Curadoria e tradução de Floriano Martins
Lésbica feminista salvadorenha, psicóloga, aluna do mestrado em Redação Criativa na Universidade Nacional da Colômbia, incomodada com a palavra poetisa. Seu trabalho inclui temas que vão desde a violência contra a mulher, o aborto, a visibilidade das lutas sociais e a identidade lésbico-feminista.
Participou do festival feminista Akelarre, atividade que promove a divulgação da arte feita por mulheres; a Festa pela Vida da Mulher, da organização feminista Las Dignas, em solidariedade a 17 mulheres presas pelo Estado salvadorenho por abortos espontâneos; Cidade sob minha voz, Poesia em voz alta. Seus poemas foram publicados no Diario CoLatino; nas revistas digitais El Beisman e Marea Magazine; a compilação dos textos dos participantes dos festivais de arte Akelarre, “Para Mujeres Subversivas”; e o livro DiscrimiNaciones, editado e publicado pela Fundação Heinrich Böll, que reúne obras de 25 artistas da América Central, com o objetivo de ilustrar os estereótipos discriminatórios que excluem as pessoas LGBTI da região centro-americana.
[QUANDO A NOMEIO EM SILÊNCIO]
De quem é esse ninho, perguntei. É de guacalchía, me disse.
“Observe que elas fazem seu ninho bem baixinho, em qualquer lugar.
É assim que somos, desde que tenhamos uma casinha.”
Palestra no albergue Santo Tomás (El Salvador),
após a passagem da tempestade tropical Amanda.
Quando a nomeio em silêncio e com os olhos fechados, 10 letras me saúdam: periferia. Se a tarefa é delinear minha poética, preciso recorrer a essa palavra como ponto de partida, tanto para o gozo quanto para a criação. Nosso primeiro encontro foi entre os relatos de minha avó cega, em suas lembranças de dias com luzes e sombras, a partir de uma poesia construída sobre a palavra falada, já que ela nunca aprendeu a ler nem a escrever. As invenções de uma mulher negra, sem formação acadêmica, mãe de quatro filhas e cinco filhos. A beleza da tradição oral, para acalmar medos ou alertá-los; canta a vida cotidiana para lembrá-la, honrá-la e dar-lhe sentido. Meu primeiro norte é um sul.
A bússola quebrada que esta avó me deu marca a rua, com a sua linguagem de uma determinada música e cadência, mas sobretudo o reconhecimento de suas histórias e as feridas que inflamam diariamente. Nos olhares e vozes periféricos que dão conta de suas realidades e se legitimam sem a necessidade da aprovação canônica, me rendo a elas com amor e admiração, pois me acolhem e me dão a liberdade de existir, de me relacionar a partir do meu ser lésbica feminista salvadorenha. É por isso que Roque, Audre Lorde, Staceyann Chin, Tatiana de la Tierra; por suas vidas, seu compromisso político e sua poética. Minha avó, como eu, teria gostado deles.
CANÇÃO DE BERÇO PARA PERDOAR
Para Elba e Celina Ramos
Não cante para mim, meu filho,
arrepende-te de assobiar a canção de ninar materna que te envolveu,
enche teu coração com sons ocos e ásperos,
deambule zonzo em sapatos de herói impostor.
Não cante para mim, idiota,
não há necessidade de espalhar tua consciência,
tens castigo suficiente para saber que não eras feliz
com aquele coração sedento
Não cante para mim, garoto,
segue marchando com tua memória sem mais tormentos,
primeiro Deus os espinhos de minha roseira deem uma recompensa
e talvez seja assim que te sintas pressionado pelo amor.
Não cante para mim, homem,
livre de horrores diante de todas as que cruzem teu caminho,
com essa sua boca e esse seu rifle
não haverá quem adoce a vida.
Não cante para mim, senhor oficial,
não sigas mais a embelezar tuas injúrias,
ninguém dorme com a tua sopa de tiros
não vês que puro martírio escorre de tua canção?
Não cante para mim, covarde sem alma,
leve para bem longe a tua serenata sem graça,
ao chorar enrole a língua em silêncio
ao escutar que me canto imortal, este sim, sabe perdoar.
NOTA
Na madrugada de 16 de novembro de 1989, um comando militar entrou na Universidade José Simeón Cañas (El Salvador) e assassinou seis padres jesuítas, sua cozinheira e sua filha.
AS DIABAS
Que o diabo a beijou, diz a vizinhança
da garota que não é garota
Uma depravada que se recusa a ser princesa
sedenta de olás e sapos azuis
Chora papoulas até adormecer
acorda feliz envolta em sementes
que logo semeia na chuva
para colher ilusões da lua nova
Vestida de cabra, fresca e sorridente
corre para se refugiar no mato
Faz um berço com seu aroma
de garota alheia, com pele de guerreira
Garota de seios de sol, a avó lhe chama
Pois, embora a inunde o desejo de escapar
do murmúrio e da dor
a cada manhã renasce teimosamente
Que é filha do diabo, o mundo grita
porque flutua livre de crinas e escamas
A garota caracol que sonha em ser garota do mar
e ri descalça a caminho de outras iguais a ela.
ESPIRAL SEMANAL
O nojo decora minhas presas
“Assunto privado” “crime passional” “namorada de membro de gangue” “nada grave”.
Quatro golpes, quatro galos surgiram na cara esta semana,
entre todas a merda que nunca foi limpa
como um lembrete do que nunca desapareceu
no meio de arranjos e pactos selados com apertos de pênis
E por que seria diferente?
se são eles os que estupram, assassinam e mutilam,
eles quebram os punhos descascados.
Que importa se são 8 ou 24 corpos,
contanto que as mulheres sejam que coletam os ataques,
sempre que aparecerem nas camas e buracos poros de mulher
pouco importa se a absolvição for entregue por baixo da mesa
ou sob os holofotes oficiais,
no geral, a trégua nunca incluiu a mim e minhas irmãs.
E se hoje é como ontem, amanhã será como sempre?
Se o deputado enverniza os punhos,
se o padre lambe os pés banhados no sangue de mulher,
Se quem estupra em qualquer caso não aborta e quem aborta fica presa 30 Natais seguidos,
se te esquecem,
Se a ti, irmão, que gostas de falar em gênero, mas habilmente guardas o baú que teu avô te deixou para que pudesses manter os privilégios que teu pai te deu…
Amanhã, facilmente, seguirá sendo como sempre.