.3 Contos de Ezter Liu

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Ezter Liu (PE) (1976) é de Carpina, Zona da Mata de Pernambuco. Em 2015, pela Porta Aberta Editora Independente, lança seu primeiro livro solo: “Vermelho Alcalino” (poemas). Com o livro de contos “Das Tripas Coração” (2018) foi a grande vencedora do V Prêmio Pernambuco de Literatura.


Deus

Dona Rosa não sabe que vai morrer ainda este ano antes que o inverno chegue ao fim. Dona Rosa e seus sete vestidos pretos moram numa casa velha com bilhões de formigas. Há anos aprende com as formigas a arte coletiva de fabricar paz. Há anos assiste ao movimento das filas: Contornando o armário. Desenhando mapas nas paredes. Rodeando os restos na toalha da mesa. Subindo na cama. Enfeitando as cortinas. Cavando o canto da parede do banheiro. Furando pacotes na despensa. Picotando plantas e papeis. A casa tem sido devorada devagar pelas formigas um pouco por dia há cinquenta anos. Dona Rosa tem sido devorada devagar pelo tempo um pouco por dia há cinquenta anos. Dona Rosa e seus sete vestidos pretos. Suas bodas de ouro com a solidão. Ela acredita que se for pacífica e mansa deus não tocará com o dedo indicador na cumeeira de sua casa velha derrubando seu teto numa tempestade tropical. Acredita que é possível manter de pé as singelas paredes da casa apenas com a mansidão aprendida e a disciplina de um punhado de orações ditas antes de dormir. É o trato: deus não mexe seu dedo indicador e dona Rosa não desmancha as filas. Dona Rosa é o deus das formigas. Ela não sabe que as formigas vão devorar a casa ainda este ano antes que o inverno chegue ao fim.


Helena

Helena saiu de casa naquela quinta-feira à noite com dezesseis reais na carteira um maço de cigarros no bolso e um enxame de arapuá enroscado nos cabelos. Esqueceu o isqueiro. Sempre esquecia. Memória de merda. Cabeça oca. Esquecia simplicidades: a caneta. A chave. O guarda-chuva. Queria era esquecer as coisas sérias. Mas seu mecanismo esquecedor de coisas não funcionava bem. Queria se pudesse esquecer seis anos inteiros e aquela lua cheia em janeiro de noventa e seis. Esquecer lhe parecia mais possível do que desfazer. Mas o mecanismo esquecedor de coisas não funcionava bem. Helena distraída esquecida somente das besteiras martelava lembranças e andava com um cigarro apagado nos dedos ansiosa pelo próximo fiteiro onde compraria um isqueiro bic do pequeno (provavelmente preto) pra esquecer de novo na mesa de algum boteco. Acendeu o cigarro no cigarro de um cara que esperava o ônibus. Muita intimidade isso. Acender cigarro no cigarro de outra pessoa e olhar por quatro segundos em olhos que em menos de meia hora ela iria esquecer. Nem agradeceu. Andou mais rápido mais rápido mais rápido. Percebeu que andando recebia a graça da transitoriedade e ia acumulando os pequenos flashes de transitoriedade no elástico do sutiã. A cidade não era sua. As memórias eram. Andando rápido coletava com urgência toda transitoriedade possível. A cidade não era sua. Mas estava demais na sua cabeça. Helena sentia ódio do lugar. Memórias velhas demais. Memórias vivas demais. Era uma agonia. Lembrou de um doente mental dali do bairro que passava os dias inteiros circulando quarteirões. Andou mais e pensou que ficar louca poderia ser uma dádiva àquela altura da vida. Andou até ficar escuro e tudo permanecia insuportavelmente familiar. Mas começou depois de algum tempo a estranhar umas calçadas e percebeu que quanto mais andava menos se lembrava das coisas. E que cada passo para longe de casa lhe aproximava mais do esquecimento. A transitoriedade se acumulava no elástico enroscado. Helena continuava a andar. Andando sentiu o chão virar tapete de folhas e esqueceu um pouco a cor das paredes de casa. Depois o chão virou grama cortada e ela esqueceu o vidro do armário da cozinha. Pisava leve um chão florido agora e esquecia as persianas e outros tantos utensílios e eletrodomésticos com seus carnês de prestação. O mais difícil de desincrustar foi a cama. Mas conseguiu. Logo começou a esquecer dos cheiros e dos sons da casa. Levou um quilômetro e meio para esquecer os filhos e o cachorro. E Helena tanto tinha pra esquecer e tanto andou que percebeu de susto que a noite acabava e os cigarros (acendidos uns nos outros pela falta providencial de um isqueiro) tinham sido esquecidos milhas atrás. Foi até o fim da cidade: a última periferia depois do bairro de ruas de lama e luz alaranjada. Chegou onde era só pista e canavial. O dia nascia imenso no fim da reta da estrada velha e as luzes alaranjadas dos postes iam se apagando uma por uma. Satisfeita e com calos nos calcanhares Helena fazia cálculos secretos se perguntando quantos quilômetros faltariam pra esquecer Menelau.


Nunca mais aprendeu a nadar

Achou assim à primeira vista tentadoras aquelas águas. Sentiu vontade de imergir lentamente. Imergir bailarina. Imergir nado sincronizado. Muito fundas as águas pro seu pouco nado e o vento não estava pra peixe. Se sentiu convidada pelas lambidas do vento. Sedução de águas. Um perigo pra sua pouca habilidade. Mas cedeu. E quando molhou os pés permaneceu no raso/fundo inflando o peito e morrendo afogada a vida inteira. Sem nunca conseguir nadar. Sem nunca conseguir morrer. Sem nunca conseguir voltar. A superfície. Mantém-se a duras penas na superfície. Ela é insustentável. Não é dada a levezas. Correnteza contrária. Bote inflável imaginário em águas rasas de afiados corais. Assim permanece nesse dentro/fora. E não tem remos quando barco. E não tem velas quando vento. E não tem balde quando furo no casco. E não tem nem mesmo casco onde repousar. Depois pequena ilha. Ilha sem fumaça para mandar sinais. Depois braço de maré e tentativa de chegar até à margem. Não há margem. A vida é toda leito. E luta. E se decidisse imergir de vez? E se tocasse com as pontas dos dedos dos pés na lama do fundo? Adivinha fria a lama do fundo. Reconsidera e se mantém na rota apesar da correnteza contrária e da violência dos ventos. É luta incessante como a vida. É como amor. Sem remos. Sem barco. Vela. Balde. Sem margem. Não tem força nos músculos nem mais espaço pra guardar ar nos pulmões esfumaçados. O seu amor é mudo de gritar socorros. Ela sabe que não há ouvidos à vista. Nem terra. Nunca. O seu amor é casulo de conteúdos. Garrafa flutuante à deriva em correntezas. Enganchado em vegetação densa que se enrosca no fundo. E enreda o corpo. E puxa. E trava. E afoga. E escurece tudo. Água confusa e turva e meio densa. Água tingida de raiz de cajueiro. Amor é água muito funda pra sua pouca altura. Ela nunca mais aprendeu andar. Se debate. Desespera. Tenta a calma. O controle. Sente-se puxada. Que força grande! Assustadora. O medo faz afundar mais rápido. O medo e a falta de fé. O medo e as histórias de mãe d’água. É quando sente de leve a ponta de outros dedos. Acha a mão no meio das folhas. Olha pra cima. A luz treme. Que sol pequeno! Tudo arde do lado de dentro. O peso da fundura esmaga tudo. Bolhas nervosas pra todos os lados. A mão. Bolhas. A mão lhe iça. Bolhas e mais bolhas. A mão é firme. Ergue. Emerge. Sai agoniada do meio das folhas e mal alcança a superfície. E mal toma fôlego aliviada. Sente-se puxada de novo pra baixo. A mão não é guincho. A mão é âncora e arrasta novamente para o fundo. Dessa vez com mais peso do que tinha. De volta a familiaridade com as bolhas e as folhas. De volta os olhos ardidos. O desespero cego. Dessa vez tenta se soltar. O coração pressionado bate bigornas. A mão não solta. Se rende a tudo. Não pode subir. Nunca mais aprendeu a nadar. Precisa de mão que segure mais do que de ar que respire. Agarra-se a uma força que não salva. Afoga-se com ela. Dois afogados (pensa). Dois afogados de novo. Pensa: Antes só.

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