Curadoria e tradução de Floriano Martins
É para mim o primeiro assombro da poesia, que submersa no mundo pré-lógico, não seja nunca ilógica. Como buscando a poesia uma nova causalidade, se aferra enlouquecedoramente a essa causalidade. Se sabe que há um caminho, para a poesia, que serve para atravessar esse desfiladeiro, porém ninguém sabe qual é esse caminho que está a bordo da boca da baleia; se sabe que há outro caminho, que é o que não se deve seguir, onde o cavalo resfolega na encruzilhada, como se sentisse o fogo nos cascos, porém sabemos também que esse caminho semeado de figueiras, alisa as aparas do cachorro-d’água quando começa sua luta com o caimão nas profundidades do lodo removido.
Se divididos pelo espírito das névoas ou um sonho inconcluso, tratamos de precisar, quando assumimos a poesia, seu primeiro degrau, se nos presentearia a imagem de uma primeira irrupção na outra causalidade, a da poesia, que pode ser brusca e ondulante, ou persuasiva e terrível, porém uma vez já nessa região, a da outra causalidade, se ganha depois uma prolongada duração que vai criando seus nós ou metáforas causais. Se dizemos, por exemplo, o caranguejo usa laço azul e o guarda na maleta, o primeiro, o mais difícil é, poderíamos dizer, subir até essa frase, trepar no momentâneo e cândido assombro que nos produz. Se o fulminante do assombro estraleja e longe de sermos rejeitados em nosso afã de cavalgar essa frase a podemos manter coberta com a pressão de nossos joelhos, começa então a transcender, a evaporar, outra consequência ou duração do tempo do poema. O assombro, primeiro, de poder ascender a outra região. Depois, de nos mantermos nessa região, onde vamos já de assombro em assombro, porém como de natural respiração, para uma causalidade que é um contínuo de incorporar e devolver, de poder estar no espaço que se contrai e se expande, separados tão somente por essa delicadeza que separa a anêmona da praia.
[…]
Não basta que a imagem atue sobre o temporal histórico para que se engendre uma era imaginária, ou seja, para que o reino poético se instaure. Nem é tão somente que a causalidade metafórica chegue a se fazer vivente, por pessoas onde a fabulação uniu o real com o invisível, como os reis pastores ou sagrados, o Monarca como encarnação do Um (que na cultura chinesa arcaica é a água, o norte e a cor negra), ou um Júlio César, um Eduardo o Confessor, um São Luís, ou um Alfonso X o Sábio, mas sim que essas eras imaginárias têm que surgir em grandes fundos temporais, quer milênios, quer situações excepcionais, que se fazem arquetípicas, que se congelam, onde a imagem pode aprisioná-las ao repetir-se. Nos milênios, exigidos por uma cultura, onde a imagem atua sobre determinadas circunstâncias excepcionais, ao converter-se o fato em uma vivente causalidade metafórica, é onde se situam essas eras imaginárias. A história da poesia não pode ser outra coisa que o estudo e expressão das eras imaginárias.
JOSÉ LEZAMA LIMA
“A partir de la poesía”. La Habana. Janeiro de 1960.
Muitas coisas foram ditas sobre Lezama e agora todos estão entrando na onda de quem diz que o conheceu. Lamento que aqueles que conversamos muito com ele não tenhamos tido a iniciativa de escrever ou gravar aquelas conversas fabulosas, algumas delas muito técnicas, barrocas e inversas. Ele amava a fofoca, as complexidades dos relacionamentos entre as pessoas e gostava de tudo isso com um impressionante estilo crioulo. A estrutura rígida de seu sistema de valores, somada ao comprometimento que foi criado a partir de Orígenes, afetaram muito sua própria obra, já que Lezama era de uma volúpia extraordinária e de um grande ludismo que jamais poderia praticar como gostaria. Lezama sozinho é uma coisa. Lezama dentro de Orígenes é outra. Seu romance, por outro lado, foi uma tentativa de encarnações sucessivas dos personagens que nele apareciam. Sua irmã Rosa, a coitadinha, era diferente de como ele a pintava em Paradiso. O coronel era simplesmente um capitão e ele o elevou de posto. Ele se escondeu atrás de uma sexualidade que teria sido a que ele queria para ele, porque a dele era bastante frustrante. Em outros autores isso não acontece. Virgilio [Piñera], por exemplo, gostou do apetite e disse que gostava dos guagüeros. No caso de Lezama, ele transferiu a outros desejos que não se permitiu satisfazer. Por outro lado, a obsessão fálica de Lezama aparece em sua narrativa. El Farraluque de Paradiso foi retirado de uma história que contei em sua casa naquela época. Tínhamos um homem que trabalhava em casa e se chamava Narciso, que dizia ter um falo gigante. Uma amiga que morava com o elenco de Kohly queria fazer algumas obras em sua casa e o mandamos para lá. Quando Narcisco voltou contou-nos que tinha fodido a empregada, a vizinha, o motorista e até a nossa amiga, todos fascinados com o tamanho de seu falo. Lezama ouviu a história com alegria, porque agora eu fiz sem graça e sem dar detalhes, mas na época não tornei tão simples. Depois apareceu mais ou menos imaginado em Paradiso. Quando este romance foi lançado, Cintio Vitier e Fina García Marruz, sua irmã Eloísa, o padre Gaztelu – todos zelosos guardiões da pureza originária – disseram que no mundo de Lezama não havia nada homossexual. O problema é que com eles Lezama não se descobriu como o fez comigo. Sua atividade sexual, Lezama a transformou em atividade gastronômica. A sua realização sexual era a gastronomia e foi aí que alcançou a satisfação.
CARLOS M. LUIS
Falando de José Lezama Lima em uma entrevista a William Navarrete y Enrique José Varona, 1999.
O INAUDÍVEL
É inaudível,
não poderemos saber se as folhas
se acumulam e soam ao escalar
a lagartixa bisbilhoteira na folha.
Ao nos roçar a testa
cremos que é um lenço
que está cobrindo nossos olhos.
Depois o olho caminhava
até a folha
e a folha ia para casa
vazia do outono, onde o inaudível
abraçou o invisível
em um gesto silencioso de júbilo.
O inaudível
gostava do voo das folhas,
repousava entre a árvore imóvel
e o rio de móvel memória.
Enquanto o inaudível alcançava
seu reino, a casa oscilava,
porém seu interior permanecia intocável.
De repente uma faísca
juntou-se ao inaudível
e começou a queimar escondido
sob o som facetado do espelho.
A casa recuperou sua mobilidade
e novamente começou a navegar.
GIRA O CÉU
Gira o céu – sem combinar
sua intenção e o tempo gracioso –
a percorrer a possessão do cravo
sobre a nuca mais fria
desse alto império de séculos.
Gira o céu – a respiração o coroa
de águas calmas em palácios
silenciosos sobre o rio
para dizer sua imagem clara.
Sua imagem clara.
Segue o céu a se gabar
– os mastros desvelados contra o vento –
de um aroma aconselhado.
Gira o céu
sobre esse aroma golpeado
nas janelas,
como uma negra potência
desviada para novas terras.
Gira o céu
sobre a estranha flor deste céu,
desta flor,
cárcere único:
coroa sem ruído.
AH QUE TU ESCAPES
Ah que tu escapes no instante
em que tenhas alcançado tua melhor definição.
Ah, minha amiga, que não queiras acreditar
nas questões dessa estrela recém-cortada,
que vai molhando suas pontas em outra estrela inimiga.
Ah, se pudesse ser certo que à hora do banho,
quando em uma mesma água discursiva
se banham a paisagem imóvel e os animais mais finos:
antílopes, serpentes de passos curtos, de passos evaporados
parecem entre sonhos, erguer sem ânsias
os cabelos mais compridos e a água mais lembrada.
Ah, minha amiga, se no puro mármore puro dos adeuses
tivesses deixado a estátua que poderia nos acompanhar,
pois o vento, o vento gracioso,
se estende como um gato para se deixar definir.
oi. gostei muito do seu site, vou verificar toda semana as atualizações.Obrigado
olá Juliano, que bom que gostou do site. continue visitando nossa página. abraço