2 Contos de Fernanda Paz

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Fernanda Paz, Formada em Artes Plásticas pela UFPI e Pedagogia pela UESPI; Especialista em Educação Infantil; Professora da Prefeitura Municipal de Teresina; Atuação em curtas-metragens e montagens teatrais em Teresina; Publicações: O Buraco e Outras Histórias (Editora Multifoco), Antologia Transcultural de Poesia Feminina (Org. Marleide Lins), Blasfêmeas: Elas Entre Poemas e Prosas (Org. Francisco Carlos Pontes), Olhos de vidro (Editora Quimera), Coletânea de Contos Piauienses Caçuá (Org. Cineas Santos e Adriano Lobão).


A Máquina

Posso dizer que antes da Máquina as coisas não andavam muito bem. Promessas enfáticas na TV de minuto em minuto nos trazia esperança. Qualquer cidadão de bem da Vila livre só pensava nisso, sonhávamos com o momento da chegada da Máquina. Era fácil crer que tudo iria melhorar.

Infelizmente não falo por todos os moradores, sempre tem os baderneiros, são do contra e acham que tudo que é novo vem para o mal. Não nego que houve felicidade geral quando eles foram colocados nos eixos dias antes da Máquina chegar. Eram expostos no jornal da Vila, presos e até apanhavam na praça. Todos deviam concordar, quem está contra a ordem está contra o crescimento e o futuro. Deus estava de olho em tudo, certamente iriam ao inferno.

No dia da chegada da Máquina todos os cidadãos de bem da Vila livre estavam na praça principal, exceto as mulheres, essas não contavam, não é que atrapalhassem, mas também não ajudavam por não entenderem muito de assunto algum. Aqui no vilarejo elas se resumiam a trabalhos domésticos, a maior ascensão que poderiam ter era cuidar da casa dos grandes chefes ou olhar seus filhos, que com a benção divina seriam os futuros chefes da próxima geração.
Foram estourados foguetes. Houve passos coreografados por alguns grupos mais empenhados, foi um dia lindo. O céu estava bem azul e o clima estava agradável. Contagem regressiva, risos largos, olhos brilhantes.

E lá estava, a Máquina.

Chegando lentamente.

Um barulho estrondoso, quase como um avião nos céus.
A máquina era certamente coisa de Deus. Também vinha dos céus.
Fiquei anestesiado com aquela imensidão. Sempre ouvi falar de coisas maravilhosas do mundo, mas nunca havia saído de Vila livre, a burocracia sempre era grande e poucos conseguiam sair, só os grandes chefes tinham passagem aberta. Concordo, eles mereciam pelo total empenho que demonstravam na organização da nossa Vila.
Todos com as cabeças voltadas para o alto e aquela máquina imensa sobrevoando em chegada, cobrindo o azul, sua sombra escureceu um pouco o grande vilarejo. Parou no ar, alta, fixa e imponente como uma nave mãe. Ali se estabeleceria pelos dias seguintes. Talvez por toda vida.

Seis da manhã a máquina alarmava. Todos de Vila livre acordavam e começavam a sua contribuição para o bem comum. Não era só nosso “ganha pão”, cada um fazia o que lhe era designado com fervor, porque só assim a Vila livre iria crescer. Só parávamos às dez da noite, depois casa e cama. Uma vez no mês era permitido até nos divertirmos, não que passar o dia empenhado no trabalho regido pela Máquina não fosse empolgante, era sim. Acredito que todos do vilarejo também concordavam. Mas digo, uma diversão regada a álcool, jogos de Tv e até mulheres. Não as mulheres de casa, mas as selecionadas pelos grandes chefes. Só essas tinham direito de sair a rua a noite e beber com homens sem serem expostas no jornal da vila no dia seguinte.

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Nem sei como posso descrever o que mudou com a máquina. É algo como uma sensação que vem de dentro e nos move, nos engrandece e toma conta de tudo, ela está ali tão distante, entretanto a enxergo como uma representante de mim mesmo e de toda a minha vida. Devemos graças aos nossos grandes chefes que conseguiram com tamanha inteligência nos fazer servir a Máquina. Que bom que eles recebem tudo do melhor, tem acesso a coisas que nem imaginamos, eles merecem tudo o que nosso trabalho lhes possa proporcionar.

Com o passar dos anos vimos que não somente nós precisávamos da Máquina, ela também precisava de cada um de nós. Nosso trabalho árduo e incansável a fez crescer de tal modo que já cobria toda a Vila Livre. Cada vez se exigia mais dos moradores e tínhamos força e vontade para isso.

Em um dos poucos dias no ano em que passeava no parque de crianças da vila com o meu garoto, o vi parado admirando a imensidão da Máquina. Minha felicidade em sentir a continuação de um grande projeto naqueles pequenos olhos era inexorável. Esbocei um riso orgulhoso e então ele se voltou para mim com uma fala:

– Papai, sinto saudades de quando podíamos ver o céu de verdade.
Que ironia, crianças são assim inesperadas e tolas. Nunca entenderiam que o céu de verdade ofusca a nossa visão. Quando garoto, eu já quis tocar o céu.


Olhos de Vidro

Já enlouqueci várias vezes.

A gente sempre enlouquece um pouco cada dia.

Mas neste dia, enlouqueci por completo.

Abri o olho e não sabia se era noite ou dia. Toquei de leve os meus olhos e eles pareciam de vidro. Coloquei o dedo dentro olho e realmente era um aspecto de vidro. O problema era que eu não enxergava nada, mas sentia que havia alguma coisa a ser feita.
Respirei fundo, uma sensação de incomodo, o incomodo de um corpo estranho que agora faz parte de você, entretanto não passa de algo que em nada contribui, pelo contrario, te tira do caminho normal que você faria no cotidiano.

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E esse bloqueio de caminho, gerava uma série de reflexões pesadas, havia uma bateria tocando dentro da minha cabeça um ritmo repetitivo.

Levantei da cama e dei os primeiros passos. Tentei imaginar o quarto, os móveis, a posição em que eles estavam na noite anterior. Consegui caminhar um pouco, a bateria diminuía e aumentava o volume dentro da minha cabeça e às vezes mudava o ritmo. Quando o som ficou bem alto, meio que me desesperei e topei em algo, pelo acolchoado era a poltrona do quarto. De súbito me percebi de volta a cena inicial.

Agora eu estava novamente na cama, acordando. Dedos nos olhos, olhos de vidro, tudo escuro pela frente, bateria dentro da cabeça com uma altura agradável. Caminhei e dessa vez quando a bateria começou a aumentar o volume, lembrei da poltrona, fiz um leve desvio de percurso e a bateria voltou ao som normal. Com certeza aquela altura da caminhada eu já havia passado da poltrona e estava prestes a encontrar a porta do banheiro da minha suíte.

Esfregava de leve o pé no chão dando voltas com a perna, talvez pra sentir se havia algum obstáculo. Pelo chão frio e a umidade do local senti que já estava no banheiro. Toquei de leve as paredes até saber que a toalha estava ali. Consegui tomar banho e me enrolar na toalha. Sempre com pequenos movimentos também escovei os dentes.

Ao sair do banheiro caminhei rumo ao guarda-roupas, acreditei que estava no caminho certo e não hesitei, já estava me achando expert naquela brincadeira, a bateria foi ficando alta dentro da minha cabeça, foi quando me estabaquei no guarda roupas. A confiança demais me deixou prepotente, Confiei que era um caminho que eu fazia mais de duas vezes por dia, não fui humilde a perceber que mesmo quando já sabemos muito um caminho ainda podemos descobrir algo novo nele, ou nos surpreendermos com o que sempre esteve ali.

Voltei para a estaca zero. Cama. Acordando. Olhos de vidro. Bateria. Rumo ao banheiro, desvio da poltrona, banho. Escovar dentes. E dessa vez fui caminhando devagar para o guarda-roupa. Consegui chegar lá intacto, pois logo quando ouvi a bateria se acelerar no meu juízo estiquei as mãos e o guarda roupas já estava perto. Foi aí que fiz a ligação que melhorou bastante os meus próximos passos. Sempre que a rítmica da bateria aumentava, eu estava próximo a topar em algo.

Foi muito difícil escolher uma roupa pela textura. Como eu saberia se uma cor combinaria com a outra, o que as pessoas na rua pensariam a me ver tão mal vestido. Logo eu, que sempre recebi elogios. Comecei a pensar que se estava tão difícil dentro da minha própria casa, imagine na rua. E no trabalho. Bateu uma tensão, um desespero angustiado. Porem não podia faltar ao trabalho, isso nem pensar. Um dia de falta é um desconto muito alto, e logo agora que estava tão perto de completar o dinheiro que tinha andado economizando pra fazer uma viagem.

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Vesti a roupa, escolhi um sapato, tudo na maior cautela. Sinceramente achei que conhecia as minhas roupas, mas notei que não fazia idéia de qual peça estava trajando.

Saí do quarto a lentos e escrupulosos passos, com as mãos esticadas para frente numa tentativa de não esbarrar e acabar logo com este eterno e insano retorno. Não tive sucesso, pois mesmo a bateria avisando com a intensidade do seu som não consegui desviar da mesa de jantar e a cena recomeçou.

Quando senti que mais uma vez estava na cama, olhos de vidro. Escorreu-me algumas lágrimas de impaciência. Impotência. Nunca conseguiria executar minhas atividades normais daquele jeito. Pensei que talvez eu precisasse de alguma ajuda, todavia o que dizer a um vizinho ou alguém que fosse me ajudar? Que eu estava sem olhos? Que substituíram meu olhar? Seria motivo de internação num hospital psiquiátrico qualquer e isso era a última coisa que eu precisava.

Meu coração estava bastante acelerado, e apesar da contenção por medo de ter um embolamento mental estava difícil. A angustia só aumentava e não fazia a mínima de como sair dessa. A bateria repetida atormentava meu juízo, as lágrimas agora tinham companhia do soluço do desespero. Senti uma tontura. Mesmo assim levantei da cama mais uma vez, dessa vez não escovei dente, nem tomei banho, consegui alcançar logo a porta de saída do quarto e devagarzinho chegar até a cozinha que ficava na parte da frente de casa.

Tateei as gavetas.

Com alguma dificuldade encontrei uma faca de mesa.

Só queria uma pausa daquele ciclo repetitivo que estava acabando comigo. E a idéia era tirar o corpo estranho. Aqueles olhos de origem misteriosa encobriam o mundo em que outrora eu era feliz. Queria retornar a mim. Ao que eu amava. O desejo pulsante da abundancia de cores.

A bateria dentro da minha cabeça agora dava força às tomadas de decisão.

Comecei a escavacar um dos olhos falsos com a faca, comecei devagar e logo precisei ser incisiva para que o olho pulasse fora. A bateria fazia viradas extraordinárias em contratempos, pedais duplos, convenções. Fiz o mesmo com o outro.

A bateria parou de tocar.

Comecei a ver o vermelho jorrando.

A cor estava de volta.

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