José Antonio Ramos Sucre (Venezuela, 1890-1930)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A maior parte das obras mestras o são de obscuridade e sua leitura ordinariamente não aumenta a noção do que havíamos ouvido acerca delas. É natural que os ensinamentos dos gênios sejam enigmas; a ninguém estranha que o caudal de água caído de muito alto sobre a terra a fira profundamente e se envolva em névoas evanescentes. Com razão alguém disse que o claro é geralmente vulgar ou que o belo se apresenta ataviado de uma obscuridade e mistério que, a uns, causa inquietude, a outros, respeito.

Este diferente resultado do desconhecido depende do temperamento de cada um. Uma filosofia começava assentando que para o homem o mistério é um tormento; e Bacon, ao contrário, pensava que ante o desconhecido o homem se rendia de bom grado, diminuindo a audácia de suas investigações.

Esta diferença no sentir se deve imputar a que os escritores atribuem à humanidade suas opiniões, porque quase nunca se atrevem a falar de si mesmos e empregam, em lugar do eu franco e odioso, o se vago e impessoal.

Em literatura a obscuridade do estilo contribui para aumentar o número de admiradores inconscientes que repetem e consagram com furor a opinião de uns poucos escolhidos dotados de critério ou de audácia. Entre os homens de escasso talento contam os autores célebres seus mais decididos partidários. É sabido que quando adoeceu daquela divina febre de antiguidade o espírito humano, os retóricos que interpretavam os autores antigos atribuíram-lhes, em seu entusiasmo de ignorantes, ideias que nunca haviam tido e beleza que nunca haviam pensado.

JOSÉ ANTONIO RAMOS SUCRE
“Ideas dispersas sobre Fausto”. Revista El cojo Ilustrado. Caracas. Abril de 1912.


SANTORAL

O monge vive na caverna, originada de pretéritos assaltos do mar. A água veemente conseguiu abrir uma portinhola na rocha.

A costa retorcida, alvorada de tantas ondas, é a orla do manto da noite encerrada.

A aspiração das criaturas ao infinito se torna angustiosa sob o peso da sombra. Adivinham e sentem o cerco de um cativeiro.

Seres informes deslizam pelo ar fluido. São agentes do mar, anteriores ao nascimento da terra, mais poderosos que a mudança de estações.

O monge está rodeado pelas tentações do medo. Acode ao ofício da meia-noite, aprendido em uma irmandade sigilosa.

O socorro do céu afugenta as potências inimigas da luz. Manifesta-se no trovão profundo e amplo, no relâmpago entrecortado.

A face do monge para sempre conserva o estupor da noite do prodígio.


O CASTIGO

O visionário me ensinava a numeração valendo-se de uma árvore de folhas incalculáveis. Passou a iniciar-me nas figuras e volumes assinalando-me o exemplo do cristal e a proporção guardada entre as peças de uma flor. Descobria no corpo escuro um átomo da luz insinuante.

O visionário desaparecia ao cair da tarde em um bote de cabida superficial. Criava a ilusão de soçobrar em uma distância ambígua, em meio a um tumulto de ondas. Eu via flutuarem as relíquias de sua veste e de sua coroa de cipreste.

Retornava no dia seguinte, às escondidas de mim, usando a mesma vestimenta solene de um sacerdote hebraico, conforme o ritual de Moisés.

Comentava nesse momento a passagem de um rolo de pergaminho, escrita sem vogais. A capa mostrava a imagem do licáon, o lobo da África. Terminava citando a nome dos profetas vingativos e soltava à face da manhã um hino grandioso onde se esgotava a torrente de sua voz.

Deixei de vê-lo quando se pôs a falar temerariamente, através do espaço livre, com um astro magnético.

O templo, onde se havia recolhido, veio subitamente ao chão, rodeado de soberbas chamas.


O CONVITE

Taís era uma cortesã da antiguidade. Seu nome constava na obra perdida de Meandro. O tempo respeitava sua juventude e eu não encontrei nos resíduos da era clássica nenhum sinal de sua morte.
Li uma façanha de sua perfídia em um documento reconstituído. Se eu não revelasse aos homens esse episódio faltaria aos conselhos da moral de Plutarco.

Taís atraiu seus amantes a uma cilada, depois de reconciliá-los mutuamente. Acomodaram-se em cadeiras de marfim, dignas de um senado de reis. A mulher os deixou maravilhados e suspensos com a bizarria de sua imaginação e lhes cingiu uma coroa de dormideiras, enquanto lançava ao fogo um laurel seco. Este laurel seria o bastante para defender a vida de um herói na empresa de visitar os infernos.
Os convidados ficaram embelezados e perdidos na incerteza.

Taís havia abolido seu entendimento e lhes havia inspirado a ilusão de estarem sempre em meio aos prelúdios da alvorada. Às vezes ouviam um hino desvanecido na bruma cândida. Entoavam-no umas jovens coroadas de jacintos.

As harpias e as quimeras teciam um véu circular e desciam, suspensas pelos braços, de uma árvore insociável.


A VERDADE

A andorinha conhece o calendário, divide o ano pelo conselho de uma sabedoria inata. Pode prescindir do aviso de lua variável.

Segundo a ciência natural, a beleza da andorinha é a ordenação de seu organismo para o voo, uma proporção entre o meio e o fim, entre o método e o resultado, uma ideia socrática.

A andorinha salva continentes em um dia de viagem e conhece desde antigamente a medida do globo terrestre, antecipando-se aos dragões infalíveis do mito.

Um astrônomo delirante cavilava em sua ilha de pinheiros e rochedos, presente de um rei, sobre os anéis de Saturno e outras maravilhas do espaço e sobre o espírito elementar do fogo, o fósforo inquieto. Um prejulgamento teológico lhe havia inspirado o pensamento de situar no contorno do sol o desterro das almas condenadas.

Recuperou o sentimento humano da realidade em meio a uma tíbia primavera. As andorinhas habituadas a rodear os monumentos de um reino defunto, erigidos conforme uma matemática primordial, subiram até o clima rigoroso e disseram ao ouvido do sábio a solução do enigma do universo, o segredo da esfinge lasciva.


SUTILEZA

Eu escutava o discurso de uma mulher inteligente e sensível. Estava sentada em uma cadeira régia, de um só pé. Adaptava seus braços aos do assento e mantinha a face de beleza imperturbável sobre o dorso das mãos entrelaçadas. Eu lhe recordei a atitude semelhante de Arquimedes em uma conhecida estampa.

A mulher preferiu a igualdade com Margarita de Navarra, no ato de imaginar seus contos livres. Suas palavras criaram o ambiente de um drama cortesão, onde um delicado cavalheira teme o engenho de uma dama festiva e a celebra ao mesmo tempo em uns versos frívolos.

Aproveitei esse instante para sublinhar uma passagem significativa onde a rainha sente, de modo visível, o pensamento de Bocaccio e seu estilo ciceroniano. Utilizei a meu serviço a eloquência de Fiammetta e seu aceno insinuante e sofri de minha gentil senhora um protesto indignado.

Acudi então a uma superstição favorita dos antigos. Abri ao acaso um dos livros de minha devoção e encontrei o exemplo de minha sorte na paráfrase de um soneto de Shakespeare.

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