Pablo Antonio Cuadra (Nicarágua, 1912-2002)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Me parece que através de toda esta forma de abordar nossa própria história é que se vai também criando os mitos da América. Aquelas fabulações simbolizam em grandes traços as crenças, as cosmovisões de um povo. Há que se estar constantemente reescrevendo-as na literatura intermediária nestes séculos da América. Não se lhes deu importância antes. Creio que é um dos ofícios do poeta: dar a cada geração esse tipo de poema místico que contenha sua história, sua evolução e os grande símbolos em que o homem encerra suas enormes inquietudes do tempo.

[…]
O poeta é um pouco o anti-historiador. O historiador geralmente julga e extrai os resultados da história de um ponto de vista muito injusto para alguns povos. Seus beneficiários são precisamente aqueles que oprimiram seu povo: os generais, as grandes batalhas, os faraós que construíram sobre o lombo de seu povo umas imensas pirâmides para darem-se ao luxo de ter uma tumba; essa é a história. Então, o poeta deve – repito – conceder voz ao anônimo, ao sofredor, ao paciente, à outra história. E outorgar toda sua categoria para isso que os historiadores não levam em conta e que circula por debaixo dela. Ali é onde deve o poeta meter sua palavra, recuperando o humano que geralmente se perde nestes acontecimentos. Como há de ser possível que na maior parte de nossa história não haja mais que heróis que mataram, heróis que significaram milhões de mortes? É a tendência humana, o tanatos terrível, não? Por que não inventamos uma bomba atômica que, ao invés de destruir Hiroshima, produza uma cidade ou que semeie dez mil hectares de algodão?

Sempre estamos descobrindo primeiro a destruição. E o poeta é o grande cantor da vida, o grande cantor contra o tempo, ou seja, contra a morte. A poesia é anti-tanatos. Recuperamos todos esses rostos maravilhosos dos povos, ausentes nas estátuas oficiais.

[…]
Vasconcelos fala que é a quinta raça a que se está promovendo na América: a raça das raças, a raça cósmica, na qual se vai fixar um novo conceito. Depois de dar a volta ao mundo, o novo encontro de Ásia, África e Europa na América. Esse novo encontro, o que irá produzir? Boa parte depende de nós. Não podemos desbaratar de tal modo a América Hispânica e não ter nenhum destino senão simplesmente converter-se em uma civilização detida como a chama Tonybee, como essas frutas que ficam verdes e não chegam à sua maturidade. Creio que nossos povos possuem força suficiente e potencialidade criadora para dar algo novo. No longo processo de mestiçagem vão sendo criadas umas raízes e renovos especiais, que vêm das duas ou três raízes que nos fecundam, mas que vão se perdendo e ficando para trás. Nós estamos a quinhentos anos de haver tido essa prova.

PABLO ANTONIO CUADRA
“Entrevista con Pablo Antonio Cuadra”, concedida a Miguel Cabrera.
Madrid. 24/07/82. Revista Palimpsesto # 4. Sevilla. 1991.


O BARCO NEGRO

Cifar, em seu sonho ouviu os gritos
e o ululante caracol na neblina
da aurora. Olhou o barco
                – imóvel –
                fixo entre as ondas.
                – Se escutas
                na escura
                metade da noite
                – em águas altas –
                gritos que perguntam
                pelo porto :
                dobra o timão
                                  e foge     

Recortado na espuma
o casco escuro e carcomido,
(– Marinheiro!, gritavam –)
as cargas rotas
balançando-se e as velas
negras e apodrecidas
                                   (– Marinheiro! –)
Posto de pé, Cifar, abraçou o mastro

                – Se a lua
                ilumina seus rostos
                cinzentos e barbudos
                Se te dizem
                – Marinheiro, para onde vamos?
                Se te imploram:
                – Marinheiro, ensina-nos
                o porto!
                dobra o timão
                e foge!

Há tempo zarparam
Há séculos navegam no sonho

                São tuas próprias perguntas
                perdidas no tempo


ANCESTRAIS

I

E entraram porta adentro e indagaram
quem era o senhor
e os parentes respeitosamente
apontaram com os lábios o dono da fazenda
e os comerciantes inclinaram suas cabeças
e com delicado respeito saudaram
e deram logo, ali de pé, as razões de sua visita,
porque eram comerciantes que vinham desde o Anáhuac
e lhe ofertaram logo discretamente,
como se fossem ninharias, esplêndidos obséquios
e falaram em seguida de seu negócio, já ao final,
como coisa sem interesse que quase se esquece
e as vozes eram mesuradas y corteses
quase como murmúrios
e meu pai disse:
parecem reis.

II

Logo que minha mãe ficou viúva
governou seu encargo com singular prudência e acerto
e nesse dia, pouco depois do almoço,
cruzou a grande praça solitária cheia de sol
e o silêncio serrado por milhares de cigarras
e desde as janelas vizinhos e vizinhas
viram-na cruzar a praça da Casa do Conselho à Paróquia
e com seu traje negro nunca foi tão alva sua cor estrangeira
nem se viu nunca tanto garbo y ritmo de mulher
e uns aos outros se diziam: – Nem a própria rainha da Espanha
cruzaria a praça com tanta dignidade.

Isto se deu quando a América imaginava seus reis
e eles em seu império de distâncias
nunca imaginaram as metáforas de seu oficio.


EXÍLIOS

A Stefan Baciu

Quando canta o galo levanto-me e vejo o amanhecer de minha pátria
É bela e radiante e meu coração é um rei que recebe seu trono
Não. Não irei de minha pátria. Aqui morrerei.

Porém o sol se põe e volto meus olhos ao país de meus sonhos
e toda a cinza do mundo cai sobre sua face
Então quisera ser estrangeiro
para regressar à minha pátria
Então ouço o rumor feliz das cidades que não são minhas
Ouço a noite cheia de exílios
Devo partir, me digo
E meu sonho é uma viagem sob a tutela dos astros.
Até que canta o galo
e outra vez o amanhecer se apodera de meu canto
Não. Não irei daqui. E volto
a levantar o muro com as pedras que caíram.

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