Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 37
Organização e tradução de Floriano Martins
Louis Aragon foi uma das mais importantes vozes do Surrealismo. Ao final da 1ª guerra mundial, conheceu André Breton, que o pôs em contato com as andanças do Dadaísmo. Em consequência, acabou fundando com este e com Philippe Soupault, uma revista que levava o nome de Littérature, em 1919, que deu início às atividades surrealistas anos antes da publicação do Primeiro Manifesto. Seu primeiro livro, Feu de joie, foi publicado em 1920, a ele se seguindo vários outros. Poeta, romancista e editor, em 1928, ele conheceu Elsa Triolet, escritora russa e cunhada do poeta Vladimir Mayakovsky, que não só teve forte influência na obra de Aragon, mas também se tornou sua esposa. Tendo se filiado ao Partido Comunista, o escritor decidiu viajar para a então União Soviética em 1930. Retornando a Paris, ele se distanciou dos surrealistas e, sob a orientação de Mayakovsky, publicou Le Front Rouge (1930), um poema que incitou a revolução e que rendeu ao seu autor uma pena suspensa de cinco anos.
PESSOA PÁLIDA
Mais mísero do que as pedras
Triste a mais não poder
o homem esquálido
o atril teria querido aniquilar-se
Que frio O vento me penetre no lugar
das folhas
das orelhas mortas
Apenas como espernear para afugentar o frio
com que pé iniciar a semana
Um silêncio que nunca acaba
Nem uma palavra terna para enganar o inverno
A sombra da alma do amigo A escritura
Tão somente as senhas
Meu sangue daria uma única volta
Os sons se perdem no espaço,
como dedos congelados.
Nada mais
que um patim abandonado no gelo
O fulano
Através dele se vê o dia
CARLITOS MÍSTICO
O elevador descia sempre até perder o fôlego
e a escada subia sempre
Esta dama não entende o que se fala
é postiça
Eu que já sonhava com lhe falar de amor
Oh o dependente
tão cômico com seu bigode e suas sobrancelhas artificiais
deu um grito quando eu os puxei
Que raro
O que vejo Essa nobre estrangeira
Senhor eu não sou uma mulher leviana
Ui a feia
Por sorte nós
temos valises de pele de porco
a toda prova
Esta
Vinte dólares
E contém mil
Sempre o mesmo sistema
Nem medida
nem lógica
mal tema
[EU RETORNO AO QUARTO]
Eu retorno ao quarto Um quarto Não importa qual Não
Não importa qual a não ser
Este não sei onde ou não sei quando a não
Ser este em um sombrio hospital no campo onde as árvores
Cegam a janela verdes e negras um
Quarto em que tudo é pó passado noite nada
Se põe em pé nem as cadeiras nem
O criado-mudo um castiçal o tapete inclinado
E a alta cama de edredons desgastados com a colcha branca
Sua franja de pompons arrancados
Como nós tivemos pelo menos eu este quarto
Amei
Quando então em que século em que ano
Tudo como um relógio imóvel do qual é possível dizer a hora e o minuto porém
Qual século qual estação
Nós sabemos bem
Teus sapatos juntos a uma poltrona inquietos
A roupa caída pelo chão
Tudo não é mais do que um murmúrio enorme no limite do ser
Um louco e doce cansaço na beira do sonho
Alguém fala lá fora e isto é o silêncio
Talvez alguma vez eu pensei talvez
Voltaremos a recordar este quarto em outro lugar
Não importa onde amor meu fora do mundo
Pensei voltaremos a recordar Em uma cidade de clamores À beira de uma praia em que o mar lentamente morre
Em um país de sol violento em vidros vermelhos
Em algum lugar da Alemanha ou nesse país de estátuas
No limite dos bosques Eu pensei
E aqui hoje estou novamente sentindo a queda
Na profundidade do leito antigo de uma pedra e muito longe
[TODOS OS QUARTOS]
Todos os quartos de minha vida
Terão me estrangulado entre seus muros
Aqui os murmúrios se afogam
Os gritos se rompem
Aqueles em que vivi sozinho
Com grandes corredores vazios
Aqueles
Que guardavam seus espectros vazios
Os quartos da indiferença
Os quartos da febre e aquele que
Eu havia instalado com a finalidade de ali morrer friamente
O prazer alugado As noites estrangeiras
Há quartos belos como feridas
Há quartos que pareceriam triviais
Há quartos de súplicas
Quartos de luz baixa
Quartos dispostos a tudo exceto à felicidade
Há quartos que para mim estarão sempre de meu sangue
Salpicados
Em todos os quartos chega um dia em que o homem neles se
Esfola vivo
Em que cai de joelhos pede piedade
Balbucia e se emborca como um vaso
E sofre o espantoso suplício do tempo
Derviche lento é o tempo redondo que gira sobre si mesmo
Que observa com olho circular
O esquartejamento de seu destino
E o ruído mínimo de angústia que precede as
Horas as meias
Jamais sei se o que vai anunciar é a minha morte
Todos os quartos são salas de justiça
Aqui conheço minha medida e o espelho
Não me perdoa
Todos os quartos quando finalmente adormeço
Lançaram sobre mim o castigo dos sonhos
Pois não sei o que é pior se sonhar ou viver