NATHAN MATOS (CE) É editor. Formado em Letras pela Universidade Federal do Ceará, com Mestrado em Literatura Comparada. Atualmente é doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais. Foi editor da Revista Pechisbeque e da Revista Substânsia. É editor nas editoras Substânsia e Moinhos, e criador do portal literário LiteraturaBr.
Que vem
depois?
o
depois.
O que é
certo?
o mais
incerto
o indefinido o
aberto.
(poema inédito)
O que vem depois da vida? O incerto, o aberto. Não se sabe.
A poesia diante o enigma da vida é, provavelmente, o indefinido.
E essa indefinição perpassa parte da obra de uma poeta que, aos poucos, passa a ser resgatada, seja pela republicação de toda sua obra, seja pela publicação de um livro – O enigma Orides, de Gustavo de Castro, publicado pela Hedra ao final de 2015 – que traça um perfil biográfico incluindo poemas inéditos.
Contudo, não pretendo discutir sobre a vida da poeta, mas falar de sua poesia, que traz consigo a incerteza da vida, a fragmentação e a existência de um movimento do existir, que tende a se desenvolver de várias maneiras, e que é representada em seus poemas ora de maneira espiralada, ora de maneira circular.
Para o leitor que somente agora tem a chance de saber mais sobre a poesia de Orides, chamo atenção para a existência de uma desarticulação dos processos linguísticos que a poeta realiza e que acabam por evidenciar um jogo de brincar com a palavra, num processo de ressignificação e desmembramento da linguagem. Foi essa brincadeira, por meio do poema “Ludismo”, um dos primeiros poemas publicado em seu livro de estreia, Transposição, que me inseriu na teia orideana:
Quebrar o brinquedo
é mais divertido.
As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
Os cacos são outros reais
antes ocultos pela forma
e o jogo estraçalhado
se multiplica ao infinito
e é mais real que a integridade: mais lúcido.
[…]
Quebrar o brinquedo ainda
é mais brincar.¹
No sentido de fazer existir algo exclusivo naquilo que cria, Orides se utiliza de certos artifícios para dar uma nova significância à forma de como vê o mundo. O seu brinquedo é a palavra, sua diversão é “quebrá-la”, é realizar cortes entre seu significado e significante para criar outros segredos, outros reais. A palavra, então, acaba por estar submetida ao jogo de brincar da poeta, e que ao ser estraçalhada multiplica-se, potencializa-se ao infinito; seu significado primeiro é deixado de lado para possibilitar a sua ressignificação, o que na poesia orideana ocorre de maneira contínua e incessante. Tal ideia se faz presente nas palavras poéticas orideanas no poema “Transposição”, publicado no livro homônimo, quando, por exemplo, a poeta se utiliza da união de palavras, como “vidaluz” e “coresinstantes”.
Orides parece querer mostrar que, com o uso da palavra poética, “[…] a poesia é um tipo de verdade e uma maneira de explorar a realidade e de procurar o real”,² pois é com a palavra poética que se revelam novos mundos, novas imagens e realidades. É como se a linguagem proporcionasse uma metamorfose de si própria por meio da palavra poética, que, como diria Octavio Paz, “[…] é poesia em estado natural. Cada palavra ou grupo de palavras é uma metáfora. E desse modo é um instrumento mágico, ou seja, algo suscetível de tornar-se outra coisa e de transmutar aquilo em que toca”.³
Isso é o que faz Orides. Por meio de movimentos que parecem querer constituir uma representação do que é a vida, ela proporciona, a partir da palavra poética, a criação de novas realidades fragmentadas, infinitas, que ressignificam e representam a vida. Esse “movimento infinito” deseja desorganizar não apenas a palavra, mas a possibilidade do real, buscando evidenciar as mudanças que existem nos seres e nas coisas, num diálogo direto com o pensamento de Heráclito, quando ele diz “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo”.
Daí, para entender a ideia desses movimentos, é preciso voltar o olhar para alguns pensadores pré-socráticos e buscar compreender a ideia do eterno fluir, ou do fluxo, presente em todas as coisas, como bem apontou Heráclito. Só assim será possível entender mais profundamente a relação existente entre o ser e as coisas que Orides vai tecendo, aos poucos, em sua trama.
Por estar em constante diálogo com as ideias de Anaximandro, Heráclito e Parmênides, pode-se dizer que a poesia orideana tem como centro a questão do tempo, a transformação das palavras e uma tensão predominante entre as coisas e os seres, constituídas por meio do uso dos símbolos, o que facilmente é constatado ao longo de sua obra poética.
Esse movimento de tensão estaria baseado, provavelmente, no que pensavam os três pré-socráticos. Enquanto Anaximandro sugeria que o tempo está acima de todas as coisas, pois é ele quem determina os acontecimentos; Heráclito defendia a ideia de que o mundo se mantém num eterno movimento, e Parmênides fundamentava que só há um ser único e imóvel. Esses pensamentos divergentes contribuem diretamente para se analisar a presença de uma dupla natureza da poesia orideana, como o ser e o nada, o sujeito e o silêncio, a meditação e a fala. Isso porque o pensamento pré-socrático acaba por enunciar o que permanece invisível aos nossos olhos, e Orides faz isso através da palavra poética em sua poesia.
Para uma melhor exemplificação desses movimentos, que ora são circulares, ora são espirais, ora são cíclicos, podemos citar alguns poemas, como Ciclo (II), em que os pássaros surgem como símbolos dos acontecimentos que nunca cessam de acontecer, mas que também não deixam de existir em nossa memória, repetidamente, como o ato de migração, dando-nos uma ideia de circularidade:
Os pássaros
retornam
sempre e
sempre.
O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma
ser
e
ritmo.
Os pássaros
retornam. Sempre os
pássaros.
A infância volta devagarinho.
Ou em Ode, quando se percebe a ideia de um movimento em espiral que se explicita em ciclos,4 tendo em seu cerne o questionamento: Haverá fim ou início?
O início? O mesmo fim.
O fim? O mesmo início.
Não há fim nem início. Sem história
o ciclo dos dias
vive-nos.
20
Aqui é possível verificar uma busca da representação da criação poética de Orides Fontela por meio da relação de um movimento em espiral que vê na repetição dos ciclos uma possível existência, configurando assim um movimento cíclico, ilimitado e eterno. Já no poema Círculo, o movimento circular acaba por devorar todas as coisas existentes, estando presente em tudo:
O círculo
é astuto:
enrola-se
envolve-se
autofagicamente.
Depois
explode
– galáxias! –
abre-se
vivo
pulsa
multiplica-se
divindadecírculo
perplexa
(perversa?)
o unicírculo
devorando tudo.
À vista disso, pode-se dizer que há nessa poesia um ‘movimento do existir’, que acaba por se compor de um eterno prosseguir e retroceder presente nos seres, na natureza, que nunca cessa e nunca é o mesmo, evidenciando algo contínuo, repetitivo e infinito. Esse ‘movimento do existir’ estaria presente na poesia orideana, no seu eu-lírico, que com sua angústia avança e retrocede perante a morte, a dor, a existência. Existência atuante como um mover contínuo, infinito. É importante dizer que o ‘movimento do existir’, desse modo, não converge com aquele proposto pelo Existencialismo, em que o homem está como cerne da existência.
Se, por um instante, nos ativermos à vida dos seres, perceberemos que ele – o movimento do existir – ocorre em vários momentos. O voo dos pássaros, por exemplo, surge como um movimento linear, de ir e vir, mas, que ao levar em consideração o movimento de migração que realizam, pode-se relacionar facilmente a um movimento de ciclo. Todos os pássaros realizam o movimento de voo, que os leva, muitas vezes, em sua vida, a migrar, refletindo assim um movimento cíclico.
A própria poeta remonta em sua obra o movimento do voo do pássaro em vários poemas, assim como o desabrochar de uma flor. Movimento esse que não cessa de acontecer, pois o ato de desabrochar pode ser tido como infinito, uma vez que ocorre em todas as rosas.
O desabrochar possui um instante de início e fim quando nos atemos a uma rosa em específico, pois uma rosa só poderá desabrochar uma vez em vida. Mas ao apreender o movimento da existência do desabrochar, vê-se que ele não tem início ou fim, já que todas as rosas que já existiram, as que existem e as que existirão possuem o ato do desabrochar.
No fluir finito da rosa, assim como no voo finito de um determinado pássaro, há a existência dos movimentos incessantes e repetitivos, que são caros a todos os pássaros, a todas as rosas, o “movimento do existir”, na presença do movimento finito, estaria presente a ideia da circularidade ou da repetição de um movimento possível, que ocorre infinitamente; os pássaros não deixarão de migrar, nem as rosas deixarão de desabrochar.
Isso contribui para que seja possível definir a existência de um ritmo circular na poesia de Orides Fontela. Esse ritmo não estaria presente apenas nas referências criadas pela poeta em seus poemas, mas também em toda a sua obra. Ao lermos um poema, temos a impressão que Orides está a nos remeter a um outro poema, e outro, incessantemente, como estivesse sempre apontando para uma próxima leitura necessária, mas que, ao chegar ao final, esse movimento não cessa, ele continua para seu próximo poema, seu próximo livro, é como estivesse a nos remeter ao seu princípio fundador e mantenedor de sua poética.
Como se estivesse a nos dizer que assim como na vida a poesia funciona com movimentos, com ritmos cadenciados, que se repetem, mas nunca são os mesmos. É como se existisse na criação poética da obra orideana uma representação da vida que se interliga, se entremeia, que se repete e não consegue se definir como início nem fim.
Provavelmente, não há certeza no que digo, Orides, talvez, não tenha produzido suas obras pensando nisso, mas apenas naquilo que está além dos nossos olhos, o incerto. O indefinido assim se constrói, se solidifica, se faz presente, e não se sabe como, nem quando ou onde ele termina. O que se sabe é que ele se estrutura na presença desse movimento do existir, que através de movimentos que possuem um fluir, seja cíclico, circular ou espiral, se dá de maneira eterna e infinita. E não pense que isso não é possível, pois, como diria Orides Fontela, “Só existe o impossível”.
Notas
1 FONTELA, Orides. Poesia Reunida. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
2 LOPES, Marcos Aparecido. Religião, filosofia e teologia na literatura portuguesa contemporânea: os escritores católicos. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009, p. 1.
3 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 30-31.
4 VILLACA, ALCIDES. Símbolo e acontecimento na poesia de Orides. Estud. av. [online]. 2015, vol.29, n. 85, p. 205.
Referências
ANAXIMANDRO. Fragmentos. In: Vol. Pré-Socráticos, Col. Os Pensadores. Trad. de José América Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
ANDRADE, Alexandre de Melo. Orides Fontela – a poética do retorno. Revista Darandina. v. 2, n. 2, p. 1-12, junho. 2009.
FONTELA, Orides. Nas trilhas do trevo. In: Artes e ofícios da poesia. Organizado por Augusto Massi. Porto Alegre: Artes e ofício, 1991. p. 259.
FONTELA, Orides. Sobre a poesia e a filosofia – um depoimento. In: PUCHEU, Alberto (org.). Poesia e Filosofia. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.
HERÁCLITO. Fragmentos. In: Vol. Pré-Socráticos, Col. Os Pensadores. Trad. de José América Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
LOPES, Marcos Aparecido. O canto e o silêncio na poética de Orides Fontela. Revista Ipotesi (UFJF), v. 12, p. 115-128, 2008.
PARMÊNIDES. Fragmentos. In: Vol. Pré-Socráticos, Col. Os Pensadores. Trad. de José América Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
SUSSEKIND, Flora. “Uma discreta cirurgia da flor” In: Papéis Colados. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1993.
VILLACA, ALCIDES. Símbolo e acontecimento na poesia de Orides. Estud. av. [online]. 2015, vol.29, n.85, pp. 295-312.