André Monteiro (MG) é doutor em literatura pela PUC-Rio, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista de produtividade do CNPq, escritor e compositor em horas raras. Publicou os livros A ruptura do escorpião – Torquato Neto e o mito de marginalidade (1999), Ossos do ócio(2000) e Cheguei atrasado no campeonato de suicídio (2014).
Como Fazer (ou não) um Poema Profundamente Político?
o mais profundo é a pele
paul valéry
para nietzsche, sem os nietzschianos
deleuze, sem os deleuzianos
guattari, sem os guattarianos
e junin, com junin
um poema profundamente político
não se vende não se compra não se conta não se rende
não se ensina
nem sequer se insinua ao cacarejo político
um poema profundamente político não se faz com temas públicos
mas com temas impublicáveis
de corpos inauditos
corpos que dançam
no furo perplexo
da consciência
um poema profundamente político nasce
do orgasmo múltiplo inenarrável de incontáveis deuses
que se olham e se tocam e se beijam e se amam e se queimam e se jogam à vida
um poema profundamente político
não se faz com versos
não se faz com terços
não se faz com livros
um poema profundamente político não é um poema sobre a política
mas com a política do que não tem política e nunca terá
um poema profundamente político
é quase-poema quase-política
não tem receita poética
não tem receita política
tem a fome
de uma vida que se devora sem remédio
um poema profundamente político
não é um poema sobre o povo nem para o povo
e sim com o povo que nele se inventa e se sacode
um poema profundamente político nasce do desejo dos corpos do chão
quando não suportam mais o peso do mundo
um poema profundamente político não é macho nem é fêmea
não é negro nem branco nem azul nem amarelo
não é homo nem hétero nem bi nem tri nem tetra
não é careta nem moderninho
não é anarquista nem governista
não é de centro nem periférico
não é direito e nem é gauche
não é santo e nem é demônio
é redemoinho ferido de fúria
um poema profundamente político é um poema sem poeta
um poema profundamente político é um poema da vida sem a mania da vida
um poema profundamente político é sempre profundamente demais
para a poesia e a política de um só rosto
um poema profundamente político não é de deus nem do diabo
e nem do homem e nem da palavra
é a travessia roubada de um milagre sem santo
um poema profundamente político não é
definitivamente não é
um poema como este que se vê se lê se ouve agora aqui
porque um poema profundamente político
não dá bandeira não dá palavra
não dá ouvidos nem olhos
à minha sua nossa vossa sacola política
porque um poema profundamente político
é um poema que grita no rasgo escuro das gentes
e o grito mais alto de um poema político
é a mais bela e a mais profunda e justa música de seu silêncio