demorar uns quarenta para se reconstruírem.

Pode ser minha utopia punk, meu lado inocente mesmo, mas é fazendo nós mesmos, mas todos juntos, que vamos conseguir criar solidez de cena na música independente local.

Além do punk rock, sua vai paixão por música feminina brasileira e internacional é compartilhada na página 365 Girls in a band. Atualmente, que artistas te influenciam diretamente para fortalecer seu olhar estético sobre o mundo e como isso é sentido no cotidiano?

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Acho até complicado citar nominalmente, minhas influências variam muito. Recentemente estou muito impressionada com a vocalista do Dry Cleaning, Florence Shaw. Conheci recentemente uma baixista e cantora chamada Brittany Anjou. É muito legal as recomendações que recebo dentro do 365 Girls in a band.

Acho que de referências principais, teria que citar a Kim Gordon, a Jehnny Beth e a Anika, são boas referências do que gostaria de fazer. Estou estudando sobre a Courtney Love e no momento tudo que ela faz tem me tocado muito. Tenho diversas influências artísticas que vem de outros campos que não a música, principalmente literatura.

Não sei explicar como isso é sentido no cotidiano. É a velha história da representatividade: se eu vejo uma mulher fazendo algo com o que me identifico, acredito que posso fazer também e me coloca a tentar. Sempre que conheço outra artista admirável, ou que assisto a um bom show com musicistas mulheres envolvidas, sinto que posso fazer algo novo, algo melhor, em qualquer campo. Olhar para as mulheres ao nosso redor é muito bom, alivia a pressão, traz bons exemplos. Tentar abrir o olhar de outras pessoas para as mulheres que me fascinam é realmente uma delícia. É um jeito de compartilhar e de alguma forma acrescentar no mundo do outro.

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