.Sobre a Arte de Falir – um Conto de Sidney Rocha

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Sidney Rocha (CE/PE), 49, é escritor e editor. Publicou pela Editora Iluminuras os livros de contos Matriuska (2009), O destino das metáforas (2011), que venceu o Prêmio Jabuti de Literatura, Guerra de ninguém (2016) e o romance Claro-escuro (2016), parte da trilogia Geronimo. Tem trabalhos traduzidos para o inglês, espanhol e alemão. Seu romance Sofia venceu o Osman Lins de Literatura. Sidney Rocha nasceu no Ceará e vive no Recife, onde atualmente mantém curso de escrita criativa e atividades com formação de leitores.


Não posso dizer que não ocorreria comigo, poderia, sim, visto que conheço Margarida e a vejo todos os dias descer por ali, na rua de baixo, para ganhar a vida contra o sol das cinco da tarde. Também conheço Haroldo, ele é homem com estabelecimento e tudo, e tem o cheiro das folhas de fumo desde o tempo que o tempo é tempo e que o fumo é folha. Também sei, por ouvir dizer, de dona Clara, mas esta nunca vi. Não que seja dada a invisibi­lismos, não tolero mistérios por nada, mas é que fecho as minhas portas antes de a igreja abrir as dela, e daí dona Clara já passou. Haroldo co­nheço mais, dos três, e o mais que conheço mesmo assim é pouco, porém hoje em dia o pouco que se conhece de alguém pode-se considerar já muito, visto essas coisas que chamam privacidade. Mas sei do possível de alguém se apaixonar, e que há modelos, ah, de amor sem fim de paixão, amor tem moldes para todo ateu ou cristão, o amor não prega raça nem cor, talvez alguma distinção faça no destino financeiro da pessoa, nisso creio. Mas o muito ou pouco que o conheço é de sermos comerciantes, ele e seu fumo, lá, eu e no meu canto, aqui, e ao nosso conhecimento um do outro não se pode dar a garantia de amigo de tantas datas, porém não faz vergonha a muitos que por aí se dizem amigos, e não são. Amigos mesmo não existem mais, mas, vá lá, também que ninguém se ofenda com isso, basta quem tem preservar e, quem não tem, procurar, mas isso é uma verdade. Por isso eu digo: o que fez Antonio, que era tido unha e carne com Haroldo, estava certo fazer, não recrimino amigo, esse Antonio eu não conheci, mas lhe contando assim o que ele fez, termino por conhecê-lo um pouco. A gente não pode esquecer que as coisas são as coisas, mas quando se temperam as coisas com o amor, o amor cheio de paixão mesmo, paixão sem aquela poesia toda, fogo que arde é se vendo com os olhos, aí se consi­derem as coisas outríssimas coisas, porque ali estamos pisando nos terrenos do vento.

“Você vai desgraçar o seu casamento por causa dessa, Haroldo?”. Cansou de dizer Antonio. “Olha lá que você se estrambelha todo, meu amigo”. Mas tem duas coisas para as quais homem perde o senso da profundidade e do ridículo: as ondas do mar e as ondas do amor. Não sei o que tem macho pra se achar nadador nesses abismos. Nenhum é. Amor é fundura e correnteza. No caso de Haroldo do Fumo a situação era mais e tanta que no decorrer de seis meses quem aparentava cinquenta tratou de arrumar todo artifício para aparentar uns trinta e, mudando a folha do tempo, também mudou o cheiro, que a pele se desgraça com aqueles perfumes das revistinhas e, desse jeito, cheirando-se outro todos os dias, noutro Haroldo Haroldo se tornou. Não se ambientava mais no armazém. O fumo reclamava nele o seu cheiro de tantos anos, pois o comércio de um homem é o homem por extensão e cheiro também, e ele não se suportava mais em rescendência de folhas, porque Margarida-isso, Margarida-aquilo, Margarida-aquilo-outro e vida de Haroldo começou a ofender o passado e o fu­turo. Nisso tudo, dona Clara não passava recibo: de casa pra igreja, da igreja pra casa, e o sofrimento do homem se resumia em fragrâncias e arro­deios, já que Margarida jamais lhe dera cabimento, diga-se, coisa cuja profissão a ensinou desde cedo: afastar-se de homem que se perfuma: homem que se perfuma fácil-fácil se desmantela de amor. Margarida não sonhava riquezas e muitos conheceu que lhe ofereceram tudo, mas não importava tanto o ouro, Margarida tinha a honestidade do sol que bate sempre o mesmo nas cinco da tarde da rua de baixo.

Haroldo conheceria a escuridão. É preciso apetite para os negócios, e Haroldo já não tinha a fibra que o fumo lhe emprestara, e os clientes foram rareando que cliente gosta é de negociante que pros­pera. Olhe: pode, às vezes, nada ter, mas uma prateleira sortida e os empregados todos com fome, mas sorrindo, todo cliente admira, por isso esses americanos vão bem no varejo.

Pois você creia, aí mora a amizade, no fundo do poço é que mora. O que fez Antonio só amigo de verdade faria, e nisso poderia ser comigo, tomadas algumas reticências.

Procurou Margarida. Que jamais sonhasse esse pesadelo dona Gracinha, a companheira, mas pela razão seria até fácil ela mesma entender: condescender, como se diz. Entre um campari e outro lhe disse do carinho pelo amigo, que o deixasse em paz, que o homem vai indo de mal a pior, que vai falir e não tem banco no mundo que queira uma promissória sua, que quanto é mesmo que tu queres pra fazer praça noutra praça. Certo é que não tinha tanto dinheiro assim, o Antonio, mas o próprio Haroldo, sem o saber, emprestaria da raspa do tacho e a perder de vista qualquer soma pequena que ele juntaria com algum sacrifício do seu próprio bolso, mas Margarida recebeu a oferta como uma pedrada e ficou como morta na cama, ali, por um tempo. Depois, o sangue voltou à correnteza das veias, e voltou o feltro das carnes, o ouro da pele, os biquinhos rosa dos seios ainda em saliva, e ela foi à janela ver o sol cair em pétalas sobre a cidade.

“Isso não posso fazer, assim, de desaparecer. Para isso é preciso saber dos outros, todo mundo tem alguém perto do coração, o senhor não acha?”, teria dito e perguntado a flor, não sem pender outras pétalas um pouco. O homem assentiu, muito embora jamais tivesse negociado com estas coisas. Não via como o pretexto podia afetar a mercadoria no curto prazo.

Outras vezes, o amor e a amizade estiveram juntos, o mesmo assunto, vamos que vamos resolver, temos trem todos os dias, um campari, outro, Antonio bebe uísque e falou muito de si daquela vez, Margarida era boa e boa ouvinte também, o sol nasce para todos, Margarida/as margaridas são flores que se cheiram, sim, Antonio,/mas não são para todos,/não,/veja bem, o homem está prestes a perder os olhos da cara, Margarida,/é meu amigo, meu amigo,/meu amigo, pense um pouco em você, Antonio, é/pro­blema dele, viva a sua vida, Antonio,/talvez você tenha razão, Margarida,/é a vida dele, vida mesmo/só se tem uma, você/tem toda/razão, e Margarida-isso, Margarida-aquilo…

Foi quando Antonio começou e se perfumar.

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