Curadoria e tradução de Floriano Martins
Compreendo perfeitamente que o homem tem absoluta liberdade para eleger os elementos de que pode ou deve servir-se, por exemplo, para a realização de um poema ou de um livro. E também para encarar, com a maior sinceridade possível, as consequências deste esforço de todo nunca vão. Porém, que vago me parece teorizar em um sentido estrito quando, precisamente, estes elementos tomam forma, estrutura, som, de modo tão diferente nas mãos do homem. Daí o ponto de partida da VIDÊNCIA poética. Porque o que é que distingue o poeta do resto dos seres? Nada, não fosse a possessão deste estranho segredo. Às vezes, e pelo que isto pode me importar, creio que este segredo não é senão um débil CONTATO exterior ou uma EXPERIÊNCIA. O calor – até por ser sempre humano – deste contato desperta o ser entre suas trevas. E este despertar não pode ser representado nem invadido senão por leis próprias, em meio a uma atmosfera exata, no centro de um clima cuja maior dificuldade não é senti-lo, mas sim expressá-lo. Nisto, como em outras coisas, o sentimento é algo secundário. Em seguida, me parece uma experiência quando o que desperta no ser tem que valer-se de uma linguagem para dar forma a algo que deseja tocar, reter, ver ainda uma vez mais antes que o pensamento retorne a seu sonho.
Por outro lado, nada mais inútil que acreditar que o poema não obedece a lei alguma e que seu conteúdo não é em si senão a síntese de um ou vários sentimentos, expressa de uma ou de outra maneira. Ao contrário, a poesia obedece a um esforço de inteligência, a um controle da sensibilidade e sua expressão extrai o ser do sonho em que se agita. A imagem deste outro espaço certamente não pode ser de todo REAL. Porém então o que seria a poesia? Nada mais irreal que existência.
Quando o pensamento se desprende de suas raízes, o ser vê claramente, interpreta em si o sentido de uma linguagem simbólica ou mítica que deseja traduzir este contato. Faz o possível por mover-se em torno dessa lucidez e ordena o golpe que vem desde o país de onde.
ROSAMEL DEL VALLE “Poesía”. Texto incluído na edição de uma antologia poética sua editada pela Monte Avila. Caracas. 1976.
NOVA RESPIRAÇÃO
Transparência e escuridão em constante mudança,
Vida recomeçada, pronta a penetrar e sair
Do dia e da noite, pronta para as provas
Do sangue prisioneiro e das pupilas.
Invisível faina detrás de cada hora
Em um renovado perecer de imagem e corpo
Deslizando em ruídos e sucessos de ondas ágeis
E tremor de escritura destruída.
O sangue socorre com afã o passo
De um tempo em anéis de ferro e sinos diversos.
Como até sua fogueira um princípio
De respiração definitiva.
O que foi em um espaço de tremor
Consumido por visões e perigos que regressam
Em viagem de vontade morta e necessidade,
É possível ouvir junto a bosques, cidades e presenças
Dominadas pela visita da sombra
Imensa de uma imagem sem sair.
Rumor, persistente rumor filho das marés,
E a noite um redemoinho submerso onde a música
Habita despossuída de lâmpada e pele.
Permanente extensão, aparições e vapores,
Tudo somente em um andar, em um ouvir entre raízes
Às vezes acesas e perseguidas pelo negro da voz.
E há que buscar, chamar, remover o cimento
Que deixa a noite em sua morte passageira.
VIAGEM AO REDOR DA LÂMPADA
Inesperada sinfonia a ponto de abrir-se
E movimento do sangue em urnas de brilhante selo
Onde o coração permanece inacessível como um dedo
Em fechadura de sombra com morte ao redor.
Os sons levantam o pé na noite e suas faíscas
Refletem estátuas perseguidas à distância.
E há um pensamento que depõe as armas e recebe
A mão obscura que desperta na atmosfera.
Líquida história familiar entre retratos e vozes flutuantes
Dedicadas ao passeio noturno por carvões de esquecimento.
Móveis fechados, recantos de oceano, pés brancos,
Sem tapetes de calor nem pontes terrestres.
E a água terrível nos espelhos, a taça de sonho
Os lençóis crescidos de relva, os trajes vazios
O fio transparente das palavras nos muros,
O ouvido com um pássaro morto.
Que longe passa o mar com seu ninho, que longe
Soa o coração com o sino entre os dedos.
Inatingível movimento do rumor que foge
E necessidade de perecer sem ouvi-lo.
Como um ar de esponsais o sangue abre a porta
Corre entre coroas e agulhas de calor e chama de olho em olho
E estende espaços, jardins, leitos de vento e fogo
Em um duplo despertar de imagem destruída.
Oh corpo imóvel e trança dos delírios,
Costume de perecer em areias de incêndio e distante
Fantasma de pesada respiração que passeia
Por um país de residências fechadas e envoltas em ruído.
Ondas e raios nadam, pupilas e mãos em fios e raízes
Entre anéis de um sol de outro céu.
Somente o tempo tem voz na lâmpada.
Um dia o terá a escuridão.
CELEBRAÇÃO DA MORTE
Que luz e andar entre esferas dormidas no vidro
Com paixão e sombra em um pulso
Onde o pensamento demora a perecer
Com a unidade da mensagem antecipada.
Intranquila existência sustentada por redes
Ao redor da memória sem refúgio e precipitada
Que desce ao corpo opresso em um ruído
Sem origem próxima e submetido a cálidos perigos.
A ferro de calafrio, a músicas confusas onde o céu
Não desce amiúde com pálpebras acessíveis e onde
A terra apaga carvões e entra em escuridão.
Dizei como vamos sobre reflexos da água e vapores,
Como nos movemos em celebração de espelhos vivos
E em terror de signos que transbordam a noite
Como temos feridas de cor perseguida.
Dizei dizei como estamos despertos e exercitando-nos
Em estranha sobrevivência de sombra.
E que escuridão se não se move próxima do que somos
Em um impulso de não ver tudo e não lhe ouvir
Com os pés em areia cálida, com olhos de rosa fechada,
Com ouvido habitado por fria cabeleira indecifrável.
Oh larga dúvida vestida de um corpo e de um pensamento
Em oculta vidência e secreta extensão inanimada
Com a língua azul de terror e as pálpebras rotas
Sem compreender – sempre sem compreender – e de viagem
Em viagem por imagens e sucessos
Onde uma mão apaga a luz de repente e onde a sombra
Se refugia em largos cabelos e paredes.
Enquanto guia o pulso do mundo em uma aparente
Estação de prolongado verão onde o homem se extingue.
Há demasiado sol derramado, inumerável claridade ao redor?
Amo esta sede frequente que faz nós de espuma
Na garganta em uma infinita necessidade
De unir estas cores paralelas que se acendem e nos obscurecem
Atraindo-nos, aproximando-nos à distância
Porém nunca – nunca, nunca – rasgando-nos o ouvido,
Separando-nos as mãos, fechando-nos os olhos
Em transparente vertigem ou em êxtase transparente
Onde sintamos que vida e morte estão em nossa casa,
Em nossa memória, em nossos atos e que somos
Uma única potência de trânsito terrestre.
Que desgarrado amor sem perecer ou morte sem afã
Entre o homem e o que tocam suas mãos como direto
Possuidor do que dorme e do que se move
Ao redor de seu breve contato.
Vinde sobre as coisas pronto a celebrar
A livre respiração e o livre movimento
Que nunca deixam de conduzir ao ruído
Ou a um espaço de revelação
Onde o sangue passa sem sentinelas, entre coroas de fogo,
Paredes palpitantes e portas que se abrem entre certo vapor
Que a reconhece e que fala por ela.
Solitária como uma lâmpada apagada que de imediato
Começa a andar.
O CORAÇÃO SUBMERSO
(fragmentos)
I
Vinde, água de ventre obscuro, raiz da luz
Em eternidade e taça necessária ao ouvido.
Vinde, cara e coroa de jovens faíscas de ar
E pupila do homem frio que começa a invadir
Sombra e resplendor, nada e violência e lugar
Para o osso e para a ansiedade da carne,
Transformada em pássaro de fogo e grão do céu.
Ferido em seu sangue e permanecer como o espanto
Que fala com longas raízes na boca e um raio
Na mão do coração.
II
É o homem, uma lâmpada em dois pés
E duas asas e vidro e treva ao redor.
Abramos os olhos, as fontes, os talos, as pernas,
As portas do corpo e da escuridão.
Sejamos seu passo, sem reflexo, seu alento, seu número,
O espaço e o tempo e seu ruído e o que se segue
Ao movimento de válvulas e chaves de sombras unidas
Em um pulso de fogo e ar contido de raiz.
Que crescida treva nossa prolongada em seu clima
De anjo extraído da morte!
IV
Admirável semelhança e ato meu e fogo móvel
Desde o espanto branco e frio onde a mensagem
Chegou, por último, com teu sopro e tua aparência
De inundação e tempestade, de sonho e movimento.
Oh maravilhoso corpo de ar e som e essência
Desatado a bordo da água e na respiração
Da terra que sai de sua sombra como um olho
Destruído na luz sem sangue da morte.
E vivo e semelhante e sem rastro e sozinho
Com as mãos dentro do mar.
V
As cascatas botam suas plumas e o peso do ar
Dá volta aos sinos e o ouvido se inunda
Com ondas do coração como se a memória
Me houvesse precedido passo a passo entre os anos,
Dias e chamas subterrâneas e línguas de águas destruídas.
Que céu meu e que sol meu e que sombra minha e que terra
Habitada já por meu calor distanciado de mim e entre épocas
De mortos que me sonharam às portas do tempo
Com a espera encandecida na cabeça
E um número de tremor na face.
VI
Há um ninho de pele nas paredes terrestres
Onde a memória se reconhece a si mesma e onde o frio
Se eleva como a respiração da água.
Sangue desabitado e sem naufrágio e silenciosa
Lição de angústia e terror de matéria e espaço
Onde a sombra e o movimento se destroem.
Oh ato de incorporar-se desde as raízes e o talo,
Desde a cinza e o pelo do fogo
Até a mão que sai da água com tremor
Do que acaba de morrer.
IX
Oh sombra terrestre, palpitante despertar e asilo
De minha forma confusa por asas e cabelos e folhas
Que me fazem nadar em um raio ou em uma mão
Arremessada ao abismo por obscuros coros
Que me perseguem em voo e repouso.
Vejo tua água distante como a porta de um espelho
Por onde devo passar um dia em um tremor.
Perseguido e negro e rodeado da imagem
Perdida ao cair em tua doce treva e na viva
Iluminação de tuas árvores e ossos.
XIII
Branco estremecimento e vidro de esferas
Surdas no coração e no olho surpreendido
Sempre, sempre com abismo detrás e passo a passo
Até claridades e negruras e vozes de veias ébrias
Reclinadas em um som de mar cálido e opresso
Em si mesmo, como o sol nos ramos se o céu
Abre de imediato sua porta.
O que ilumina este sangue, oh largo fogo terrestre?
Que coros me seguem e me esperam, que afiadíssima
Pupila flutua em meu ser abrindo-se em espumas?
XXI
Oh doce bem-estar de corola e palidez do ar,
Língua de eletricidade contida no sonho
E barcas, barcas de estremecimento de mar a mar.
O vento é um fio que vem desde a noite.
Recolhe tua rede, oh pensamento, recolhe tua pele
Oh sereia sempre noturna e luz das catástrofes.
O mundo dorme e só resta a borda de tua fogueira
Como a respiração de um anjo precipitado ao abismo.
À distância o raio decapita pombas de frio.
A terra e o homem se dobram de raiz.
XXVI
Sair, sair conduzido através das portas
Sem fim e obstinados descansos onde a sombra
Cessa de perecer.
Alguém leva o ar nos dedos e sai
Com o dorso despregado a bordo do sonho.
Mais penetrante e só e açoitado por sons
De um país que escuta debaixo da alvorada.
É meu ouvido, meu ouvido em descida de escadas,
Em fuga de fogo e de trevas,
Em morte de barca perseguida.
XXVII
As mãos do calor tremem no ar,
Oh taça submersa em vapores de outra noite
Pequena e sem movimento de lábios e surda
Ao passo da alvorada tão próxima e ao passo
Do sangue ferido pelos olhos e do fogo
Penetrante e que se move somente respirando.
E o ar abre sua pele para a sede dos ossos,
Brancos de morte desnecessária e sem ruído.
E tudo, tudo dá voltas em brasas
E rejeita as luzes e devolve a noite.
XXX
E agora, oh morte oculta e saciada finalmente,
Deixa-me entrar no ar mental renascido
Desde minha presença angustiada e desde meu passo
Entre sonho e correntes e delirantes cascatas.
Deixa-me tocar a próxima atmosfera e o raio
E a penetrante névoa que foge e o rumor
Que me trouxe e que me sustenta entre ondas
Desatadas de suas árvores marinhas, como os pés
Da escuridão, quando o olho terrível
Da noite vira pelo avesso.
XXXIII
A porta está diante de minha casa como um vestígio
De vida e sonho sangrando pelos olhos.
Constantemente perdida e achada e segura
De ser mistério e chave e mão que a toca
Ou viajante chagado de ar marinho e essência
E sal formado a sopros pelo pé do tempo.
Oh lâmpada, oh segurança distante e sempre
Sangue de meu sonho estendido sob águas
Em imagem de guarda com armas terríveis
E um gelado sol de raízes afora.
XXXVI
Começo a ver outra vez, oh tempo de raios
Crescidos e língua rumorosa como o mel.
Meu coração aberto dobra suas bordas e daí
A alvorada saindo do cabelo da noite.
Não houve escuridão, oh homem, porque segue
A atmosfera acendendo suas minas,
Porque seguem flutuando as lâmpadas, porque segue
A memória acesa pelas portas, porque segue
Iluminado o trovão e porque segue
Sangrando luz o coração carcomido.
XLV
Dura e perseguida treva e voz
Que conduz ondas na tempestade e árvore
Submarina e ruído da ausência abolida.
Que peixe estranho saído de nossos ramos
Quer turvar a água em afã e delírio?
Abri válvulas de sonho, abri janelas
De sangue, abri exércitos fechados, abri
O ar frio e a memória que o visita
Desprendida do movimento entre lençóis
De sal devorador.
L
Visitante e destino acorrentado às ondas
Do rumoroso oceano da memória e ao passo
Dos obscuros movimentos da areia
Noturna e renovada infinitamente da sombra
À claridade angustiosa e solitária de sua árvore.
Minha existência é tua sede abandonada
E submersa até à raiz como um trovão
Desfeito em gotas cálidas e ecos
Do homem que o segue até o fundo
Da memória estremecida na morte.
TU, MORTA AO SOL
Chave de um país esquecido,
Abre-me o segredo de nomes e pessoas.
Os encontrarás escritos nas árvores de tuas mãos.
Cicatrizes enigmáticas, úmidas pelos olhares.
Oh, e que não se resseque minha origem
Enquanto reine a chuva entre frios alfinetes.
Uma oferenda difícil para o coração
Entre os enigmas da noite.
Países e visões? Não lembro outra viagem
Senão a que fiz alguma vez por tua frente
Por tratar de entender o mar tranquilo,
Enjaulado por desobediência.
Tu, morta ao sol,
Eu, tatuado com signos de fogo
E aromas irreconhecíveis na pele.
Inteiramente na música de teu sonho,
Forma do ritual para que despertes.
Compara as manchas de meu coração e de minhas palavras
Com nuvens metade abismo e metade neve
Que não esfriam a terra enquanto viajam.
Agora que separo luzes para te seguir
Pelo obscuro sol que te acompanha.