2 Contos de Bea Correa

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Bea Correa é designer e escritora paulista transitando entre Brasil e Holanda. Estudou direito na USP e design gráfico na Gerrit Rietveld Academy. Atualmente está cursando pós-graduação em escrita criativa e arquitetando um novo espaço de arte em Amsterdã. Na mindwhatyouwear.com escreve sobre pequenas e grandes questões existenciais em forma de moda.

Publicações na Aboio, Ruído Manifesto, Revista Ria, Cassandra, Toró Editorial, Jirau de Histórias e em coletânias da Pinturas das palavras, Escreviventes, Primavera editorial, Caos e Letras, Philos e Selo Off Flip (finalista 2023, categoria conto)

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Os brincos de borboleta

Resolveu ir ao enterro.

Não era a ideia inicial, Fabí tinha outros planos para gastar aquele dia livre, ia almoçar com amigas da faculdade de direito. Mas daí a mãe ligou para relatar suas novas queixas de saúde, e entre uma lamúria e outra, comentou que Dolores tinha morrido. A prima tinha avisado, o enterro seria às cinco da tarde.

Dolores.

Nunca mais viu a babá depois que cresceu, até tinha esquecido que ela existia. Enquanto procurava no armário uma roupa para o encontro com as amigas, Fabí ia remexendo nas gavetas da memória as imagens desbotadas da infância. A mão que segurava a sua no caminho pra escola, que desembaraçava seu cabelo depois do banho, que cortava seu bife no almoço, não era a de sua mãe, mas a de Dolores. Então puxou o pretinho básico do cabide e o estendeu em cima da cama, podia passar no velório depois do restaurante, caso desse tempo.
Dolores trabalhou anos na casa da família, era uma faz tudo. Já a mãe de Fabí não trabalhava, mas vivia muito ocupada. Gostava de receber.

Coq au vin, paella, bouillabaisse, boeuf bourguignon, Dolores cozinhava muito bem as receitas com nomes difíceis que a mãe recortava das páginas das revistas, e enquanto a patroa levava os méritos pelos jantares badalados que organizava, Dolores levava os pratos sujos para a cozinha. A empregada tinha uma filha, a Ritinha, quase da mesma idade da Fabí. Que mal viu crescer, a menina morava com a avó em Paraisópolis.

Lugar que a mãe da Fabí nunca pisou, preferia acompanhar o marido nas viagens a Miami, Nova York e Paris. De ir duas vezes por semana ao salão de beleza, tinha nojo de lavar o próprio cabelo. Tudo isso e mais a tranca com as amigas nas tardes do clube de campo, resultava que não tinha tempo para levar Fabí ao parquinho. Quem levava era Dolores. Até que um dia ficou doente e foi substituída por uma prima mais nova, aquela mesma que avisou do enterro.

Quando ligou para a mãe pedindo o endereço do velório, perguntou se queria ir também, mas era justamente na hora da podóloga. Impossível desmarcar.

Ela se arrependeu um pouco de ter ido. Era longe. Pegou um trânsito danado. Fazia um calor dos infernos e o lugar não tinha ar condicionado. A sala estava apinhada de gente e Fabí trancou o nariz para não respirar o cheiro de suor misturado com colônia barata. Só havia uma cadeira para sentar, perto do caixão, já ocupada por uma mulher. Ficou parada e acanhada, sentindo todos os olhares presos nela, sedenta e murcha feito o buquê de flores comprado para Dolores.

Então a mulher sentada na cadeira se virou e foi como se Fabí visse Dolores novamente. Mas aquela não era Dolores, Dolores estava no caixão. Era Ritinha, a filha! Que se levantou rapidamente e a envolveu num abraço macio, parecido com o abraço da babá. E disse algo que Fabí não entendeu, mas não importava, pois era como se ouvisse de novo a voz de Dolores.

Foi quando notou os brincos na orelha da Ritinha. Em forma de borboleta, as asas de ouro cravejadas com pedrinhas de rubi, no centro uma esmeralda se fazendo de corpo. Iguaizinhos aos que Fabí ganhara da avó quando fez quinze anos. Que ela adorava, que ficou tão triste quando eles sumiram.

Seu primeiro impulso foi arrancar os brincos da orelha da Ritinha, tomar de volta o que era seu. Mas não disse nada, só apertou o buquê com força, querendo sentir os espinhos das rosas espetarem a carne, para distrair aquela outra dor que sofria. Ritinha continuava falando, puxando-a para a única cadeira, parecia não perceber nada. Fabí deixou-se sentar e então encarou a verdadeira Dolores, impassível no seu caixão. Quis lhe perguntar por que tinha roubado seus brincos, não sabia como gostava deles?

Então a resposta chegou. Inaudível, mas chegou. E ela entendeu. Depositou as flores no caixão, abraçou Ritinha mais uma vez e se foi.

Sem os brincos.


Brigamour

Agora um cigarrinho, que também sou filha de Deus, né. São dez e quinze da manhã e já enrolei cinquenta pistache com crocância de caramelo salgado. Antes do almoço finalizo o limoncello molhado no chocolate branco. Depois sobram o tradicional e o creme brulée. Cadê a Carmela que ficou de ajudar. Saiu ontem com o namorado e não voltou. Será que ligo. Melhor não, ainda é cedo. Checo o e-mail no celular. Nada. Abro a janela do Instagram e Bruna desfila na minha timeline. Wauw. Parece soirée, mas é beachwear. Como é bonita. Mas tá magra, viu. Também não come nada. E não sai da academia. Nem precisa, né. Tem uma dentro de casa. Última vez que visitei, meu sobrinho de oito anos me analisou de cima pra baixo e ofereceu, não quer usar a academia da minha mãe, tia. Bruna chorou de rir. Não deixou nem os filhos comerem os brigadeiros que levei. Deu tudo pra empregada. Atrás de Bruna tem um jardim palaciano, uma piscina e uma escultura abstrata. No horizonte dá pra ver colinas e um pedaço de pôr-do-sol. Ou é de nascer do sol. Vai saber. Bruna nunca coloca legenda. Se comunica em emoticon. Será que tem dislexia. Ia mal na escola. Também raramente marca o lugar onde está. Deve ter medo de sequestro. Olha essa receita de camafeu com cobertura de chocolate meio amargo, diz que fica menos doce que fondant. Lembrei da mesa de docinhos do meu casamento. E do meu ex folgado, que não paga pensão há doze anos. Existência besta essa minha. Gastando a vida enrolando brigadeiro e cuidando de uma mãe demencial. Que vai fazer oitenta anos. Que é mãe de Bruna também. Que faz tempo que Bruna não visita. Nem respondeu se vem na festa de aniversário. Uma adolescente de oitenta anos. Sabe que ficou melhor depois do Alzheimer. Uma filha da mãe racista que era. Quando Bruna, piquitita, se apaixonou pelo menino preto da igreja presbiteriana, mamãe proibiu o namoro. Cada macaco no seu galho, sinalizou. E Bruna entendeu o recado, só casou com homem loiro e rico. Ainda bem que mamãe já tava doente quando conheci meu padre nordestino. Ele tem um bom pé na cozinha. Se é que é meu ainda. Falando em cozinha, deixa eu voltar pra ela.

As pessoas ficam surpresas quando digo que namoro um padre. É que ele é padre da Igreja Anglicana. Padre e comunista. Tão diferente da minha família Bolsominion. Conheci quando levei as crianças pra Fernando de Noronha. Sete anos atrás. Meu padre poeta. Com ele que peguei gosto pra escrever. Lendo as poesias que fez pra mim. Quando terminar de enrolar esses, vou checar o e-mail de novo. Disseram que o resultado do concurso sai hoje. Ia ser bom ganhar. Abrir um caminho novo. Meu padre que estimulou. Mas agora só premiam negro, indígena e LGBT sei lá o quê mais, essa sigla só aumenta. Outro dia fui na Havaianas comprar um chinelo pro Nicola e perguntei onde ficavam os modelos masculinos. A vendedora, ou era o vendedor, me olhou como se eu fosse uma tiranossaura: “É tudo unissex agora, amigue”. Ami-GA, amore. Ami-GA. Odeio essa moda agora de excluir feminino e masculino do dicionário. Saudades da época que a gente era Yin e Yang e pronto.

Acabou o chocolate branco. E se ligar pra Carmela comprar antes de voltar pra casa. Não, melhor mandar um áudio. Enquanto isso enrolo o tradicional com chocolate belga. Nunca que vão escolher uma socialite branca e falida. Se bem que sou mulher né, faço uma chance. Melhor que ser Hétero Top. Esse agora só serve pra personagem vilão. Ainda bem que mamãe já tava ausente quando a fábrica faliu e Bebeto deu o tiro no peito. Se tivessem deixado as mulheres da família trabalharem na fábrica, garanto que a gente não tinha falido. Bando de incompetentes. Mamãe tá engraçada, viu. Agora acha que tem a idade da neta. Cismou que o namorado da Carmela tá paquerando ela. Acho que tá apaixonada por ele. Se perfuma e passa batom quando o Lucas aparece. Carmela chegou de ressaca, sem o chocolate branco. Vou ter que ir ao supermercado. Mas antes vou checar o e-mail.

Não vou nem fumar hoje, tô enjoada. São onze e quinze da manhã e me atrasei, só enrolei dez doce de leite com lasca de coco queimado. Ganhei o terceiro lugar. E um troféu cafona. Bruna chorou de rir, “mas não pagam nada”, acho que vou mandar praquele outro concurso que tem prêmio em dinheiro. Se bem que oferecem uma micharia. Meu padre mandou um buquê de rosas vermelhas. Fizemos as pazes. Não aguento aquelas beatas em cima dele no Facebook. Ele se diverte com meu ciúme. Matamos a garrafa de Moët & Chandon que ele trouxe, “mas comunista bebe champanhe”,  zoou a Bruna. Acho que me precipitei convidando meu padre pro aniversário de oitenta anos da mamãe. Porque agora Bruna ligou e diz que vem também. E vai trazer o namorado novo, o pecuarista. Nem vão dormir aqui, vem e voltam de helicóptero no mesmo dia. Bruna diz que tem boas notícias pra mim. Que na festa de aniversário conversamos melhor. Acho que finalmente caiu a ficha e vai levar a mamãe pra morar com ela. Carmela deu pulinhos de alegria quando soube que a tia vem. Bruna fica seduzindo a sobrinha, dando os modelitos que não usa mais. Imagina se meu padre começa a defender o Movimento Sem Terra na festa de aniversário.

São quase onze e meia da noite e meu braço tá dolorido de tanto mexer massa de brigadeiro. Cadê a Carmela que não ajuda. Saiu de casa batendo a porta e ainda não voltou. Quero comprar aquela panela que mexe doce sozinha, vi por 1689,99 reais no Mercado Livre. A festa de aniversário foi um sucesso, meu padre dançou até forró com a mamãe. Ele se entendeu muito bem com o pecuarista, até conseguiu uma doação pro seu projeto de sem-teto. Bruna chorou de tristeza. Mamãe não a reconheceu. Bem feito. Vai morar em Paris com o fazendeiro. O que um criador de gado vai fazer em Paris, me diz. Convidou a Carmela pra ir junto. Que deu pulinhos de alegria. Não vou deixar ela roubar minha filha. Por que não leva a mãe demencial. Essa cozinha tá um inferno de quente.

Uma semana sem fumar, o difícil é essa hora da pausa. São dez e quinze da manhã e já enrolei cinquenta cereja maraschino. Antes do almoço finalizo o capim santo, receita da Morena Leite. Depois sobram o tradicional e o crocante de Ovomaltine. Checo o e-mail no celular. Nada. Abro a janela do Instagram e Carmela desfila na minha timeline. Wauw. Como está bonita. Isso é França ou Itália. Que barulho é esse. Preciso ficar alerta, mamãe ontem fugiu de casa. Desapareceu como que por encanto. O Nicola procurou pelo prédio todo e o zelador interfonou os moradores. Encontramos ela no sexto andar, simplesmente abriu a porta de um apartamento e entrou. A moradora levou um susto danado quando saiu do banho e deu de cara com mamãe de pijama sentada no sofá dela, assistindo TV. Quem é essa Sirlene Gomes que fica comentando com coraçãozinho os posts do meu padre. Diz que serve ao Senhor mas bota foto de tanga no perfil. Hoje quero testar aquela receita do camafeu sem fondant, com cobertura de chocolate meio amargo. Diz que tem menos caloria.

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