5 Poemas de Jurema Barreto de Souza

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Jurema Barreto de Souza, Santo André, SP, 1957, poeta, editora da Revista A Cigarra. Participou do Grupo Livrespaço de Poesia (Santo André, SP) e da Revista Livrespaço, que ganhou o APCA de 1993.

Livros: Papoulas e Amnésias, Dalilas Siamesas, Poética da Ternura, Policromia, Silêncio Escrito. Edita a plaquete FRENEZINE, poesia.

Lançou em 2021 o álbum líteromusical Encontros & Encantos, poemas musicados por Edu Guerra e Rui Ferreira, participam 25 músicos.


HERDEIROS

Herdamos as ferramentas
e a febre de construir imagens
recusando sinais de tormentas
pintamos invisíveis miragens,
nossas cores não descansam.
Voláteis nossas almas
criam novos pigmentos
estamos na calma das luas
e na urgência de enfrentamentos.
Destino, continuar a linhagem
de quem tenha a palavra
como sua mais cara bagagem.


SOL POSSÍVEL

Sol de setembro
agarro-me ao canto do pássaro
que a reboque traz a primavera.
Um sabiá laranjeira
onde laranjeiras não há.

Estreitos pensamentos
querem desenhar futuros alheios.
Retinas que só o chão espreitam
arrastam suas cegueiras.

Mas há a lâmina afiada
a palavra forjada
pelo ferreiro do novo
destruindo gaiolas e medos.

Há sim um sol possível
nas dobras das trevas.
Há o canto de uma ave
na urgência dos fatos.
Há de germinar auroras
para que olhos
possam se levantar
acima dos temores.


HOMO VIRTUALIS

Nascido em um mundo
de velocidades e imagens
cresce em quintais virtuais.
A vida na ponta dos dedos
pequenos polegares
desafiam brinquedos digitais.
Personalidade forjada
em espaço inexistente
opiniões alheias e paisagens.
Ciberinfante ávido
de novidades e reconhecimento
em breve obsoleta infância.
De repente tudo vira nostalgia
a música, o jogo, a musa
a notícia, o escândalo.
Cada dia menos passos.
As ruas já não são sólidas
mas teias, redes de linguagens
miragens, dialetos visuais
amores sem tato ou cheiros
emoções plásticas, iras,
paixões falsas e frágeis.
O outro quase nunca está lá.
Mundo instantâneo de mensagens
a distância aproxima assuntos
caras e bocas, bicos, charmes.
Face a face ninguém se fala.
Os olhos dessa criatura conectada
presente do futuro desbravado
se fecham na madrugada
vão buscar um sono, um sonho.
Nessa hora o Homo Virtualis
mais personagem que pessoa
mais ícone do que ser vivente
descobre que está e sempre esteve
só.


GESTO UMBILICAL

Não olharás, dizem uns e outros
Onde está escrito que não devemos olhar?
Em algum tratado filosófico?
Pouco importa, mesmo assim olharei.
Olharei atentamente para o meu umbigo.
Qual o espanto? Não ligo.
Alguns falam com botões.
Metafísico, tridimensional, transcendental
o terceiro Chakra, a roda da divina energia
o vórtice captura a força do sol e a expande.
Caldeirão de secretas alquimias
onde se irmanam e transmutam as emoções.
Na barriga treme o frio da injustiça
o êxtase da merecida vitória
o tesão da língua do ser amado.
Nele guardo romeus e julietas
uma ciranda de nomes
cenas de filmes, umas luas cheias
passos de dança, um cheiro de chuva
alguns perfumes ciganos
umas bonecas escondidas que nino
e miniaturas de sonhos que coleciono.
Lá habitam infernos rimbaudianos
venenos lentos, punhais afiados
uns abismos com os quais flerto
e uma paixão de últimas consequências.
Levo no meu umbigo a tataravó índia
caçada por meu tataravô português
que desceu de uma nau na Bahia
e o nome que me escolheu
Jurema, cabocla das matas, seiva
Diana tupiniquim, canto, erva de ritual.
Guardo as mãos claras de minha mãe
capturando paisagens nas telas
E a voz de meu pai entoando
hinos com a inocência de um menino.
Uma discreta bisavó francesa
saudades de Paris que nunca vi
avós italianos fugidos de guerras
e as histórias perdidas que nunca ouvi.
Meu umbigo de poeta
é surrealista, modernista
espelho de Alice
eldorado das palavras vivas
o invisível que se mostra no silêncio.
Democrático e anárquico
ele me transforma em uns.
Ligada a tudo me solto
na textura das possibilidades
neste meu universo paralelo.


MEU HOMEM

Meu homem de cabeleira de velocino de ouro
De pensamentos de explosões de supernovas
De silhueta de renda
Meu homem de silhueta de boto rosa em lua cheia
Meu homem de boca de bouquet de abismos de edelweisses
De dentes de desmanchar laço e galáxias
De língua de magenta e de morangos maduros
Meu homem de língua de estilete e sabor de baunilha
De língua de sete idiomas de sete anjos
De língua de benaventuranças
Meu homem de cílios de impressão de nanquim da China
De sobrancelhas de tabaco de Havana
Meu homem de têmporas de vibrações de oboé
E pulsar de canário
Meu homem de ombros de arca sagrada
E de centímetros traçados com régua e esquadro
Meu homem de punhos de desconstrução do poema
Meu homem de dedos de secos e molhados e confeitarias
De perder e achar signos
Meu homem de axilas de penas de águia e onix
De dourado de asa de borboleta
De outono e de folhas as margens do Sena
De braços de raízes de figueira e vagalumes
E de carrossel que gira auroras
Meu homem de pernas de rimar ruas
De movimento de pianista e verso livre
Meu homem de barriga da perna de casulo de bicho da seda
Meu homem de pés de amuleto Inka
De pés de papiros de secretos monges
Meu homem de pescoço de papoulas arcoirizadas
Meu homem de garganta de bola de cristal da Boêmia
De fotossíntese de avencas
De peito de citaras
Meu homem de peito de dirigível em chamas
Meu homem de peito de camélias brancas
De peito de talagarça bordado com neon
Meu homem de ventre de incenso de jasmim
De ventre de vitrais policromáticos
Meu homem de costas de lírios pintados em veludo negro
De costas de azul de um dia de abril
De costas de leque de lâminas argênteas
De nuca de essências de mitos
E de Campos Elíseos
Meu homem de quadris de cerâmica
De quadris de ambrosia e de louça
E de cinzel de esculpir deuses
De fúrias de moinhos
Meu homem de nádegas de damasco e hortências
Meu homem de nádegas de acrobacias de aeroplano
Meu homem de nádegas de revoluções e bandeiras
De sexo de sortilégios
Meu homem de sexo de tato de lamparina
Meu homem de sexo de ondas de rádio e parabólicas
Meu homem de sexo de impressionismo francês
Meu homem de olhos de vôo de beija-flor
De olhos de domingos perdidos em corais
Meu homem de olhos de ardências de Lilith
Meu homem de olhos de gotas de óleo de amêndoas
Meu homem de olhos de inseminar luas no céu
De olhos de sol entrando pela fresta da palavra.

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Nota: O poema “Meu homem”, uma viagem pelo corpo do homem paixão numa visão surrealista, elaborado a partir da leitura de “L’Union Libre” de André Breton.

1 comentário em “5 Poemas de Jurema Barreto de Souza”

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