Apresentação e tradução, de Floriano Martins
A biografia de Alice Rahon (1904-1987) está repleta de registros inovadores. Nos primeiros anos 1930, então casada com Wolfgang Paalen, descobre o Surrealismo, que será determinante em toda sua vida. E abre-se também um mundo de viagens, dentre os quais o período que passou na Índia juntamente com Valentine Penrose. A partir daí as viagens se multiplicam e conhece Alasca, Canadá, Estados Unidos, Líbano e México. No México estreitou relações com Frida Kahlo e teve influente presença no surgimento de uma arte abstrata naquele país. Tal influência se reforça com o uso de algumas técnicas singulares, tais como o uso de areia na composição de texturas e o sgraffito, técnica usada em pintura, cerâmica e vidro, que consiste em abaixar uma superfície preliminar, cobrindo-a com outra, logo arranhando a camada superficial de tal maneira que o padrão ou forma que emerge é da cor mais baixa. Poeta e pintora, Alice também realizou desenhos e colagens, além de inúmeros objetos e seu peculiar interesse pelo teatro de fantoches. Porém a marca mais relevante se encontra em seus óleos e poemas. Recordando uma de suas primeiras viagens, às cavernas de Altamira, chegou a declarar que na época pré-histórica, a pintura fazia parte do reino da magia; era a chave para o invisível… como o xamã, a sibila e o bruxo, o pintor tinha que praticar a humildade para poder compartilhar a manifestação dos espíritos e das formas. Dentre seus livros de poesia, À meme la terre (1936), Sablier couché (1938), Au pays de Paalen (1960), Poèmes inédits (1986) e Noir animal (1941). Sua atuação no Surrealismo inclui as ilustrações que fez para o livro Lettre d’Amour (1944), de César Moro, e a criação, ao lado de Pallen, da revista Dyn, nos Estados Unidos, que contará com seis edições até 1945. Em 2009 o Museu de Arte Moderna, do México, realizou expressiva retrospectiva de sua obra.
MÉLUSINE
Saúdo a árvore invisível
o arbusto invisível
no meio do jardim à tarde
que o colibri desenha em seu voo
o movimento imobilizado
as manchas de sol no fundo do poço
o poço sem fundo
nas profundezas da escuridão.
No amanhecer, Mélusine
pega o sol nas mãos
o amanhecer como a água foge
Mélusine o seu choro
para aquele sol que te aponta!
Você está fugindo do seu choro
e o espelho do amor do amor
dos homens Mélusine
chora seu reflexo que não vai voltar.
[NA NOITE DO PRINCÍPIO]
Na noite do principio
a bruma deixou
seu sangue
entre os lábios salgados
bem além dos olhos do sol
O sorriso da morte
recostada no caminho
inesperada como o rosto do passado
Para estes destinos paralelos
não há linha no horizonte
onde reunir-se ou descansar
ou fugir dos peixes cruéis
da angústia e da preocupação
Eles nadam nas margens
dos rios escuros
que separam os amantes
A sombra desce uma escada do sol
até o fundo de meu coração
Penso nos amores castos e pensativos
desses animais que se unem
como se dessem a mão
[ENCONTRO DE RIO]
Encontro de rio
água que vem das nuvens
e dos mananciais
água que me une a teu destino
água livre que nunca retorna
às suas origens
última roupagem para meu medo
atraída por ti com uma argola no nariz
até este norte
como uma gota de água a noite
chamando até que nos levantemos
ardil do fogo para tudo queimar
MUTTRA
Rolando no chão
buscando o coral para sua lâmpada
Seios entregues voando e cantando
ao contrário da pega que se enche de seu canto
invisível na árvore molhada
Todas as vozes femininas à beira da floresta
sob a pata de palmeira
que semeia uma cevada de nuvens
acima dos terraços de cevada
A floresta magnetizada está à deriva
a floresta de frutos de todos os sexos confunde
o lento amor dos miméticos nas lianas
esta folha está a me observar
de suas órbitas vazias
no fundo do jardim voador.