Leandro Damasceno Leal é paulista de São Caetano do Sul, onde nasceu em 1977. Desde 1999, trabalha como redator publicitário. Desde sempre, escreve e desenha. Estreou na literatura em 2014 com o romance “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” (Edições Ideal). Em 2021, a Realejo Livros publicou “Olho Roxo”, cujas ilustrações Leandro também assina. Em 2022, a mesma Realejo lançará “Fidel em Quarentena”, romance escrito e ambientado em tempos pandêmicos.
2002
Magnata midiático, notabilizado desde sempre pelas polêmicas e pelas bravatas e, um tanto mais recentemente, por ter apresentado um reality show em que enchia a boca para demitir os participantes, o bufão Donald Trump se viabilizou politicamente na esteira da crise norte-americana. As veias dos pescoços vermelhos saltadas, os autoproclamados Verdadeiros Americanos, caucasianos pobres habitantes dos grotões do país, exigiam a devolução do que era seu por direito. Para que eles, legítimos vocacionados ao Sonho Americano, pudessem vivê-lo, os Estados Unidos teriam de se voltar para os seus: para eles. Chega de dar mole para imigrantes, de passar a mão na cabeça dos pretos, de paparicar gays, de abrir espaço a qualquer um que não comungue com a essência do que faz daquela a maior de todas as nações. A América precisava voltar a ser grande. Era exatamente o que a campanha de Trump, antenada com esse saudosismo xenofóbico, prometia no slogan que renderia ao candidato a vitória na eleição presidencial de 2016.
A proposta original do mote era em tudo diferente do que aspirava aquela paródia, que ele agora lia e o fazia sorrir. Seu sorriso era um dos tantos que passavam despercebidos naqueles dias, cobertos pelas máscaras obrigatórias em espaços fechados como o metrô. Muitos desses sorrisos se viam nos olhos, mas nem assim o dele podia ser notado. Os óculos escuros tornavam seu voyeurismo desavergonhado, imune à recriminação dos passageiros que se incomodassem com olhares dirigidos a eles por desconhecidos. A partir dessa guarida, ele lia e relia a frase “Make Brasil 2002 again”. Estava bordada num boné vermelho que, sendo igual aos usados pelos apoiadores de Trump, o fez pensar num míssil teleguiado reprogramado para atingir quem o tinha lançado. Seu alvo era Bolsonaro, lamentável decalque tupiniquim do ex-mandatário estadunidense. A frase, de inglês torto mas intenção nobre, se referia ao ano da primeira eleição de Lula, que voltaria a ser candidato à presidência no pleito seguinte. O voto do Voyeur fora um dos milhões que deram a vitória ao antigo líder sindical numa época em que, se já tivesse nascido, a dona daquele boné estaria dando seus primeiros passos, exatamente como a democracia brasileira, renascida havia tão pouco. A Menina cresceria e, confiante, caminharia por aí com o boné engajado-engraçado virado para trás. Já a democracia brasileira, com muitíssimo menos sorte, teria suas pernas quebradas e, para voltar a ficar de pé, contaria com a ajuda de gente como a Menina e o Voyeur.
Pensar nos dois naqueles termos os colocava como iguais e o fazia se sentir menos culpado pelo súbito interesse por uma garota com idade de ser sua filha. Os anos que os separavam eram em mesma quantidade que os centímetros entre eles, de distância e de altura, uns vinte e poucos. A mão da Menina segurava firme a alça presa à barra, alta demais para ela. O Voyeur dividia sua concentração entre o boné da Menina e o próprio abdome, responsável por mantê-lo em pé, resistindo aos solavancos da composição. Contraindo os músculos, fazia uso de conceitos de física aprendidos no colegial e de lições mais recentes, das aulas de yoga. Preferia o pequeno desafio a ter que tocar a barra de metal a que tantos antes já tinham se agarrado. Mesmo antes da pandemia evitava, ainda mais quando, como agora, estava sem o potinho de álcool em gel. Próxima estação, Higienópolis-Mackenzie. A Menina se moveu em direção à porta, e o Voyeur acrescentou mais uma à lista das coisas que os uniam.
A estação levava o nome do bairro para onde havia pouco ele se mudara e o da faculdade onde talvez ela estudasse. Era dessas novas, construída e administrada pela iniciativa privada. Muito mais subterrânea do que as antigas, o acesso à linha demandava várias escadas rolantes. Garantia de mais alguns minutos para que ele pudesse exercer a atividade que o batizou como personagem deste conto. Sem ser tarado e sem querer ser confundido com um, o Voyeur mantinha-se distante, observando a Menina com interesse mais antropológico do que sexual. Não que a figura não o atraísse, contudo não lhe passava pela cabeça nada além da dissecação do personagem. Nunca a convidaria para um café, muito menos para uma cerveja, mas lhe agradava especular a respeito da Menina. Como teria se tornado de esquerda? Seria mesmo de esquerda? Estudaria mesmo no Mackenzie? Que curso faria? Teria vindo para São Paulo apenas estudar ou seria daqui mesmo? Teria namorado? Teria namorada? Com que gênero se identificaria? Até então, a Menina era para ele uma menina. As coxas que saíam pelo shorts de jeans desfiado eram torneadas e lisas, a bunda acima delas, firme e redonda, já o corpo era um tanto atarracado, de quem pega pesado na musculação. Debaixo do boné, o cabelo era curtinho, mas isso não queria dizer nada. Definitivamente, a Menina era.
Vencidas todas as escadas, chegaram ao nível da saída e ao fim da brincadeira. O Voyeur já não seria. Não importava para qual lado a Menina fosse, ele iria para o dele, para sua casa. Ela, porém, caminhava para a mesma saída que ele pegaria, a da rua Piauí. Decidido a manter seu rumo, ele se dirigiu à rua e ao sol forte da tarde de sábado, que o cegou por um segundo. A volta da visão lhe trouxe a Menina diante de um carrinho de milho verde estacionado no meio-fio. Máscara tirada, sorria para o vendedor, que lhe entregava um prato azul com um montinho amarelo e uma colher de plástico verde – as cores da bandeira que o inimigo jurara, jamais seria vermelha. Se notou a coincidência, a Menina não pareceu se importar. Meteu uma colherada na boca e se pôs a andar, descendo a rua, parando na esquina, esperando o farol se abrir, depois seguindo. O destino conspirava para que ele continuasse a segui-la – o destino dele, não a fatalidade. Mas ele resolveu desafiar o destino – nesse caso, a fatalidade mesmo. Parou na farmácia adiante, para conferir na balança o peso que não se alterava há 10 anos, para dar uma olhada no preço de diversas coisas que não compraria. Dez minutos se passaram assim, bastantes para dar à Menina uma dianteira considerável. Dali por diante, voltaria a vê-la apenas por acaso, nessas memórias ressurgidas numa sinapse inexplicada, um desses raros, porém caros, personagens cotidianos capazes de restituir um tanto da sua abalada fé no futuro, que pode, sim, repetir o passado. Make Brasil 2002 again, please.
Saído da farmácia, antes de ir para casa, à padaria, um café e mais uma chance para se despistar da Menina. Apertou o botão, que lhe cuspiu um cartão, apertou a embalagem de álcool-gel, que lhe cuspiu na mão, esfregou as duas, empurrou a catraca com o quadril e entrou. O boa-tarde dito ao gorducho tatuado do caixa ficou sem resposta, como todos os bons-dias e boas-tardes que lhe dirigia. Sentou-se a uma das mesas, levantou a mão e esperou ser visto pela única atendente no local àquela hora, de pouco movimento. A funcionária que retirava outro pedido no balcão não parecia nenhuma que ele já tivesse visto por ali. De costas para ele, lhe contava que suas coxas e nádegas estavam um tanto apertadas na calça do uniforme e que, debaixo do boné da padaria, gostava de usar o cabelo bem curto. Não podia ser. Mas era. A Menina.
– Quer olhar o cardápio ou já sabe o que vai pedir?
– Um café.
– Espresso?
– Não, de coador mesmo.
– Mais alguma coisa?
– 2002 foi um ano incrível, né?
– Deve ter sido, moço. Foi o ano que eu nasci.