2 Contos de Elaine Guedes

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Elaine Guedes, a música e os livros sempre fizeram parte da minha vida, desde criança. Ouvir música foi a primeira e talvez mais importante formação para me tornar cantora profissional. Sem jamais ter preconceito com estilos, do erudito ao funk, tudo pode percorrer minha rotina e deixar um elemento importante. Aos vinte anos entrei para o Conservatório Brasileiro de Música e Villa-Lobos, muito mais tarde para o curso de licenciatura na UFRJ. A escrita começa com as letras de música para o primeiro disco. Se transforma nos livros de poesia “O Amor Nu” e “Poemas em Cortes Profundos”, ambos publicados pela Editora Multifoco.


As Represas

As represas são contenções, e contenção é um estado daquilo que não se movimenta, mas, ao mesmo tempo, cotenda. As contendas estiveram nas notícias em todo o correr da quarentena. Parecia um teatro a nos entreter enquanto estávamos estáticos dentro de casa. Contendas estiveram em nós entre a preguiça e o fazer, entre o limpar e o largar, entre buscar e receber. Assim foi entre o correr e o esperar. Entre o correr e o esperar e não sair aconteceu algo. Foi sobre o tempo, o tempo fora e o tempo dentro.

Disseram umas línguas que a Nasa descobriu evidências de um universo paralelo onde o tempo corre ao contrário, retrocede, posto que há um que corre para a frente e outro para trás, e a coisa estava se passando na Antártida.

Dizem que acharam um tal neutrino Tau de alta energia, pesado, que contra a lei da gravidade, que determina que ele deveria caminhar em direção ao centro, puxado para o dentro, o tal Tau saía da terra. O que, pasmem, invertia o tempo.

Vejam só, só agora eu tenho um tempinho de investigar o que é o tal desse tempo. Posto então, o tempo tem a ver com a gravidade! Porque, se a verdade da física era agora oposta, também não dava para dizer que era mentira. A física é a física, e nesse caso, ao inverter o tempo, ela continuava ela mesma, mas só que ao contrário.
Meu tempo tem a ver com que?

Talvez alguém explique porque eu corri tanto sem sair de casa naquela quarentena. Eu corria para que quando saísse de lá eu não fosse mais só eu, eu fosse além de mim, e me transformasse num eu maior para enfrentar os males futuros.

Como o mal do emprego, emprego que desde antes eu nem via mais.
Chegou um momento em que fui deixando de ver o antes. Como um arremessador de dados, meu corpo girou sobre meus pés, de antes para depois, meu olhar percorrendo em câmera lenta todo o percurso que obedecia ao giro do meu corpo, como a terra, que era ao mesmo tempo redonda em circunferência com curva, mas também era num mesmo plano, e assim eu olhei para frente, o que segundo a Nasa, poderia agora ser também olhar para trás.

A gente olhava qualquer coisa, tudo era um debate de verdades e direções. Não havia mais a que se apegar para dizer “é com esse que eu vou”, porque vinha outro jogo de palavras em massa, debates eloquentes para uns, um jogo de cores, um caleidoscópio, para todo e qualquer gosto.

Aconteceu até um banco de apostas, uns achando que morria um tanto, outro outro, uns números fortes, tipo futebol e sheik, jogo alto, que atraía a torcida para lá e para cá. Uns milhões seguiam twitter, likes, fotos, um quadradinho certeiro e a boiada ia, seguia, afirmava, lanhava fogo e ameaçava, enquanto a outra encolhia, se aproximava timidamente de uns e outros, trocava mensagens, faziam grupos deprimidos, tentando equiparar as organizadas e esperando o momento de uma jogada para derrubar de vez toda e qualquer trave, com goleiro e tudo, arremesso de quebrar até arquibancada.
Tinham também cercadinhos brilhantes e focos de câmeras, sorrisos largos e xingamentos, galera mesmo, lembrava os momentos que antecediam ringues na nossa madrugada da TV.

E assim foi, por uns três ou quatro meses, é ou não é, cura ou não cura, é plana ou é redonda, é rebanho ou é boiada, dando tudo no mesmo ao final.

Eu só sei que nesse universo de achares eu me acho. Sou eu, não o outro, e não o mundo lá do lado de fora, eu, só eu, quases sem reflexo, sombra ou contenda.

Eu fui ficando cada vez mais eu, e é tão subversivo esse movimento, que a economia poderia abrir e não me ter mais, quem sabe não quero correr para frente se não sei se é pra trás? Quem sabe se não quero ficar de um jeito desajeitado que não quer mais ser manada, quer parar, quer ficar só…

Querem ignorar tudo isso, mas não pode ser. Há um andar pra frente em um dos dois mundos paralelos, e vamos nos ater aqui a apenas este, que diz que tudo se movimenta, e especialmente quando ficamos parados.

Algo acontece dentro de mim.


Diário de Bordo

Eu olhava em volta, parecia muita gente na rua. Estava quase escuro e me dirigi ao ponto de ônibus. Procurei o metro de nada entre mim e todas as outras pessoas, mas talvez elas tenham esquecido do que esteve no ar, ou aquilo que se passara conosco.

Agora tínhamos que voltar à vida de antes, mas nada era igual. Eu olhava os rostos apressados e me assustava com a falta de medo neles. Alguém esbarrou em mim, me recolhi com raiva, tinha muita gente em volta.

Saí então pela calçada procurando um lugar amplo e sem gente, mas não havia. Os rostos apenas tinham pressa e ânsia, pressa e ânsia de ir e vir. Saí pela rua apressada, não sei se haveria ônibus suficiente para espaços entre as pessoas. Apressei meu passo e a noite foi caindo rapidamente. De repente corri e uma chuva leve caiu, tornando aquele cenário assustador, de gente caminhando sem medo e sem lembranças ruins, apenas pressa, com seus prédios altos formando barreiras frias de portas fechadas. A rua foi se tornando mais vazia, deixando espaço sim para algum assaltante.

Botafogo à noite. Passaram alguns ônibus e eu já não sabia onde era o ponto, apenas corria e me afastava das pessoas que não se lembravam do vírus e se empurravam, e eu corria, mas a rua vazia também me assustou. Dei sinal, mas nenhum parou, me deixando para trás sem saber o que fazer.

Foi assim que voltamos à vida, esperando a vacina ou o remédio, ou fingindo que nada de mal nos aconteceria. Não era o mesmo de antes, porque eu não sabia mais pelo que correr, ou o porquê daquelas horas que sempre me eram requeridas todos os dias.

Hoje eu falei ao telefone e falei muito sobre a minha alegria e falta de medo de encontrar as coisas novas no meio da pandemia. Falei do meu ânimo e quase até euforia, mas enquanto falava ao telefone sobre essas coisas algo dentro de mim subia como um sinal de alerta.

As palavras sempre têm uma força estranha. Elas revelam bem para além do que queremos revelar. Às vezes vazam sem querer, coisas que não sabíamos que estavam lá. Aquele sentimento foi se levantando como uma cortina ao contrário, do chão ao teto, me escondendo e me fechando em mim. E fechada eu me deparei com não tanta alegria e um pouco de medo. Fechada eu tocava as paredes imaginárias com meu olhar e sentia o ar diminuir, e se tornar o mesmo, sem nenhuma renovação. A luz ficou sem movimento e meu corpo se recolheu sobre mim como a concha que se fecha diante do perigo.

Estou finalmente em casa. Lá fora tinha certo silêncio, e aqui dentro notícias, notícias, notícias, que usam as mesmas palavras chave. Nessa mesmice, o tempo diminuiu sua intensidade, aquela distância de si mesmo.

Moro perto de uma reserva florestal. Ontem acordei com um gato em histeria, depois cachorros uivando e então um galo nervoso. É assim onde moro. Agora mesmo passarinhos surgiram na minha paisagem sonora, mas só que eles já estavam lá. Eu é que estou parando de escutar, e é aí que ocorre o problema. Os passarinhos e os grilos – que cantam mais tarde – se confundiram sempre com minha euforia, todos os dias. Isso que inventei e que sempre ocorreu dentro de mim agora poderia ser comparado a uma noviça rebelde bailando nos campos, se deixando banhar pelo sol. Mas é invenção. Invenção indiscutível e tão indiscutível que vira realidade.

Assim, fui passando meus dias, pegando a euforia de antes, para não esquecer, e dando norte aos meus dias. Assim, fui me nutrindo de anticorpos para doenças de resistência invisível, de memória e desejos, de forças e vontades, e fingimentos de realidades.

É aí é que as palavras vêm num átimo, como traidoras de memórias, vem revelando o que é justo que fechemos em um esconderijo qualquer, e que de repente escapa. Mas é justo! Porque diabos temos que aceitar as pontas agudas que nos ferem de dentro para fora? Não! É justo lacrá-las com certa euforia. É um jogo diário de força entre dentro e fora, de esmagar desistências e de inventar saídas e caminhos.

Hoje minha voz está assim trancada entre a vontade de euforia e a lança que se lança de dentro para fora. Hoje a luta será grande para chegar até o amanhã que não sei como será.

Ontem sonhei que entrava naquele departamento com gente, como antes. Senti meus dentes afiados dentro da boca quase aparentes. Estavam por trás do acetato com o qual eu ia à rua agora. Perguntei pela papelada e alguém se levantou. Era um sujeito obeso, com a camisa de mangas dobradas, clara e com listrinhas fininhas e um tanto desarrumada fora da calça. Se levantou de forma brusca para resolver o meu problema e gritou algo para alguém do lado de fora da sala, ao mesmo tempo em que se levantava e tentava cruzar a porta em que eu estava.

Foi grande o esbarrão que levei. O sujeito parecia não ter muita noção do espaço não mais vazio que ele ocupava, e muito menos do potencial vírus que eu via nele. Aquilo me deixou chocada. Agora não era mais suportável que a noção de espaço e de vírus não fosse compreendida, só que ele e todos ali não compre

Aí acordei. Eu queria ouvir outra história, é verdade. Quando ligo a TV, no fundo, eu tenho a esperança de que as palavras chave já tenham mudado. Eu olho com avidez, e o barulho frequente vai mudando, substituindo o das folhas que se mexem lá fora.

A sinfonia de sons baixos me lembra a do mato do sítio da minha avó, quando eu me deitava no chão, lá em outra vida passada, para ouvir os insetos. Um galo cantou agora. Estou lutando para não deixar a TV gritar suas notícias, luto com unhas e dentes para não depender das notícias do mundo. Quero voltar a conviver com as notícias mesmo que mentirosas que conto para mim, e que me dão euforia digna, me carregando pelo tempo e pelos dias como quem salta da terra para a água para um nado potente em alguma direção.

Eu estava sozinha. Eu estou sozinha. Nesses dias de pandemia cada um de nós descobriu um lugar do não chorar. É um lugar específico de frieza ou de força, bem diferente dos dias normais. É um lugar de espanto, desses que arregalam os olhos e deixam a pele meio branca, e assim, num jeito estatelado, a gente fica olhando a vida, sem jeito, a boca não vem retesada e acompanhada de grandes praguejares ou lágrimas. É sim o lugar dos sons muito baixos, quase parados.

Foi como descobri a solidão. Por mais que olhasse o outro, foi esse o exato momento em que o outro passou a ser outro mesmo, sem misturas diárias de pensamentos, de sons, de compartilhamentos de luzes, basta uma vela simples agora. Foi assim que descobri que nosso estar é também um quase não estarmos mais vivos, em roda, em movimento. Agora é bem mais ouvir, bem mais espera, bem mais um bicho do mato, daqueles dos desertos, que parecem nada além de claridade, mas, em questão de segundos, vapt!

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