Sons para ver o mundo

| |

Por João Paulo Peixoto Costa

Cearense, professor de história do IFPI. Estuda os índios da história do Brasil e ama a Jordana (o restante da descrição foi censurado por este editor para evitar maiores escândalos).


Conheço João Paulo há dez anos (uma amizade pegajosa, suada e bem resolvida) e de lá pra cá aprendi a reinventar minha dignidade musical graças a ele. João tem um dos ouvidos mais apurados que conheço. Virei fã dos Los Índios Tabajaras a partir de uma sugestão nessas conversas que temos regadas com café, bolo e brownie feitos pelas mãos da sua amada Jordana Ribeiro. Enquanto comemos, João Paulo vai mostrando um cardápio de referências sonoras que acolhe os ouvidos mais exigentes.

Finalmente ele topou escrever e encaminhar aos leitores e leitoras da Acrobata uma salada rica em músicas cheias de originalidade e beleza. Guardem os discos, dê o pause no spotify e permita-se mergulhar nesse universo refinado de tendências que fogem do mapa cartesiano conduzido pelo show business pop-ocidental.


Me lembro até hoje: em uma viagem a Teresina quando tinha nove anos, ganhei um atlas do meu tio-avó Chico Cardoso, e o fascínio imediato do livro me fez decorar o nome de todos os países do mundo. Já adolescente, descobri um programa de TV a cabo chamado “Planeta solitário”, em que um mochileiro viajava por vários países aleatórios que, nos meios onde eu convivia, só eu sabia da existência.

 Mais ou menos nessa época me apaixonei por um jogo de PC chamado “Age of Imperes” em que era possível se imaginar viajando por outras culturas de lugares distantes e desconhecidos. Mas os “diferentes” sempre estiveram bem perto de mim: quando ia de Fortaleza para o Icaraí gostava de observar os índios Tapeba da aldeia da Ponte.

Não eram como “nós” (?), mas também não pareciam aqueles caras da Amazônia ou do Xingu. Quem eram, então? Qual era sua história? Sabendo de algumas dessas coisas, minha prima Olívia fez a sugestão que mudaria pra sempre minha vida: “porque tu não faz História?”. Virei historiador de povos indígenas.

Aprendi a tocar baixo e violão, tive bandas, virei compositor, gravei com amigos e um disco solo. A música também é inseparável de mim, assim como minha curiosidade de ver o mundo. A vida de professor e pesquisador me ajudou a conhecer um bocado do Brasil, Ceará e do Piauí, mas nunca saí do país.

Só que um dia inventaram o YouTube e consegui juntar essas duas coisas que me constituem tão arraigadamente: a música e a vontade de viajar. Pela internet também dá para andar por aí e ser espectador da vida, das pessoas, das coisas que elas fazem, dos sons que elas produzem.

A referência mais antiga a me impulsionar nessa road trip sonora foi Manu Chao. Um francês filho de galego que escolheu a musicalidade latina como trajeto. Próxima estación: Esperanza foi arrebatador, especialmente a clássica Me gustas tú, até hoje minha trilha mental de quando pego estrada.

Talvez por influência dele fui estudar sua língua materna, até que alguém me apresentou Tryo. Uma banda francesa de reggae com uma instrumentação muito pouco eletrônica, e uma qualidade de arranjo, rítmica e lírica absurda. El dulce de leche, a história de um exilado chileno ainda na infância que resolve voltar já adulto para a terra natal (ou, quem sabe, para si) me emociona até hoje: “‘C’est ça être français’, j’em doute!”

Por ser tachado de musicalmente “diferentão”, fui impulsionado a ir para terras e sons mais distantes. Curtia ska, estilo nacional da Jamaica à época de sua independência em 1962 e que fez Bob Marley e The Waillers estourarem com Simmer down no ano seguinte, gravada com The Skatalites.

Leia também:  Disciplina e Invenção: para compreender a história dos povos indígenas no Brasil

 De repente, num pulo, do Caribe fui bater no Japão, quando descobri a Tokyo Ska Paradise Orchestra. A banda atua desde 1988 e conta com “apenas” 22 álbuns, mas no meio dessa produção frenética me bastou Pride of Lions. Cantada em inglês, divertida, com metais contagiantes, uma bateria que não descansa, e, só pelo fato de ver 10 japas de terno curtindo um som jamaicano numa pegada própria, a conclusão não podia ser outra: o mundo é muito massa!

Meu interesse pela história dos índios me possibilitou descobrir que no Japão também tem povos indígenas. Esbarrei com Oki Kano, do povo Ainu da ilha de Hokkaido e líder da hipnótica Oki Dub Ainu Band, com canções em ainu. Em paralelo, sem deixar o Caribe e a América Central de lado, conheci o povo Garifuna de Belize, fruto da mistura de aruaques, caraíbas e escravizados africanos, e de onde veio The Garifuna Collective.

 Escuta Mongulu, cantada na língua garifuna, e me diz se não é massa! Continuei a cavucar por mais produções sonoras autóctones, e me deparei com o Huun-Huur-Tu, banda do povo tuviano, na fronteira da Rússia com a Mongólia, que me ensinou que o ser humano pode cantar emitindo dois sons ao mesmo tempo, sem falar de um gutural que nos arrebata a outra realidade.

No embalo das manifestações étnicas mundo a fora, sempre me interessei também pelos povos ciganos (um dia escreverei sobre a passagem deles pelo Ceará e Piauí nos oitocentos). Minha porta de entrada nesse universo tão heterogêneo foi o Taraf de Hadoux, da Romênia, liderada por Caliu (que depois fundou o Taraf de Caliu, na mesma pegada).

 Conheci-os pelo documentário Nul n’est prophete en son pays e fui viajar. Coloque qualquer música deles no YouTube para ver como são mais virtuoses que todo metal melódico do mundo! Depois fui pirar com Gogol Bordello, e só a definição do estilo da banda dispensa maiores explicações para o meu êxtase: gypsy punk!

O grupo é formado por um cigano rom da Ucrânia, dois russos, um israelense, um etíope, um trinitário, um equatoriano e uma dançarina sino-escocesa! O som de Wonderlust King é de um empurrão pra tacar feliz o pé na estrada, até que cheguei na voz deliciosamente melancólica de María José Llergo, cigana da Espanha. Com Canción de soldados e Niña de las dunas,ela foi só o início de outra jornada: a música mediterrânea.

Manu Chao já havia me apresentado ao brega-cafajeste italiano Tonino Carotone (Me cago en el amor!…) e ao berbere argelino Idir (ouvi Denia freneticamente). Deles foi só um pulo para me lembrar de rapper judeu ortodoxo Matisyahu (Youth é massa demais), Tinariwen e outras bandas tuaregues (pense numa cena surpreendentemente forte) e a iniciativa da Orquestra Mediterrânea que ouvi há alguns anos. De lá, descambar pro mundo muçulmano foi quase uma consequência natural.    

A pegada melódica do Oriente Médio sempre me encantou e um dia me deslumbrei com a bela turca Öykü Gürman. Acompanhada do violão absurdo do irmão Berk Gürman, sua interpretação em Evlerinin Önü Boyali Direk me alucina pela diversidade, riqueza e beleza do universo cultural médio oriental. Da Turquia voei para muitos países: ouvi a rapper estadunidense filha de sírios Mona Haidar, o hip hop palestino do DAM, Terez Sliman também da Palestina participando de God of revolution (é lindo de ver), a tunisiana Ghalia Benali maravilhosa em Lamouni li gharou minni. Bebi com a israelense Neta Elkayam cantando Muhal Nensah e em volta da fogueira do Yamma Ensemble tocando Komdja mia, canção de sefarditas da Espanha.

Leia também:  Oficina de Criação Poética com Edson Cruz

No meio de tanta coisa linda, profunda e intensa dessa parte do mundo, posso dizer que o Paquistão mudou a minha vida. Esse é um dos países que sediam o programa Coke Studio, que reúne diversos artistas que me fizeram viajar por muitas canções em urdu e que me fez conhecer o islamismo sufi e a música devocional qawwali.

 Foi engraçado como cheguei a eles: na onda de pesquisar sobre os ciganos, quis saber mais sobre o povo pavee, ou irish travellers, e achei sem querer a cantora Abida Parveen. Com seus cabelos volumosos, sua interpretação de Chaap Tilaki com Rahat Fateh Ali Khan me fez perceber que já caminhava em uma estrada encantadoramente desconhecida. Mas o arrebatamento veio com uma oração: Allahu Akbar, de Shuja Haider e interpretada por Ahmed Jehanzeb e Shafqat Amanat. Maravilha de composição, de arranjos e um convite à meditação para transcender. Como disse a um grande amigo: não se trata de uma cena, mas de uma tradição. Deus é grande, e se você não acredita como eles, só fecha os olhos e vai… Em tempo: descobri há pouco Alim Qasimov do Azerbaijão. Escute-o cantando A trace of grace na língua azeri e siga na viagem espiritual.

Todo esse encanto e beleza melancólica me remeteram à música latina e me relembraram Buena Vista Social Club (como tem tanta gente que não conhece?). Foi daí que segui na trajetória entre o Cone Sul, a América Central e a Península Ibérica. A argentina Mercedes Soza e o chileno Victor Jara são nossa alma que não conhecemos; é urgente assistir o clipe lindo de El baile del Kkoyaruna da chilena Pascuala Ilabaca.

 Voei livre muitos dias ouvindo Mi libertad dos colombianos do Monsieur Perine; cheguei em Soledad y el mar com Natália Lafourcade e Pequeño Vals Vienés por Silvia Perez Cruz: duas das coisas mais lindas que já ouvi na vida. Chore, sorria e ame à vontade!

A Espanha me apresentou Pedro Alborán, que com Carminho cantou a lindíssima Perdoname. Por algum tempo foi a primeira música que eu tocava assim que pegava no violão, lembrando da guitarra portuguesa de Luís Guerreiro e da voz da cantora lusitana – “o fado também corre nas minhas veias”, como disse Nelson Gonçalves.

O filme Fados, de Carlos Saura me introduziu nesse universo e teve um impacto muito grande em mim. Daí fui conhecer essa expressão tão desprezada aqui no Brasil. Nosso país do choro e da sofrência acusa cínica e injustamente o fado de ser enfadonho e piegas, talvez por não (re)conhecer o monumento que é Mariza!  Não surpreende que sua interpretação de Meu fado meu com o espanhol Miguel Poveda possa ser inalcançável para tantos brasileiros que tem por costume não saber de sua própria história (ou de si mesmos, e do quanto “herdamos do sangue lusitano”, como lembrou Chico Buarque).  

Leia também:  Precisamos falar sobre a questão indígena no Brasil contemporâneo

O desconhecimento de si é ainda maior no Brasil quando se trata do continente africano. O documentário de Saura me ajudou a preencher esse buraco próprio quando me apresentou à musa dos pés descalços! É bom demais ouvir Cesária Évora cantando Sodade no crioulo cabo-verdiano e sentir a estranha sensação de, pela África, ouvir algo profundamente nosso.

 Com ela comecei mais um trajeto: José Carlos Schwart com Si bu sta diante da luta e Super Mama Djombo com Sol maior para comanda são a comovente história de Amilcar Cabral e da Guiné-Bissau. Ouvi o guembri do jovem marroquino Mehdi Nassouli, o baixo referência do camaronês Richard Bona, a autoridade do sax saudoso de Manu Dibamgo (também de Camarões), a voz rouca do patrimônio malinês Salif Keita e os veludos da marfinense Fatoumata Diawara e da cabo-verdiana Mayra Andrade (tem uma tonelada de gente boa nessas ilhas), a kora da gambiana Sona Jobarteh e do malinês Toumani Diabate. Dei nó na cabeça com o etíope Mulatu Astatke. Dancei com o marfinense Alpha Blondy e Lura do Cabo Verde. Reverenciei Fela Kuti: o mestre revolucionário, e é um ABSURDO que tanta gente nunca tenha ouvido falar de Yellow fever e Beast of no nation.

Até que um dia eu vi ela cantar no filme La piel que habito. Concha Buika parece ser um resumo de tudo o que andei até aqui: filha de pais da Guiné-Equatorial, criada num bairro cigano na Espanha, cantora de flamenco. Apenas isso! Fui pesquisar e enlouqueci por não saber descrever sua interpretação de Oro santo acompanhada pelo violão de Javier Limón. Eu realmente não sei…

Tanta coisa vista e ouvida, e ainda há tanto o que conhecer. Fiz descobertas primorosas que me ajudaram na busca de novos lugares aonde ir pelo programa Tiny Desk Concerts, da NPR Music, e pela rádio KEXP, ambas dos Estados Unidos. Trazem coisas excelentes da América do Norte, ao mesmo tempo em que conseguem olhar e admirar o mundo que há em volta, apresentando artistas de muitos países diferentes, inclusive alguns dos foram mencionados aqui.

A última grande viagem que fiz foi quando cedi a um vídeo que sinalizava o tempo todo nos relacionados do YouTube. Era uma apresentação de rua da nigeriana Nneka com a inglesa Joss Stone, parte do Joss Stone Total World Tour: basicamente uma viagem de Stone pelo máximo de países que conseguiu, cantando com gente dos respectivos lugares. Vi todos os vídeos e foi maravilhoso viajar pelo mundo e conhecer o som de tantas pessoas incríveis (e olha que ainda faltam algumas nações a visitar).

Nosso planeta solitário não cabe num atlas, nem em uma playlist ou no YouTube todo. Definitivamente não sou especialista em quase nada, e muito menos me declaro como um conhecedor profícuo dos países cujo nome decorei. Eu sou só um espectador admirado com tanta beleza que tem por aí. As vezes vendo misturas, outras vezes subversões coloniais, nunca pureza, mas incontáveis originalidades e formas autônomas de se expressar. Ainda procuro descrever melhor a sensação de se deparar não apenas com músicas, mas com tantas realidades completamente diferentes. Só sei que dá um frio na barriga pensar que ainda nem vi nada, e que a viagem está apenas no início… Bora?

Imagem de abertura: Clipe El Baile del Kkoyaruna, de Pascuala Ilabaca.

Fonte: Internet.

2 comentários em “Sons para ver o mundo”

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!