Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná, 2ª edição pela ed. Confraria do Vento, 2017 e e-book pela Camino Editorial, 2021), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta (ed. Caos & Letras, 2020), Estive no fim do mundo e me lembrei de você (Selo Altamente Recomendável FNLIJ 2022, ed. Peirópolis, 2021) e A bandeja de Salomé (Caos & Letras, 2022).
Poemas do livro inédito “Tripalium”.
ESTETA
Muitos búfalos mortos por flechas ordinárias
Dessas feitas de manhã em grandes feixes
Fazer as flechas e depois partir matando búfalos
E fazer mais flechas, pois há também o veado
E o bisão
Sentar-se, fazer mais uma flecha e outra e outra
De modo a matar bisões, mas nunca o tédio
Produzir flechas e mais flechas e mais flechas
Até demorar o tempo de fabricar dez delas
Fabricando apenas uma: aquela
Em que na ponta se dará o formato de uma amêndoa
Onde se sulcará riscos imitando uma folha
Em que se pintará a cor de um céu vermelho
Metafórico e inútil
Matar antes da caçada o animal diário
Que começa a aprender a consolar-se.
QUEM TEM BOCA DIZ O QUE QUER
Salomão, que recebia seiscentos e sessenta e seis talentos de ouro de tributo ao ano
Disse que tudo é vaidade debaixo do Sol e que nada faz sentido
Salomão, que só se servia em taças de ouro
Disse que tudo era uma grande inutilidade e que todas as coisas davam canseira
Salomão, que possuía uma frota de naus que lhe trazia marfim, prata e ouro
Disse que os olhos não se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir
Salomão, que usou milhares de trabalhadores para construir o Templo de Israel
Disse: “Que fardo pesado Deus pôs sobre os homens!”
FILANTROPOS
Sou um filantropo e por isso me preocupo com a vida das crianças
Por isso as emprego em minha fábrica
Pois se não as empregasse elas estariam nas ruas, famintas
E sem sustento
Porque se não estivessem em minha fábrica, famílias inteiras
De seis, sete, oito, nove filhos, estariam desprotegidas
E me preocupo muito com as crianças que, se passam doze horas
Produzindo brinquedos em minha fábrica, chegam em casa e dormem
Exaustas, incapazes de fazer o mal, pois a cabeça vazia
É a oficina do diabo, a minha fábrica
Tive lá uma ideia incrível (revelada em sonho)
Decerto, um recado do anjo Gabriel, o anunciador de crianças:
Em minha fábrica, enquanto elas trabalham por doze horas
Eu as ensino a cantar lindas canções alvissareiras
Para que se distraiam e se lembrem de que o trabalho
Dignifica o homem.
EM ALGUM CESTO PARA O SÉCULO XXI
Caput
Capital
A cabeça
O principal
Pecado capital
Capitalis
O cabeça
Decapitar.
AOS PÉS DAS MONTANHAS
As montanhas poderiam nos salvar
Se quisessem
Mas por que o fariam
Feridas de morte, ontem mesmo, à tarde?
É por isso que, na má vontade, deixam
Transbordar as barragens e descer a lama
E não usam seus longos braços de minério
Muito menos caminham suas poderosas patas
As montanhas fingem inércia e riem
Discretamente, enquanto desaparecemos.