Matar o Miguel – Um Conto de Nara Vidal

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Nara Vidal nasceu em Minas Gerais. É escritora, editora, tradutora e professora. À frente da Capitolina Books, livraria online, edita a Capitolina Revista, suplemento literário em língua portuguesa e que lhe rendeu um Prêmio APCA em 2021. É autora de livros para crianças e adultos. Seu romance de estreia Sorte foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos 2019 e está publicado na Holanda e em 2022, no México. Seu livro mais recente, Mapas para Desaparecer (Editora Faria e Silva) é uma coleção de contos. Seu próximo romance, no prelo, sairá pela Editora Todavia.


Matar o Miguel

Semana que vem vou matar o Miguel.
Na agenda, quarta-feira, às duas da tarde.
Não tem muito preparo. Basta chegar lá. Vou sozinha, em silêncio. Miguel é um nome belíssimo. Se eu tivesse um filho, seu nome seria Miguel.
No calendário estão marcados:
segunda-feira: dentista às 10:00; reunião de trabalho às 16:00
terça-feira: reunião de pais às 09:00; pesquisa de trabalho à tarde
quarta-feira: matar o Miguel às 14:00
quinta-feira: dia de descanso
sexta-feira: pesquisa, estudo, tocar o projeto novo

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Sua pele era muito macia. Surpreendentemente macia para a pele de um homem. Era um contraste com os cabelos crespos, encaracolados, crescendo sempre para cima em uma coroa de flores e contrastando com os meus que lembram uma samambaia chorona. A pele dele também destoava da minha; pele escura, quente, muito macia. O corpo era magro e me dava muito prazer. Quando fizemos sexo, foi um sexo aquático, escorregadio engolido em água corrente. Juntos parecíamos uma aula de natação. Nos faltava ar.
Ninguém sabia de nós; Miguel parecia estar lá.

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Eu estava imóvel. As duas pernas dobradas e juntas caídas para um lado. Estava bem no centro da cama. Segurava os peitos com as palmas das mãos abertas posicionando cada um no lugar onde, naturalmente, estiveram há vinte anos. Os olhos parados no teto rodaram pela armação de gesso que contornava os, no máximo, três metros quadrados. Na sala ele abriu as cortinas marrons. Na cama, uma luz conclui de vez a festa. Como eu fui parar aqui? Queria que, por mágica, levantasse já vestida e fosse logo pegar o metrô. Mas o depois é terrível com suas luzes acesas expondo saia, blusa escondidas atrás de móveis. Pensava em me levantar, ainda nua, procurar por tudo que ficou perdido no caminho entre a sala e o quarto. Fim de festa: luzes acesas, cadeiras colocadas em cima das mesas, limpeza do chão, música enterrada, silêncio. Levantar-me da cama, nua, vasculhar cantos e sob móveis à procura da dignidade de volta. Miguel.
Eu já louca para sair dali e levar só aqueles pedaços quentes de memória para ajudar a passar a semana morta. Como eu fui parar aqui?

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O amante cumpriu, bem ou mal, esse papel por três meses. Catei minhas peças de roupa várias vezes do chão de carpete do apartamento pequeno. Quase nos afogamos de tanto beijar em cima daquele sofá, acho que era azul. O trajeto entre a sala e o quarto dele era o único movimento no qual eu pensava por três meses completos. Ao meio-dia, as pessoas almoçavam, as pessoas trabalhavam, nós nos arrastávamos no chão, na cama.
Um dia, cheguei em casa com um pequeno corte no lábio inferior, mas ninguém notou. Passo insuspeita pra lá e pra cá dentro de casa, à distância de todos que estão longe demais de mim para suspeitar do meu cheiro novo que trouxe comigo. O amante foi a prova da minha morte doméstica. Eu, cadáver já há anos, não imaginava que pudesse me corroer entre as pernas a carne com o desejo desesperado que se acomodou. Eu ardia. Mas o clichê que começa é o clichê que termina. Ele foi embora do país. Deixou comigo o Miguel, testemunha aniquilada.

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Miguel é um nome belíssimo. Se eu tivesse um filho, seu nome seria Miguel. Se menina, Carolina.

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