Ingrid Morandian nasceu em São Paulo (SP), onde reside. É autora do livro Se você me amasse, teria fechado os olhos, pela Editora Patuá, 2019. Além de ter participado de várias antologias e livros de coletâneas (como Senhoras Obscenas), revistas eletrônicas: Mallarmargens, Diversos Afins, Liberoamérica, Germina entre outras. Foi curadora da mallarsérie “Obatalá” da Revista Mallarmargens, dedicada à escrita de autores e autoras negros.
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tu ficaste apenas uma noite
e antes de iniciar o reencontro com as ruas
tomei posse de todos os teus afetos e abraços
rompi com a loucura de subjugar olhares
o toque silencioso das mãos inaugurou a despedida
o afago
nalgum horário da infância, as mãos curiosas
tateavam a vida, as pequenas descobertas
os móveis, os brinquedos, os talheres
a aventura do riso
na puberdade, as mãos ansiavam o desejo
pelo outro, pelas camadas de pelos-bocas-voracidade
mundo habitável, tempestuoso
mais à frente, o muito caminhar, andante alguns anos
nas passagens de tempo e sobrevida
segurar a horda provocadora de tantas tempestades
chega um tempo, elas silenciam, os gestos são pequenos
quase esquecimento do lugar na terra
acompanham a coreografia de anunciação do desprendimento
Bashô sorri quando as folhas vermelhas caem
as mãos apagam as luzes
Mulheres da Cordilheira dos Andes
eram três figuras
três figuras femininas que caminhavam unidas
na noite fria de setembro
haviam se encontrado na esquina da morada
embrulhadas em casacos e xales
dos seus braços nasciam folhas comestíveis
derramando líquidos pensamentos
nas paragens
eram três figuras
três mulheres que peregrinavam de casa em casa,
atravessavam corredores e salas,
buscavam seus filhos na noite vazia de sons
das suas pernas surgiam raízes tabulares
agregando imagens oníricas àqueles
que perderam os sonhos
eram três figuras
três mulheres que carregavam bacias de água
para que as pessoas pudessem
atravessar a Cordilheira
das suas mãos excretavam flores amarelas
e açucaradas que alimentavam as crianças
dos Andes
Ewá
o que mais me assombra na tempestade
são os resíduos de lágrimas que ficam na pele,
a natureza perfila nas janelas do quarto gotículas
escorrendo sinuosas
ergo os braços para a chuva pedindo a imanência dos tempos
para que brotem fecundas minhas pernas
os mundos do meu corpo confirmam
as histórias contadas da mãe afro
nasci Ewá
nasci no rio bordado de solitude
fiz-me continente na ária,
acolhimento das mãos sôfregas
Do pertencimento
do retrato na estante
redesenho o acaso em rosas
ancorado pelo medo e desejo
ostentei um muro de falenas
que não viceja mais
provoquei um abismo na carne
que não arremata mais
ainda temos da polaroid
os negativos dos dias
daqueles tempos
tão nebulosos
o tilintar das mentiras acabou-se,
de braços caídos
matei a fome
do indizível
Trecho do mar
as ranhuras do corpo transformam-se
em pequeninas flores
que descascam ao vento
mulheres carregam baldes d’água
carregam minudências, e
as fatias do sol ao píer
sopro de afluentes vicejam
no entardecer
o canto dos pescadores arrancam
as dores de dentro
as dores de fora não podem ser vistas
o meu horizonte amputado de sonhos
sob o calcanhar de incertezas