Curadoria e tradução de Floriano Martins
Jesús Urzagasti (Bolívia, 1941-2013). Poeta e narrador. Trabalhou no jornal Presencia, de 1972 a 1998. Foi revisor, chefe da seção cultural, editor-chefe e diretor do suplemento Presencia Literária. Livros de poesia: Yerubia (1977), La colina que da al mar azul (1993), El árbol de la tribu (2004), e Frondas nocturnas (2008).
YERUBIA
Eu te chamo do ventre da vida afogado pelo vento
te nomeio quando meu sangue reivindica a grama do cavalo.
Sob as estrelas habituais, o céu parece-me mais brilhante.
Aprisionado pela sombra de teus olhos descubro a selva
a origem infinita do amor convertida em clima terrestre.
Uma vez fui cavalo na planície que percorrem os sonhos
acabado de parir o tigre lutou até rosnar para as árvores
enquanto pássaros estranhos dormiam no centro da noite.
Noite lunar mutável e propícia para o sangue inflamado
além de tais fronteiras o Universo sobressaltado
como se pressentisse que nessa decidida e pétrea solidão
o aroma perturbador de tua ausência tivesse feito um ninho.
Porém viajo. As cidades explodem como artificiais
fogos como luminárias perturbadas pelo silêncio.
Velhos parques rotas acesas dos que nunca se curvam
fim da suavidade e começo da paixão selvagem
tantas vezes parado por maldito destino quis te saudar
a pomba ausente do coração do bosque o olho aberto.
Não sou mais aquele que meteu o pé no rio cego
mas sim a matéria insolúvel que as águas lustram sem medo.
Perdoado por uma jornada de luzes e sombras
como um raio me iluminam outras árvores outras infâncias
talvez o sorriso louvado de um Deus morto. Quem quer
que sejas luz de maio agita tua aparição o mundo solar.
“Está nevando lá fora, parece que está nevando” – diz a voz
de todos os dias entonação de mulher não há dúvida tigre.
As panturrilhas nuas recebem o suave crepúsculo
enquanto meu ser em alpargatas caminha na areia quente.
Não me deixes peço em meu idioma secreto àquela montanha
não me abandones neste deserto de palmeiras ilustres.
Barriga nua passa no tapete alheio à queima da luz
talvez para sempre deslumbrado por um ofício mais sagrado.
Cerimônia final são meus olhos quando descobrem catedrais
começo do mundo quando o sono traz o idioma dos pássaros.
Muito além da montanha resplandecem as cidades de Deus
porém no meu exílio adivinho o fio seguro da redenção.
A violência do destino me deixa surdo para outra fé
Que não seja a transfiguração imóvel de tua sombra.
Às vezes volto para a terra às vezes me torno um boi
sem ofensa assumo a sede infinita da planície desértica.
Alcançada pela estrela nunca mencionada minha fronte sua
transpira e se define apoiada na fresca flor do diabo.
Recordo tuas tranças e a Cruz do Sul talvez do vento breve
teus olhos vindos do inconsolável lago de orações
Incorporando-me ainda descubro outras lendas em teu corpo jovem
fecho os olhos para não suspeitar em ti a maga em penumbras.
Agora começo a cortar a montanha e procurar goiabinhas
que dúvida cabe com meu alforje vazio de caminhante não há dúvida
Impensável a sede me esmaga em uma poça de mosquitos.
Olho para o céu para guiar a direção de meu sangue
e à noite acendo o fogo nunca na costa da paz
mas sim na selva impenetrável de teus olhos sol de verão.
Porém uma força que excede meu sangue amotinado me move
para a cidade fria concebida como um horizonte para condores.
Palha brava luz erguida em direção ao árido soluço ancestral.
Aqui nomeio o tigre. Expresso a fera ao elogiar tua música
a inimitável canção celestial que surge de tua melancolia.
OS CAMPOS ESQUECIDOS
Uma voz há muito escondida nas árvores
fala comigo de sentimentos sagrados, de uma taça azul,
quando a umidade desce à terra amada.
Talvez chova suavemente, talvez eu ainda ame
as ternas maneiras que a vida tem comigo.
Caminho desajeitadamente nomeado, não me deixes
e me deixe iluminar teu mistério com minha voz cega.
Eu me aproximo do fim certo e a unidade me abraça
embora eu nada leve em minhas mãos
nem a beleza que apascenta os segredos da terra
nem aquele canto que a juventude me prometeu em soluço.
Desde um dia noturno meu coração fala contigo.
Os frutos caem na hora certa na terra plácida.
O que foi vivido gerou uma criatura desconhecida,
meu peito se rompe por seu impulso cristalino
e lhe oferece o silêncio que governa os astros.
Oh! Viajante, uma lei elementar da natureza disse
que um homem são só pode amar. Perseguido
pelo inumano, seduzido pela melodia secreta das coisas,
começa a amar esta tarefa milagrosa que termina
onde o olho cego da noite inspira respeito.
A ÁRVORE DA TRIBO
A solidão é isto e um rio que não cessa
entre penhascos e terras cultivadas.
É uma árvore que sai de uma sala
à procura do céu.
Talvez uma praça
com pombas que rompem a arquitetura do passado
e instalam o presente naquele homem
que lembra um poema
um modo de ver e remover uma cadeira azul
enquanto o rio desliza ruidosamente
procurando a cidade que habitas como uma árvore
que deixa a sala. És outro
entre o céu e a noite
que não cessa de bater as asas
e ao amanhecer se cala.