Resenha do livro “I margini e il dettato” de Elena Ferrante

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por Emília Soares

Professora do IFPI- Campus Pedro II, doutoranda e pesquisadora da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante

Em seu recente livro encontramos quatro textos inéditos de Elena Ferrante sobre o seu processo criativo de escrita em ocasião do evento Umberto Eco Lectures, com três palestras, e da conferência dos italianistas sobre Dante e outros clássicos, com um ensaio.

As três palestras foram interpretadas pela atriz Manuela Mandracchia no papel de Elena Ferrante e contou com a colaboração de ERT- Emilia Romagna Teatro; já o ensaio foi lido pela estudiosa e crítica Tiziana de Rogatis, autora de Elena Ferrante- Parole Chiave. Publicados pela Edizioni e/o – editora italiana que publicou todos os outros livros anteriores de Ferrante – as aulas e o ensaio são direcionados tanto a especialistas quanto a não especialistas, como já de costume nos textos da autora.

Em “La pena e la penna” (A pena e a caneta), primeiro texto, a autora fala sobre o desejo pela escrita e sobre as duas formas de escrever, a saber: uma aquiescente e a outra impetuosa. Ferrante relembra o tempo de sua infância em que era ensinada a escrever numa folha de caderno que continha linhas horizontais pretas e duas linhas verticais vermelhas. Esse espaço era destinado ao escrever e tinha a função de regular as letras para que a sua escrita não desmarginasse.

Ameaçada pelas linhas verticais vermelhas, determinadoras das margens, a grafia vai se firmando com ansiedade e esmero. Há um desejo de escrever, ainda que apertado sobre essas duas linhas de ordem. Sentindo-se como o personagem Zeno Cosini, do escritor Italo Svevo (1861-1928), pseudônimo de Aron Hector Schmitz, Ferrante alude ao esforço de se aprender a escrever como um processo cansativo e decepcionante. Como o pensamento é sempre passado, nem sempre ele acompanha o empenho da escrita, por isso aparece ofuscado letra após letra.

Naqueles tempos da adolescência, dificilmente lia mulheres e buscava imitar os modos masculinos de escrever: “Dalle pagine mi pareva che venisse voce d’uomini e quella voce mi occupava, cercavo in tutti i modi di imitarla.” (p. 21). Era uma voz masculina e invisível que conduzia sua escrita, esta que tentava com toda a ambição alcançar a potência dos grandes escritores. Anos depois, entra em contato com a obra Rime da poetisa italiana Gaspara Stampa (1523-1554) e reconhece a temática da insuficiência da língua perante o Amor; mas o que logo lhe impacta são os primeiros versos em que a voz se declara abjeta e vil: “Se, così come sono abietta e vile” (“Se, assim como sou abjeta e vil”).

Esses adjetivos impactaram Ferrante que também se sentia da mesma forma, como que acorrentada à natureza feminina que a impedia de aproximar “la penna alla pena” (“a caneta à pena”).  Desse modo, para escrever e se mostrar ao mundo a mulher precisaria dissolver as margens que circunscrevem a natureza feminina. Mas a lição de Stampa não foi tão logo compreendida e Ferrante foi levada a crer que, para escrever bem, era necessário estar de acordo com a égide da tradição masculina. A sensação que a escritora experimentava era como se ela não tivesse de fato escrito o texto, como se ele não a pertencesse.

Foi então que Ferrante pensou na possibilidade de existência de duas escrituras: uma que se insurgia no final dos tempos da escola, na qual a professora cobria-lhe de elogios e dizia-lhe que se transformaria em uma escritora; a outra que se manifestava como uma surpresa e depois se eclipsava, deixando-a descontente. As duas escritas não podem ser separadas.

As margens mantêm a escrita dentro da regra e a escrita concentrada na sensibilidade desmargina o ditado, embaralha as cartas. A escrita para Ferrante seria, então, esse ato convulsivo entre a tradição robusta, o desequilíbrio e a deformação. Para falar dessa enigmática ou fugitiva, a autora serve-se de um trecho do Diário de uma escritora de Virginia Woolf para elucidar que, quando uma escritora escreve, ela nem ao menos sabe quem ela é: “quando scrivo, nemmeno io so chi sono” (p. 32).

L’idea di Woolf mi pare chiara; scrivere è accamparsi dentro il proprio cervello, senza più disperdersi nelle numerosissime, varie, subalterne modalità con cui, in quanto Virginia, si vive ogni giorno una vita grezza. (…) Chi scrive non ha nome. È pura sensibilità che si nutre di alfabeto e produce alfabeto dentro un flusso incontenibile. (p. 33-34)

A ideia de Woolf me parece clara; escrever é acampar dentro de seu próprio cérebro, sem se perder nas inúmeras, variadas e subordinadas maneiras pelas quais, assim como Virgínia, leva-se uma vida difícil todos os dias. (…) O escritor não tem nome. É pura sensibilidade que se alimenta do alfabeto e o produz em um fluxo irreprimível. (Tradução nossa, p. 33-34)

Ferrante percebe em Virginia a entidade totalmente autônoma da figura definida pelo nascimento, que produz palavra escrita com afinco na separação extrema entre essas duas instâncias. Assim, quem escreve é um outro intersubjetivo que habita na escritora, um deus que dita a palavra do inconsciente a ser decifrada.

A matéria que Ferrante se utiliza provém da frantumaglia que é uma paisagem poética formada por destroços de um território afundado pela força das águas. O termo, carregado de instabilidades, é de origem materna e revela o inconsciente que a mãe não conseguia explicar e que fazia a autora, de forma fantasiosa, desejar mantê-la presa.

Escrever para a autora é ousar também com relação aos gêneros literários destituindo-os de sua harmonia e fixidez da tradição, num eterno jogo de desequilíbrio e equilíbrio.

(…) Così il romanzo d’amore comincia a soddisfarmi quando diventa romanzo del disamore. Il romanzo giallo comincia a prendermi quando so che nessuno scoprirà chi è l’assassino. Il romanzo di formazione mi sembra sulla via giusta quando è chiaro che nessuno si formerà. La bella scrittura diventa bella quando perde la sua armonia e ha la forza disperada del brutto. E i personaggi? Li sento falsi quando sono di limpida coerenza e mi appassiono a loro quando dicono una cosa e fanno l’opposto. (…) (p. 43)

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(…) Então o romance de amor começa a me satisfazer quando se torna um romance de desamor. O romance policial começa a me prender quando sei que ninguém vai descobrir quem é o assassino. O romance de formação parece-me no caminho certo quando está claro que ninguém vai se formar. A escrita bela torna-se bela quando perde sua harmonia e tem a força desesperada da feiura. E os personagens? Eu os percebo falsos quando são de clara coerência e me apaixono por eles quando dizem uma coisa e fazem o oposto. (…) (Tradução nossa. p. 43)

Na segunda aula, intitulada “Acquamarina” (“Água-marinha”), a autora trata da questão da narração em primeira pessoa, dos seus primeiros contatos com o desejo da percepção realista das coisas e das obras que a influenciaram na construção de suas personagens femininas.

Desde menina, Ferrante sentia um fascínio pelas coisas reais e enxergava na “vida interior” a necessidade de se materializar em forma de escrita. Os eventos e as pessoas do cotidiano eram passíveis dessa análise apurada, sejam eles: uma folha amarela, as peças de uma cafeteira, o anelar de sua mãe com uma água-marinha reluzente, as irmãs brigando no pátio ou as enormes orelhas de um homem careca com avental azul.  Mas, com o tempo, a garota foi percebendo que a sua escrita não a satisfazia, talvez, como ela pensava, porque fosse ignorante, inexperiente ou mulher. O dialeto de sua cidade também a incomodava e reforçava esse sentimento de inadequação de sua escrita.

Passou, naquele tempo, a refletir sobre a pedra azul que brilhava no dedo de sua mãe e o quão verdadeiro poderia ser esse objeto. Esse material oscilava entre o dialeto e o italiano, entre o tempo e o espaço, entre a nitidez e a confusão, sempre permeado por sentimento ambíguo de afeto e hostilidade. A água-marinha era esse objeto passível de mudança porque a sua realidade se modificava assim como a percepção da observadora, o que dificultava a descrição. Desse modo, os protótipos eram insuficientes assim como a descrição de uma mãe napolitana com seu tom dialetal.

Em sua trajetória como escritora foi percebendo, aos poucos, a dificuldade ou a incapacidade de se reproduzir o real. Tentou então seguir o conto fantástico e, depois, a neovanguarda, mas acabou desistindo de ambos, pois preferia se ancorar em histórias que realmente aconteceram. Nesse seu percurso, passou a pensar na construção dos personagens por meio de pessoas conhecidas através de seus gestos, modos de falar, bem como suas dinâmicas sociais, econômicas e culturais. No entanto, esse seu método só lhe trouxe frustrações.

Foi então que entrou em contato com Jacques, o fatalista, e seu amo (1778)de Denis Diderot(1713-1784)e com a obra que o precedeu Tristam Shandy (1759)de Laurence Sterne (1713-1768), que a fizeram perceber o quão difícil é narrar, e isso só multiplicou o seu entusiasmo pelo assunto.

O romance que ela escreveu após essas leituras, no entanto, revelou-se distante de suas aspirações de escritora, pois, como constatou com Jacques, quem escreve é sempre um “espelho deformante”. Só um tempo depois, após adotar uma postura de menor exigência consigo mesma, é que conseguiu enviar um escrito a uma editora juntamente com uma carta de apresentação. Diante de seu próprio texto, Ferrante fez cinco pequenas descobertas.

A primeira diz respeito ao fato de, até então, só haver escrito textos na terceira pessoa. Por conseguinte, a escrita da carta em primeira pessoa lhe revelou mais emaranhada e nova. A segunda gira em torno do efeito de realidade que a ficção é capaz de criar a ponto de o leitor entrar no jogo ilusionista em que pode esquecer até mesmo as letras do alfabeto, tamanho o envolvimento na leitura. A terceira elucida que o narrador não é nada menos que fragmento dentre outros fragmentos de realidade, que pode se parecer ou não com o autor que assina a capa do livro. A quarta é a constatação de que de aspirante a realista ela se tornou uma “realista desconfiada”. A quinta pequena descoberta versa sobre o fazer literário que não é capaz de ordenar o vórtice dos destroços, matéria que constitui o real, mesmo que dentro de uma ordenação gramatical ou sintática.

Essas ideias inspiraram e determinaram os livros que Ferrante escreveu depois na segunda metade da década de 1980. A autora cita então suas personagens Delia, Olga e Leda para falar de como cada uma delas lida com as suas prisões internas e suas desintegrações. As três histórias das personagens revelam ainda a assunção da escrita feminina em primeira pessoa em seus novos trabalhos, uma escrita que não só gerou essas personagens mas também gerou a si mesma enquanto escritora.

Essa escrita de Ferrante é construída por meio de uma realidade necessária que une mitologia antiga e moderna juntamente com sua experiência de leitura. Além disso, é uma escrita-oximoro, convulsa, desagregante, que aproxima incoerência e contradição.

(…) Essa porta il passato nel presente e il presente nel passato, confonde i corpi di madre e figlia, rovescia i ruoli prestabiliti, transforma il veleno del dolore femminile in um veleno vero che coinvolge le bestie, le confonde com gli umani e le uccide, muta uma porta di normale funzionamento in uma porta che non si apre più e che poi si apre, rende minacciosi o sofferenti o letali o salvifici gli alberi, le cicale, il mare mosso, gli spilloni, le bambole, i vermi della sabbia. (p. 64)

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(…) Traz o passado para o presente e o presente para o passado, confunde os corpos de mãe e filha, inverte os papéis pré-estabelecidos, transforma o veneno da dor feminina em veneno verdadeiro que envolve feras, confunde-as com humanos e os mata, transforma uma porta de funcionamento normal em uma porta que não se abre mais e que depois se abre, torna ameaçadoras ou sofridas ou letais as árvores, as cigarras, o mar revolto, os alfinetes, as bonecas, os vermes da areia. (Tradução nossa, p. 64).

Após a escrita de A filha perdida, Ferrante acreditava que esse seria o seu livro conclusivo, até que retornou a um livro publicado pela Feltrinelli, que havia lido assim que lançado em 1997, chamado Tu che mi guardi, tu che mi racconti de Adriana Cavarero que dialoga com Hannah Arendt e a ideia da “outra necessária”.

Outro livro que a inspirou foi Non credere de avere dei diritti (Rosenberg & Sellier, 1987), publicado pela Libreria delle donne di Milano, importante livro para o feminismo italiano que trata da história do encontro entre Emilia e Amalia e dos efeitos dessa amizade narrativa durante os anos 1970. Essa história de amizade feminina juntamente com a leitura de Autobiografia de Alice B. Toklas de Gertrudes Steinlevou Ferrante a pensar na amizade entre Lila e Lenu do ponto de vista da forma de escrita autobiográfica. Da reflexão sobre a “outra necessária” Ferrante passou ao título A amiga genial para enfatizar a ideia da necessidade dessa amiga para contrapor à escrita domesticada.

Em sua terceira palestra, intitulada “Storie, io” (“História, eu”) Ferrante retoma o discurso de A amiga genial e traz à tona um breve poema de Emily Dickinson que fala de história e bruxas.  A autora de Um amor incômodo vê nesse poema a emergência de uma escrita feminina que havia sido sufocada tal como a arte de uma bruxa.

Para elucidar a sua visão sobre a realidade e a ficção, a escritora evoca Dostoevskij que dizia que a “vida verdadeira” era uma obsessão de quem escreve. Ferrante retoma também o livro Autobiografia de Alice B. Toklas para refletir sobre o gênero no qual a autora Gertrude Stein escreve a sua história dentro de uma forma literária não facilmente gerenciável, ficcionalizando essa forma que, por ser falsa, pode e deve ser manipulada.

Trata-se de uma verdadeira autobiografia de Gertrude Stein, uma outra pessoa genial, inventada pela personagem Alice Toklas. A obra, desse modo, mostra que escrever sobre uma pessoa não é simplesmente escrever a verdade, mas entender que a forma pode ser uma “armadilha mortal” para uma intenção de escrita baseada na “verdade” de uma tradição literária.

Nessa linha de pensamento, Ferrante conclui que escrever é descobrir que nada nos pertence, nem mesmo as palavras que escrevemos. Devemos, portanto, renunciar ao fato de que escrever é uma proeza milagrosa de uma única voz ou tom e perceber que:

Scrivere invece è entrare ogni volta in uno sterminato cimitero dove ogni tomba atende di essere profanata. Scrivere è accomodarsi in tutto ciò che è già stato scritto – la grande letteratura e quella di consumo, se serve, il romanzo-saggio e la sceneggiata – e farsi, nei limiti della propria vorticosa, affollata individualità, a propria volta scrittura. (p. 94)

Escrever, por outro lado, é entrar cada vez em um cemitério sem fim, onde cada túmulo espera para ser profanado. Escrever é acomodar-se em tudo o que já foi escrito – a grande literatura e aquela de consumo, se necessário, o romance-ensaio e o drama – e fazer-se, nos limites do seu turbilhão, da individualidade aglomerada, a sua escritura. (Tradução nossa, p. 94)

O fazer literário, para a autora, acontece se inscrevendo na grande esteira da escrita. Se isso é aplicável para o masculino que escreve, para o feminino é mais ainda. A mulher deve lidar, inevitavelmente, com um patrimônio masculino e com a impossibilidade de frases verdadeiramente femininas. Em seu processo de leituras, Ferrante assume que, quando garota, muitas vezes fugia do texto escrito por mulheres, assim como muitos homens cultos que ela conhece atualmente fogem de Elsa Morante, Natalia Ginzburg ou Ana Maria Ortese. Desse modo, reconhece que o eu-feminino que escreve há ainda um caminho difícil a ser percorrido.

Sobre a questão do dialeto, Ferrante afirma ter tido problemas, por isso passagens relevantes de Um amor incômodo e de A amiga genial foram escritas em dialeto, mas depois foram adaptadas a um italiano de cadência napolitana. Isso porque para a autora a mimese do dialeto escrito parecia mais “falsa” que o italiano, uma “traição” à oralidade. A linguagem do perigo, da violência napolitana esterilizada pela escrita perderia assim o seu poder de paixão e afeto.

Lentamente mi è sembrato efficace, nel fare letterario, usarlo non come uma consuetudine del racconto realistico, ma come um rivolo sotterraneo, una cadenza dentro la lingua, una didascalia, un disturbo della scrittura che di colpo irrompe con poche parole di solito oscene. (p. 107)

Lentamente, pareceu-me eficaz, no fazer literário, usá-lo não como um hábito da história realista, mas como um fluxo subterrâneo, uma cadência dentro da linguagem, uma didascália, uma perturbação da escrita que repentinamente irrompe em algumas palavras obscenas. (Tradução nossa, p. 107)

Mais proeminentemente que nos seus outros livros anteriores, Ferrante coloca em seus dois últimos romances A amiga genial e A vida mentirosa dos adultos a questão da narração de si e de outras mulheres. As suas personagens anteriores não tinham amigas, já em A amiga genial, exemplo, há a inserção dessa figura humana, que traz mais complexidade ao jogo de estranheza, com seus encontros e desencontros. As leituras, como a autora já havia mencionado, dos livros de Cavarero, Dickinson e Bachmann sugestionaram a criação de Lila e Lenu e do encontro entre as duas escrituras. Mas a linguagem de Lila é inacessível principalmente porque ela não gosta dos livros que Lenu escreve. Por esse motivo, escrever um final feliz em que ambas fundissem as suas escritas seria um final, para Ferrante, inconcebível.

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Já em A vida mentirosa dos adultos a história é narrada por uma personagem feminina que não se sabe quem é. Qualquer personagem poderia ser a narradora de Giovanna, incluindo ela mesma. Esse livro para Ferrante encontra-se concluído, pois não havia mais forças após o esboço e por acreditar que ele possa sobreviver sozinho, sem uma continuação.

Atualmente Ferrante pensa que a literatura escrita por mulheres deva procurar sua própria verdade e seu espaço na História e, nesse processo, o trabalho de cada escritora é necessário. Como a arte das bruxas, descrita no poema de Dickinson, as mulheres não devem se conformar com a língua que historicamente não lhes cedeu espaço, devem, outrossim, “confondere, fondere i nostri talenti, non um rigo va perso nel vento” (“confundir, fundir os nossos talentos, não uma linha que se vai perdida no vento”) (p. 117).

Em “La costola di Dante” (“A costela de Dante”), último texto do livro, Ferrante inicia exaltando o trabalho de Maria Corti que lhe rendeu vontade de reler Dante. Por amor a esse autor e às suas palavras, a escritora afirma que o Dante que ela leu e estudou iniciou sua jornada com a tradição provençal e siciliano-toscana, criando um estilo novo enquanto sábio-poeta que pôs ao centro a história de Cristo. Sentiu-se perturbada com a encenação da falência, principalmente no que diz respeito à experiência decepcionante do alfabeto para os humanos.

Dante-autor escreve sua obra como se sucesso e fracasso fossem faces da mesma moeda. Nessa empresa, a palavra, no ínterim entre o coração e a escrita, necessita de um escriba rápido e capaz para que se obtenha o sucesso. Dante-personagem soube, por sua vez, desdobrar-se (Gorni), desatar-se, para se tornar um escriba livre e rápido, “mantendo-se atrás do ditado do Amor” (p. 127), diferentemente de Bonagiunta.

O estilo novo de Dante o obrigou a identificar os limites da tradição para tentar superá-los, lutando contra a inadequação e a insuficiência da escrita por meio de apurada disciplina. Ferrante coloca Dante e sua obra como uma armadilha extraordinária que conseguiu prender tempo e memória como nenhum outro autor, incluindo Proust, conseguira fazer.

La Commedia, a questo modo, mi è sembrata una trappola straordinaria, preparata a lungo e minuziosamente. Credo ancora oggi che nessun autore, negli ultimi settecento anni, sia riuscito a trasformare la viva, studiosa analisi del proprio tempo, e la memoria ancor più studiosa delle carte del passato, in una gabbia così affollata della vita di tutti e, insieme, così singolarmente pensata, così appassionatamente personale, così minunziosamente locale-universale. Qualcuno di indole generosa ha citato Proust e ho provato a convincerne. Ma non ci sono riuscita. (p. 130)

A Comédia, desse modo, parecia-me uma armadilha extraordinária, preparada longa e meticulosamente. Ainda hoje acredito que nenhum autor, nos últimos setecentos anos, conseguiu transformar a análise viva e estudiosa de seu próprio tempo, e a memória ainda mais estudiosa dos papéis do passado, em uma gaiola tão abarrotada da vida de todos e, juntos, tão individualmente pensados, tão apaixonadamente pessoal, tão minuciosamente local-universal. Alguém de natureza generosa citou Proust e eu tentei me convencer. Mas não tive sucesso. (Tradução nossa, p.130)

O que impressionou também Ferrante foi a capacidade de Dante de deslocar-se no outro ao mesmo tempo em que fazia seu percurso autobiográfico. Sua língua de constituição enérgica era capaz de expressões sintéticas, rápidas o suficiente para fixar o outro numa identificação. Dante-leitor soube de forma deslumbrante ler os versos pagãos da Bíblia ou páginas filosóficas, científicas e místicas, capturando as belezas e os significados para enfim encontrar o seu próprio caminho de escrita.

Em sua análise da poesia de Dante, Ferrante verificou que ele nunca criou um “inleiarsi”, porém sentia uma forte atração pelo feminino e pela sensibilidade marcante das mulheres. Foi sobretudo a construção física, linguística, histórica e intelectual da honrada personagem Beatriz que fê-la amar Dante. Desde Vita Nuova Dante já havia percebido a complexidade das mulheres atribuindo o intelecto do Amor a Beatriz. Em Commedia, Beatriz retorna e sai de seu mutismo ultrapassando o tão somente intelecto do Amor falando talvez até melhor que os homens, por meio do seu dom do discurso. Beatriz entre o Limbo e o Éden transforma-se em uma “autoridade indiscutível” em tons de amante, mãe e almirante.

Para concluir, Ferrante interpreta que Dante fez Beatriz por meio de suas competências científico-teológico-místicas, às quais ele extraiu de seus conhecimentos, “de sua costela” (p.150). A partir de seu inleiarsi o poeta, com racionalismo e realismo visionário, foi capaz de imaginar o que seria possível para as mulheres.

FERRANTE, Elena. I margini e il dettato. Roma: Edizioni e/o, 2021. 154p.

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