Pequena Terra Batida, de Fernanda Germano será lançado pela editora Patuá

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Pequena Terra Batida (Patuá, 2023) é o terceiro livro de prosa, mas o primeiro de contos, da escritora Fernanda Germano, autora dos romances “Cegueiras na Calçada” (Voz de Mulher, 2022) e “Pelas Frestas” (Penalux, 2023). O tema central da obra é a infância, nas suas mais diversas circunstâncias. Inspirada nos relatos de meninas atendidas em um projeto que visa à promoção de saúde, cidadania e direitos humanos em uma área de ocupação urbana em Campinas (SP) e na própria história, Fernanda Germano cria a atmosfera própria das crianças que, forçadamente, crescem sem espaço e, muitas vezes, sem amor.

Da galinha decapitada à maritaca fugida, Pequena Terra Batida revela quatorze contos, cada qual em sua individualidade de relato de episódios nas vidas de tataravós, bisavós, avós, mães, filhas e irmãs, que, por mais distintas que possam parecer entre os escritos, aproximam-se mutuamente quando lemos os contos em uma contínua narração. Entre cenários rurais e urbanos, violências e pacificações, prisões e liberdades, são expostas as relações femininas no seu mais alto discernimento: a maternidade e a mulherice. “Pequena terra batida” é a expressão de histórias de famílias; é a história de todas nós.

Confira um dos contos de Pequena Terra Batida, “Fio de sangue”:

Fio de sangue

Não contente com seus métodos, submergiu em escancarada volúvia, pois notava que não tinha medo de viver.
Como se tivesse de se agarrar a mães, avós, pais e tios, guardava na casa restos das histórias da própria história, pois seu povo havia sido feito para ser sujo e empoeirado. Era retrato daquela sua avó de mais de duzentos anos: os olhos não deixavam mentir a hereditária terra andada e revirada para dar de comer aos pequenos inocentes que nem de comida ouviram falar. Seu cuidado com os restos vinha de mãe: mulher que reparava as palavras e as gravava nas peles. Acumulava toda a sorte de passado, com tanta pompa e circunstância que os objetos como que aprenderam o repouso sossegado do ambiente doméstico. Ela mantinha, sob os armários, as cartas que encontrara no baú antigo da vovó. Socava os papéis, empilhados e sempre em quatro colunas, por debaixo dos móveis da cozinha e dos banheiros – lugares seguros de casa. Gostava de ver a tinta das letras a ressecar, com o calor da lenha queimada no fogão, e de notar, após cada banho, que as folhas amoleciam com o vapor gerado pelo chuveiro quente. Percebia os escritos, reparava em cada contorno de letra, encontrava a plenitude nos traços. Mas não as lia: havia certa beleza nos modos como amava em silêncio. Considerava injusta toda forma de amor evidente; e cada carta, no seu sigilo de anos, na sua cumplicidade de dois, reforçava o esconderijo amoroso que lhe era tão caro.
Em Dia de Reis, eu a visitava por influência da minha mãe. Tinha medo de lhe perturbar os sentidos, pois era silenciosa e parada, uma estátua que ainda não se descobrira pedra. Achava o costume de apoiar madeiras nos papéis necessário. Haviam me explicado na escola que um vinha do outro, mas não que o outro podia também servir ao um. Em curioso passo, era atraída aos rodapés. Deitava-me no chão barrento e úmido, a vislumbrar toda a minha herança: minha avó disse sim ao meu avô e assim iniciaram a vida. Eu sabia que não poderia ler o que havia de escrito naquelas cartas; ela me mataria se descobrisse que sua irmã de sangue atrevia-se a vasculhar seus pertences. Porque ela levava a história muito a sério.
Disse-me, comigo ainda estirada no barro:

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Se você encostar um dedo nesses papéis eu te mato.

Eu a olhava de olhos esbugalhados, a pensar se havia chegado a hora de ser a expulsa.
Mas não a temia. De dedos silentes e sensação aguçada, esgueirei-me pelas cartas enfiadas sob o armário da cozinha e puxei a que primeiro me saltara, na ânsia de, para algo, ser usada.
Dobrei-a em rolo, prendi-a na lateral da calcinha e corri ao canto entre o fogão e o tanque.
Desenrolei o papel seco e quebradiço. Rasguei-lhe a beirada do envelope, a reparar na letra que o endereçava à moça da família Arado. Desdobrei a carta e não era mais uma criança a matar curiosidade; eu era uma mulher a conhecer a origem do mundo. Haviam palavras e pontos e riscos e curvas e retas e história no papel. Ainda sem saber ler, identifiquei, pela forma e pela força, uma palavra apenas: escrava. Compreendia o início de mim: eu tinha um passado.
Em tão menor corpo, era possível ser justa sem álibi? Era necessária a justiça sem algo maior? Assim como eu, minha irmã era uma força do passado. E não gostava do termo História – com “h” maiúsculo; usava-o somente se “passado” não estivesse disponível. O passado trazia a simultaneidade do bolo de acontecimentos, não a hierarquia de uma letra maiúscula – sem luta, mas com seu masculino luto. Andávamos juntas, unidas por um fio de sangue involuntário e imposto, irrecusável. Ela jamais descobrira que eu havia mexido no seu patrimônio. Minha mãe, sentada na sala com as pernas abertas e deixando ver, sob a saia, o suor que lhe escorria nas partes ocultas, de nada suspeitava e nem me delatou à minha irmã. Não se interessava pelas origens; ela era toda o por vir. Vendo-lhe o estado de derretimento, deu-me saudade do que não vivi. Cheguei-me cautelosa, em um abraço de todas as cartas que pude roubar. Deixando-as, aos poucos, escorregarem dos braços, notei seu espanto. Tentara de mim pegar alguns envelopes, talvez para colocá-los em si, para que compreendesse uma
origem também. Não deixei me tocar nas cartas; eram agora meu tempo. O meu sangue não era meu. O meu sangue era um fio com nós nos lados, um derramamento no barro.

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Com a pena de quem vê o esquecimento como memória, questionei:
Mamãe, de onde eu vim e onde eu vou parar?

“Seja na menina que aprende a morte presente no almoço preparado pela avó, seja na irmã que acumulava passados em cartas que não deviam ser lidas, somos convidadas a encarar de frente o que nos torna mulheres ou nos permite deixar de ser. Fernanda não poupa palavras nem ouvidos. Dedica seu livro às que levantam. Nos convida a deixar nossos assentos, a bater a terra que nos suja os calcanhares. Ao ler esses contos, tal como a personagem de “Fio de sangue”, não somos mais crianças a matar a curiosidade, somos mulheres a conhecer a origem do mundo.” (Carla Guerson).

Fernanda Germano é escritora e estudante de Medicina da Unicamp. Nasceu em Minas Gerais e, atualmente, reside em Campinas (SP), onde se dedica a projetos sociais de atendimento em saúde e promoção de cidadania para populações de territórios de alta vulnerabilidade social. Colhe histórias por onde passa, revela acontecimentos e garante voz a quem deseja falar também. Faz das visões marginais a escrita e, da escrita, a vida.

Apoie a literatura brasileira contemporânea feita por mulheres e este livro de memórias – de todas nós – adquirindo seu exemplar em pré-venda, diretamente no site da Editora Patuá:

https://www.editorapatua.com.br/pequena-terra-batida-contos-de-fernanda-germano/p

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