RODRIGO ARAÚJO (PE) É historiador, professor, cinéfilo e tem talento pra boemia.
Uma imagem vale mais do que mil palavras? Eis o questionamento que paira após a leitura do livro Diante da dor dos outros (2003) da escritora e ativista norte-ame-ricana Susan Sontag. Em seu último ensaio lançado em vida, Sontag propõe reflexões acerca dos limites da representação das imagens traumáticas de guerra. Sua análise é conduzida dentro de uma perspectiva que problematiza a relação entre fotografia e realidade. Será que uma imagem consegue captar toda realidade do vivido? Até que ponto esta mesma imagem consegue materializar o fato e sensibilizar o outro através do que é exposto?
As inquietações de Sontag nos ajudam a pensar as representações da tortura no cinema brasileiro pós-ditadura. Em uma sociedade ainda fragilizada por eventos traumáticos, abordar a dor do outro nem sempre é uma tarefa fácil, tendo em vista a dificuldade de se falar sobre algo que muitas vezes é visto como “constrangedor” pelos olhares insensíveis de alguns. Desta forma, qual seria o limite entre a representação imagética da dor e aquilo que não deve ser exposto? Diante de tal dilema, a cineasta brasileira Lúcia Murat nos apresenta ao filme Que Bom Te Ver Viva (1989).
Lúcia nasceu no Rio de Janeiro em 1948. Passou parte de sua juventude dividida entre o curso de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e os debates em torno do movimento dos estudantes, chegando a ser vice-presidente do diretório estudantil daquele curso. Em 1968 participou do congresso da UNE em Ibiúna quando foi presa pela primeira vez. Posteriormente fez parte do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). A cineasta foi presa pela segunda vez em março de 1971. Levada ao DOI-CODI sofreu inúmeras sevícias, tais como choques elétricos em sua língua e vagina; passou horas pendurada no pau-de-arara; teve o corpo tomado por baratas durante as torturas, além de ter sido vítima de violência sexual. Ao que nos parece, o cinema de Lúcia Murat passou a servir como uma espécie de equilíbrio para encarar e retomar a vida.
Na década de 1980, anos após sua prisão, Murat iniciou uma intensa terapia para tratar das memórias traumáticas que levava consigo. O filme nasce como resultado deste processo e seria uma forma da cineasta lidar com a própria dor diante da tortura, tornando-se um marco na cinematografia brasileira por ser um dos primeiros filmes a falar abertamente sobre o tema durante o regime civil-militar sem, entretanto, apresentar nenhuma cena explicita de algozes ou pessoas sendo torturadas.
Oscilando entre documentário e ficção, Que Bom Te Ver Viva consegue tocar o espectador através dos depoimentos de oito mulheres que foram torturadas. O filme ganha um tom ficcional através de monólogos que são interpretados pela atriz Irene Ravache. A personagem tem um papel relevante na trama e deve ser observada sob dois pontos de vista. O primeiro deles é o poder de síntese que exerce ao relatar com propriedade as histórias das mulheres que aparecem aos poucos através de seus depoimentos. O segundo é a representação das angústias e questionamentos da diretora que passam a ser materializados na personagem (servindo como uma espécie de alter ego).
Ravache representa as inúmeras mulheres que foram torturadas e que aparecem no filme, bem como as diversas outras que passaram pelo infortúnio e que muitas vezes não conseguiam/conseguem falar sobre o tema, seja por vergonha, dor ou receio da rejeição. Ressalto neste ponto a relação da tortura com o universo feminino, não por ser algo tratado pelo filme de forma unilateral, afinal de contas o trauma físico e psicológico independe do sexo ou gênero, mas toco de maneira particular por observar na obra diversos pontos ressaltados nos discursos das depoentes e da personagem.
Boa parte das entrevistadas ressalta que a maternidade foi de alguma forma o ponto de partida para a superação da dor. É como se na possibilidade de ser mãe estivesse o sentido para prosseguir com as suas próprias vidas. Ao mesmo tempo em que aborda os diversos depoimentos, o filme estabelece um contraponto com a fala de amigos que lançam o seguinte questionamento: “como depois de tudo ela consegue casar e ter filhos?”, ficando subentendido que, na visão de algumas dessas pessoas, a barbárie da tortura seria insuperável. Como se não bastasse o trauma, está implícito nos discursos uma ideia de que a torturada está condicionada a carregar o martírio da dor pelo resto de suas vidas e qualquer movimento no sentido de superação passa a ser visto com estranhamento.
Na mesma perspectiva, perpassa a inquietação da personagem no monólogo que trata sobre os desejos sexuais. Em um tom de intimidade, tocando-se diante do espelho, Ravache expõe os limites entre a tentativa de expor seus desejos através do sexo e a dificuldade de fazê-lo, não necessariamente por si, mas pelo comportamento desconcertante do seu parceiro e, sobretudo, pelos olhares inquisidores da sociedade.
Te amo… ai cara que saudades eu tenho de você… ai como eu gosto de trepar com você… você deixa… não se incomoda… nunca me perguntou nada. Eu também não quero dizer como é que foi. Eu finjo que não sofri tortura sexual, você finge que não sabe de nada. Eu finjo, tu finges, nós fingimos. Ah meu amor, eu adoro você […] O resto é passado, o resto é violência, o resto acabou. Ah meu amor, que mentira ‘o que passou, passou’, que mentira… eu odeio quando vocês dizem que se fosse com vocês, nunca mais vocês trepariam. Eu gosto de trepar! Porque eu não tenho o direito de gostar? Porque marcaram o meu corpo? Não marcaram não é só lavar. Não marcaram. Agora o que é insuportável é ver vocês me olharem com esse ar constrangido de quem não sabem como se pode gostar de trepar depois de tudo o que aconteceu.
Ainda no tocante à sexualidade, a personagem trata sobre o medo da rejeição ressaltando que muitas vezes as presas políticas são vistas como mártires. Pensando na possível rejeição com relação ao seu parceiro, a personagem comenta: “acha que não vai mais conseguir trepar comigo porque com mártir não se trepa. É nossa senhora… é Joana D’arc… quem é que trepa com Joana D’arc?” questiona-se em tom de revolta. A dualidade dos sentimentos é uma constante na narrativa. Como se a personagem falasse ao fluxo do pensamento, recorrentemente sentimentos opostos são colocados para transpor a ideia de conflito ao lidar com o tema.
Outros assuntos de fundamental relevância são tratados na película. Em um dado momento, Ravache tece uma crítica ao governo brasileiro no que tange à ausência dos julgamentos aos crimes de tortura. Em outro, há uma clara menção aos meios de comunicação que insistiam em reproduzir os discursos do período da ditadura associando a imagem dos guerrilheiros a “terroristas” e tratando alguns torturadores como “médicos”. Há ainda uma crítica aos jornais que comentam de forma irônica o excessivo número de publicações das memórias da esquerda sobre o período, como se houvesse um limite para tais publicações. Ao mencionar o assunto, percebemos uma alusão à disputa pelos espaços de representação das memórias.
A diversidade dos temas que são expostos em Que Bom Te Ver Viva, mais do que um retrato sobre as inquietações do pós-abertura, nos levam a pensar a própria condição humana em inúmeros aspectos. Ao nos depararmos com os depoimentos e o desejo incessante de seguir adiante, passamos a nos questionar sobre as nossas próprias angustias e a forma que lidamos com elas em busca da superação. No processo de empatia com as personagens, somos ao mesmo tempo tomados pelos discursos e de certa forma pelos sentimentos relatados.
A necessidade de pensar a tortura como um tema presente, tendo em vista os enraizamentos da violência na sociedade brasileira contemporânea e os constantes casos de violação de direitos humanos, mostra o quanto o filme é atual e talvez o resultado da obra seja a melhor resposta para a pergunta que é feita pelo amigo de uma das entrevistadas. Ao problematizar a relevância naquele momento de roteirizar uma história que abordava como tema central a dor, o amigo de Pupi indagou-se: “mas quem vai ver um filme sobre tortura?”.