3 Contos de Luis Mendes

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Luis Antonio Mendes, nascido em São Joaquim da Barra estado de São Paulo. Desde cedo entrou em contato com a pobreza e a vida dura destas populações, assim como também, com a sua religiosidade, em especial as de matrizes africanas. Entrou em contato com os movimentos de reivindicações e também os movimentos culturais na região do Itaim Paulista. Frequentou rodas de capoeiras e toca na bateria da Unidos de Santa Bárbara. Também teve um de seus textos adaptado e encenado ao ar livre na Praça de Oxum, na Bahia. Outro texto foi solicitado para uma tese de doutorado na Universidade de Coimbra em Portugal. Foi convidado para uma roda de conversa entre professores no CÉU Paraisópolis. Ultimamente trabalha como orientador sócio educativo em um centro de acolhida para homens acima dos dezoito anos em situação de rua. É autor do livro de contos/crônicas “Conversa de Encruzilhada”.


Flores para Oxum

Por duas vezes Claudete acorda sobressaltada, com um calafrio. Teve um sonho ruim. Um sonho de uma mulher de Yansan é um aviso, um alerta!

Olha para o lado, o Zé seu marido, dorme tranquilamente e sem culpa.

Ela levanta vai até o quarto da filha e a encontra dormindo, com suas contas de Oxum na cabeceira. Vai até a cozinha e bebe água.

O que será isso, se  perguntava Claudete! A Yansan quer me dizer alguma coisa! Pensativa vai dormir.

De manhã, após preparar a filha para escola, comentou o sonho com o marido. Que nada nega, deve ser um sonho bobo! Sei não Zé, acho que é seu Ogum querendo dizer alguma coisa pra minha Yansan.

Você que é ogã do orixá devia prestar mais atenção. Você está em débito com ele pois não foi a sua festa! Quando sair não esqueça de suas contas. Nisso a carona do Zé buzina lá fora, ele rapidamente beija sua mulher e sai para o trabalho, mas antes ia deixar a filha na escola.

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Quando a Claudete está cuidando dos afazeres da casa encontra as contas de Ogum na mesa da sala. O Zé havia esquecido. Ela sentiu até um calafrio, um mau presságio! Imediatamente ligou para seu marido mas o celular estava fora de área. Enquanto isso, na estrada, o Zé conversava animadamente com seu amigo quando este perde o controle do carro.

Um cachorro havia atravessado a pista! Desesperadamente o motorista, para não bater nas ferragens de uma carreta que vinha em sentido contrário, joga o carro desgovernado dentro de um rio! Tiveram sorte, pois a água do rio amorteceu o impacto e o resgate veio rápido! No hospital, com a família, o Zé disse: – Calma nega, só foi um susto estamos bem!

É, mas bem que eu estava cismada! Yansan queria dizer alguma coisa! Cadê as suas contas de Ogum que mandei você usar? Você esqueceu na mesa da sala! Eu esqueci nega, sai correndo de casa!

Nisso a filha dos dois diz: – Mamãe eu vi que o papai esqueceu o colar dele, eu coloquei a minha no bolso da blusa dele! Nisso o Zé colocou a mão no bolso e lá estava  as contas de Oxum.

Em lágrimas olhou para a filha e disse, ora iê iê ô!

Quando teve alta foi para o rio levar flores. Flores para Oxum.


Mulheres que Incendeiam

A casa grande e seus engenhos estão pegando fogo. Os canaviais estão pegando fogo. Mulheres negras dançam com tochas nas mãos a dança da guerra. A dança de Yansan, a dança das ventanias e tempestades. A dança de Matamba e Amburucema, com seus eruexins e alfanges! Uma dança voluptuosa que seduz à guerra! Mulheres negras como Exu, tornaram-se atemporais mortas. Mesmo mortas assustam e eles não dormem o sono tranquilo. Para as mulheres negras, a guerra continua mesmo depois de mortas. A guerra pela memória, a guerra pela honra. São Luizas Mahins, Dandara e Nzinga. É Marielle!  Mulheres que mexem e remexem na batucada da história, mulheres que assustam!  Mulheres que incendeiam uma batucada com azeite de dendê. Mulheres que se transformaram em um contingente, mulheres africanas. Mulheres negras que além da dor do parto, sentiram a dor da injustiça e da violência em seu sexo! Não há misericórdia, a injustiça e a violência tem que ser queimadas! Os engenhos dos homens que se dizem engenhosos em suas políticas e reformas, serão queimados! Queimados por mulheres negras que não tinham nomes, apenas apelidos. Cozinheiras, lavadeiras, faxineiras e putas! Mulheres negras com seus cabelos crespos, tornaram-se rainhas. Espalham-se pelas ruas e encruzilhadas, tornaram-se ebos! São o ar que respiramos quando emergirmos desesperadamente das águas de Iemanjá. O estado se arma, os donatários da terra se armam, os condomínios de luxo se armam pesadamente. Em cada esquina há uma emboscada. Os condomínios de luxo tornaram-se fortalezas, estão armadas! Mas em cada esquina há mulheres negras. As praças e ruas transformaram-se em terreiros! Oxuns, Yemanjás, Yansans e Nanãs estão ali assentadas espiando a casa grande e os engenhos pegarem fogo. Que ninguém ouse  apagar o incêndio!  Não ousem apagar a chama de suas dignidades.

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Os Olhos de Jubiabá

É preciso um olhar sem preconceitos para enxergar além do olhar.

É preciso ter os olhos de Jubiabá. Caminhando pelas ruas da cidade podemos encontrar uma linda Oxum ou Iemanjá apressadas para o trabalho ou para a escola com livros nas mãos.

Yabás de olhares feiticeiros herança de nossos antepassados. Numa mecânica, numa construção, numa fábrica ou no campo manuseando uma enxada há sempre um Ogum. Um Ogum que pode está também no meio das batidas dos ferros de um trem que parte da estação Calmon Viana para a estação Brás, no meio do barulho dos camelôs e da guerra!

Um Ogum com várias cicatrizes das lutas, dos movimentos sociais, das correrias pelas ruas ou das rodas de capoeira. Na área rural um Ossaim morando na beira das matas, na Amazônia ou na Serra da Cantareira com suas ervas e seus segredos. Um Ossaim que barganha com Ewé e com o Caipora.

Numa praça você verá um sorridente Oxóssi vendendo alguma coisa ou dançando um samba com uma bela negra de Yansan nas inúmeras comunidades de samba da cidade.

Numa casa afastada do centro um Obaluaiê ou uma Nana Buruquê benzendo uma criança com o bucho virado ou fazendo o parto de uma nova mãe, já que a atual administração municipal devastou o sistema de saúde.

Num bar encostado à um balcão sempre tem um Xangô de cara fechada resmungando, e com razão, das injustiças cometidas pelo governo golpista ao povo.

Há vários Exus puxando uma greve ou pichando palavras de ordem pelos muros da cidade.

Um Exu que protesta pela prisão arbitrária e sem provas de alguém, um Exu que cospe fogo, correndo da repressão do estado. Um Exu comunicativo, um Exu guardião que gosta da noite, pois é onde faz suas tramas de rebeldia.

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Um Exu que sorri a noite e é amigo dos cachorros. Um Exu indignado na encruzilhada! Se aguçar os olhos verá também um Oxalá velho aconselhando alguém ou Oxaguian guerreiro junto com Exu combatendo as injustiças nas periferias pobres da cidade. Vários erês brincando e correndo pelas ruas atrás de pipas ou nos poucos parques públicos da cidade. Para ver tudo isso é preciso abolir os olhos do preconceito, é preciso usar os olhos da piedade e os olhos da bondade, os olhos de Jubiabá. E talvez a seu lado no banco do transporte coletivo verá um sorridente Oxóssi ou uma bela Oxum sorrindo para você.

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