Laís Romero (Teresina, 1986) é mãe do Luís e do Júlio. É formada em Letras e mestra em Literatura pela UESPI. Especialista em Escrita e Criação pela UNIFOR. Integrou o Coletivo Academia Onírica, em 2010, na promoção de saraus, além da publicação de revistas e uma gravação de poemas. Estreou com o livro ‘Mátria´ (Paraquedas, 2023). Está lançando o livro de poesias ‘Exames aleatórios de imagem’ (Mórula, 2024). Participa da coletânea de contos ‘O dia escuro’ (Companhia das Letras, 2024). Atualmente é revisora, redatora e cursa medicina.
Poemas do livro Exames Aleatórios de Imagem (Mórula, 2024)
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negociar com o desejo
até acreditar palavra
lançada em saliva
negociar o desejo
até resistir unhas
e lábios em corisco
a morte do desejo
é o pulo no abismo
um peito escancarado
o sangue impossível
âncora na madrugada
violência natural
ser cadáver numa cidade
também cheia de cadáveres
construir a ideia do cadáver
de contornos endurecidos pelo frio eterno
colar suas pálpebras
para que olhos-pedra
não assombrem aos que choram
para que na memória
possam guardar como sono
no lugar do aspecto bárbaro
que tem a morte
fugir das vísceras, fluidos e fisiologia
disfarçar o mau cheiro
resultado da alimentação
contínua e invisível
talvez uma maquiagem
boa saúde nas bochechas
um pouco como costumava
fazer o vivo que ali morava
mas agora é um cadáver
mil vezes cadáver
que não se importa com a raiva
a tristeza ou o incêndio que fica
depois que se apertam os parafusos
e descem o caixão
e cimentam a entrada
pode enfim o cadáver
abrir os olhos
tirar a roupa
perder as vísceras
apodrecendo calmo
como fazem os cadáveres
todos eles deitados
com suas melhores peças
velas ardendo em seus telhados
sapatos em seus pés
vão ficando folgados
a carne encolhe
e revela um sorriso
sempre aberto
é tempo de colheita
é tempo de finados
procissões, missas e flores
não perturbam os mortos
não engatam conversa
não resvalam sequer
entre os corpos secos
que se desfazem como folhas
de manhã cedo
no meio do orvalho
rio abaixo, rio arriba
as águas do parnaíba
arrocham o peito
estouram os ouvidos
queimam as narinas
saciam a sede de quinhentas
e cincoenta
moradoras felizes proprietárias
minha casa minha vida
mobiliadas com as geladeiras
enferrujadas e sem a nota fiscal
do troca-troca
vamos conjurar os nomes
antes de entrar na chalana
custa cinco reais o passeio
mais tarde ou cedo
as bicicletas lotam
uma paisagem do abismo
lateral da metálica
ponte do meio
ponte nova
passagens de um novo final
para nossa viagem diária
as águas do parnaíba
aboiam o medo da morte
reflexo do céu sem nuvens
azul desespero ostentação
vinde a mim as criaturas
reverso do poty escuro
poti segredo
peixe e camarão miúdo
olhe
nasci aqui e cresci
nesse bairro mesmo, te confesso
tinha mangueirão e senzala
tinha faca e bala
e não tinha pressa
dia desses fiquei trancada
no banheiro
pensei que fosse ter paz
mas arrombaram a porta
pensei que fosse dormir
mas arrancaram a tranca
pensei que fosse passar
mas continuo aqui
nas águas do parnaíba
salmo de número I
(para rezar com o corpo inteiro)
lento o rio mais profundo
avança indiferente aos apelos
lento o rio mais frio
revolve o âmago da terra
apesar das horas
apesar dos crimes
apesar das guerras
lento lento o rio força
entradas e saídas nas rochas
lento lento ele ignora
os afogados durante eras
apesar dos sinos
apesar do sangue
apesar dos gritos
ele não volta
ele não seca
linhas imaginadas
os refugiados são um país
árvores envergadas com galhos arrastando
ao chão
sentem frio
sentem peso
sentem medo
verdades e palavras dificílimas
coisas que não pertencem aos idiomas
que lhes foram ensinados
quando ainda mamavam ao peito
resfriados
mamavam ao peito
empoeirados de estradas e explosões
mamavam ao peito