A boa conversa com Maria do Sameiro Barroso

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Floriano Martins

NOTA DE EDIÇÃO: A entrevista aqui publicou funcionou originalmente como prefácio do livro Poemas da noite incompleta, de Maria do Sameiro Barroso. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2010.

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FM | Tua afinidade tão acentuada em relação à cultura germânica, acaso está marcada por alguma passagem em especial em tua biografia?

MSB | É estranho, mas não. Não sei de onde me veio esta fortíssima apetência para a língua e para a cultura alemã. Não há ninguém com ascendência alemã na minha família. O primeiro contacto com o alemão foi no liceu. No primeiro teste, não me diferenciei das outras, mas, a partir do segundo, comecei a ser, de longe, a melhor aluna de alemão do liceu. Tive 19 no exame final.

FM | Mas como precisamente a cultura foi chegando e deixando seus sinais vitais em tua poética? Música, teatro, poesia, ópera, quais elementos foram despertando mais atenção?

MSB | Bom, diria que primeiro chegou a poesia, Sempre foi a minha leitura de eleição. No entanto, antes de começar a escrever, tentei a pintura. As artes plásticas fascinam-me imenso. No final dos anos 80, dava-me imenso com pintores e essa relação está presente nos meus primeiros livros. Um dia, um poeta meu amigo viu os meus quadros (já conhecia os meus poemas) e disse-me: – Maria, escreve, que essa é a tua vocação. Durante muito tempo, sentia-me uma pintora frustrada, e precisava muito do suporte da imagem. Só começava a escrever um livro quando tinha a capa (e ilustrações), pois isso determinava toda a sua ambiência. Além disso, achava que os meus poemas eram muito densos e que precisavam de um complemento para que o leitor pudesse prolongar o olhar. Mas, este tipo de trabalho colocava um problema, que é o do custo. Os livros com imagens ficam muito caros, por isso, só publiquei o livro Mnemósine, com capa e ilustrações do escultor Martins Correia. Outros projectos ficaram na gaveta ou foram adaptados a livros sem imagens. Foi pena, porque eram projectos muito belos.

O teatro também sempre exerceu um grande fascínio sobre mim. Adoro o teatro grego (era inevitável) e autores como Shakespaere. Também gosto muito de Tennessee Williams, dos alemães, Goethe, Friderich Schiller, Heinrich von Kleist, Georg Büchner, Bertoldt Brecht e dos nossos dramaturgos, desde Gil Vicente aos autores actuais.

Quanto à música, tem um espaço muito especial na minha vida e dentro do meu processo criativo. Habitualmente, ouço música, vou a óperas, concertos. Depois da publicação do meu primeiro livro, O Rubro das Papoilas, em 1987, estive dez anos sem publicar, mas a escrever e a fazer experiências. Precisava de conhecer os meus limites. Durante esse período, li as biografias dos grandes músicos, li imenso sobre música e isso marcou-me profundamente. Possivelmentem assimilei processos criativos que são utilizados na música. Não sei explicar, mas, se ouvir, por exempo, uma sinfonia de Bruckner, desato, quase imediatamente, a escrever.

FM | Declaras em um poema teu que “os reinos da palavra são imperfeitos”, o que nos leva a crer que as palavras venham a ser entidades com suficiente capacidade para definir ou desnortear as intenções da escrita. Afinal, quem move os dados da criação poética?

MSB | Essa é uma questão difícil de responder. Os reinos da palavra são imperfeitos, como imperfeito é qualquer produto do humano. Quando escrevo, existo eu, como autora. Mas há algo que me ultrapassa. Ou melhor, quando escrevo, estabelece-se uma relação entre mim e o universo que passa por processos criativos que têm que ver com o inconsciente e que eu não sei explicar. Há muita coisa que me surge e que eu nem sei bem de onde me vem, nem muitas vezes é claro o sentido do que escrevo. Há poemas que só eu própria compreendo algum tempo, por vezes, alguns anos mais tarde. A escrita, tanto me orienta como me desnorteia. Diante do computador, diante do vazio ou do silêncio, tudo é imprevisível. Sei que vou escrever, mas nunca sei o quê. Sei, ou penso saber bem o que quero, mas nunca sei exactamente para onde a escrita me leva. A pulsão da escrita, em mim, é muito forte. Preciso de escrever ciclicamente, se não o fizer, começo a ficar extremamente irritável e infeliz. À clássica pergunta que Rilke faz ao jovem Kappo, nas Cartas ao jovem poeta: – Poderia viver, sem escrever, responderia: – Não, de forma alguma. Ou melhor, poderia viver, mas seria tão infeliz, que não sei se valeria a pena.

FM | De que maneira distingues entre a criação do poema e de qualquer outra instância da arte, seja uma canção, uma pintura, um romance? Faz algum sentido indagar sobre a finalidade da criação?

MSB | Penso que escrever um poema, um livro de poemas ou um romance pressupõe estados de espírito completamente diferentes. Um romance precisa de ser estruturado e planeado. Um livro de poemas também, mas um romance obriga a uma disponibilidade e a uma disciplina maior e a uma mobilização de outro tipo de estruturas mentais. É preciso pensar ambientes, personagens. Tenciono escrever um romance, não o escrevi ainda porque tenho andado assoberbada com outros trabalhos. Penso que também é com um espírito mais leve que se escreve uma canção ou um livro infantil, é preciso pensar no público. É com cores e formas na cabeça que se pinta um quadro. Mas a luz está sempre presente. Penso que há sempre algo de luminoso e obscuro na génese da criação das obras de arte.

FM | É nítido o acento maior em tua poesia no ambiente musical, temas abordados, a construção do próprio léxico, tudo atua muito entre a música e o mito, o que acaba por abrir uma janela para o etéreo. Como esteticamente incorporas para a tua poesia elementos de tua própria vida?

MSB | Na realidade, esta é uma pergunta à qual não sei responder. Sou naturalmente musical, embora nunca tenha tido formação na área e o mito, ou a atração pelo primordial é algo que me fascina desde sempre e me tem levado a campos diversos como o estudo das civilizações antigas. Penso que também tenho uma relação natural com o etéreo, mas não me perguntes porquê. Há vários níveis de vivência e de consciência. Quando escrevo, embora possa partir de acontecimentos reais, rapidamente dou comigo a transformá-los ou a transfigurá-los. Isso é o que me interessa. Por exemplo, tentei várias vezes, escrever um diário. Invariavelmente, o diário passava a semanário ou a mensário. Isto é, gostaria de fixar as vivências do dia a dia, mas rapidamente verifico que o registo do quotidiano não me interessa nada. Interessa-me mais, por exemplo, uma sonata de Chopin ou uma nova interpretação de Wagner que ouvi nesse dia. Ou os poemas que se me vão soltando da caneta. Invariavelmente, os diários desembocaram em cadernos de anotações poéticas, na qual registo o cheiro das flores, o voo dos insetos ou uma luz mais diáfana que captei, algures, pelo fim da tarde. Acho que sou um animal poético. E está tudo dito.

FM | Em termos de tradição lírica portuguesa, além do declarado fascínio pela poesia de Antonio Ramos Rosa, com quais outros autores dialogas, ainda que em silêncio?

MSB | Neste momento estou a dialogar com Pedro Tamen, pois estou a preparar uma conferência sobre a sua poesia, que tem sido uma descoberta magnífica. Quanto aos outros, tenho tido várias paixões literárias, desde que comecei a escrever. No início, era o Eugénio de Andrade, o Almada Negreiros, o Fernando Pessoa, o Álvaro de Campos, O Bernardo Soaras (o Livro do Desassossego), o Mário Cesariny e o António Maria Lisboa. Depois, redescobri o Herberto Helder, que é ainda hoje, um dos poetas que mais me fascina. Além do António Ramos Rosa, aprecio, particularmente, o José Agostinho Baptista, o Albano Martins, entre outros. Adoro o surrealismo e o expressionismo alemão.

FM | E os autores estrangeiros?

MSB | Bom, também tenho tido fases e paixões. Claro que a poesia alemã ocupa um grande espaço dentro das minhas preferências. Gosto de Shakespeare, Borges, Milton, Yeats, T. S. Elliot, Ezra Pound. Federico García Lorca, Pablo Neruda, Octavio Paz. Cecília Meireles e o Vinicius de Moraes também foram poetas muito importantes para mim, em certa altura. Além disso, gosto de toda a poesia grega, egípcia antiga e pré-clássica. A poesia e a medicina antiga fazem parte das minhas paixões. e. e. cummings exerceu um grande fascínio para mim, em determinada altura. Gosto de Valéry, Apollinaire, Novalis, Goethe, Schiller, Hölderlin, Rilke, Paul Celan. Enfim, são poetas dos quais nunca me canso e que leio ciclicamente. Mas há outros, há muitos outros…

FM | Um dos expressionistas alemães, Gottfried Benn, assim como tu também compartilhou uma vida inteira de poesia e medicina. Em uma de suas “Notas marginais”, disse Benn que “há matizes e conhecimentos que somente podem se expressar com palavras que ainda não existem”. Indago se opinas igual, e se acaso já te sentiste tomada pela necessidade vital de inventar palavras.

MSB | Sinto, realmente, uma grande afinidade com Gottfried Benn. Gosto da matéria-prima, que começa por ser profundamente antiestética (tal como, de resto, estava no programa dos expressionistas) e do tratamento inesperado e profundamente criativo que lhe dá.

Passei uma fase experimental na qual escrevi poesia visual e alterei e inventei palavras. Depois, achei que havia loucura a mais que era preciso conter, mas claro que estou de acordo com o poeta que também disse: pensamos algo diferente daquilo que somos (wir denken etwas anderes als wir sind), no volume IV da sua Obra Completa.

FM | Tua menção ao surrealismo, ao mesmo tempo em que tocas na criação com esta bela imagem dos “poemas que se me vão soltando da caneta”, me levam a pensar que não se encontram em tua poética nenhuma daquelas características marcantes do surrealismo, de modo que gostaria de saber onde a fonte de aproximação. O que especialmente adoras no surrealismo?

MSB | O surrealismo abriu a arte aos desfiladeiros do inconsciente e eu gosto de mergulhar nesses abismos, na vertigem e na pulsionalidade obscura. Gosto da criação nos seus expoentes de liberdade.

FM | E em que distingues surrealismo e surrealismo em Portugal?

MSB | Bom, essa é uma pergunta à qual tu, como estudioso do surrealismo, estás mais habilitado a responder do que eu. Diria apenas que o movimento, não tendo tido a exuberância e a repercussão em França e noutros países da Europa, tais como a Bélgica e a Espanha, teve, em Portugal, alguns bons representantes que já referi, como Mário Cesariny ou António Maria Lisboa, poeta que tem sido muito esquecido, mas que aprecio bastante. E, na pintura, Cruzeiro Seixas.

FM | Mencionaste dois poetas brasileiros dentre aqueles que te foram muito importantes. Identificas os pontos de acolhida ou afinidade com a poética dos nomes mencionados?

MSB | São poetas que já li há muito tempo. Nem sei se tenho afinidades poéticas com eles. Sei apenas que gostei e que me marcaram. Gosto do lirismo ritmado e solto de Cecília Meireles e, de Vinicius, sempre me encantou o jeito tão claro e simples de dizer as grandes verdades do amor.

FM | Para onde retorna o poeta quando não está criando?

MSB | Para o silêncio da terra do pousio.

>>> POEMAS <<<

AS VINDIMAS DA NOITE

As ancas, os ombros, as falésias flutuariam,
na noite onde se despenham as ravinas,
o corpo insidioso arrastando o mar, a boca,
os joelhos sonâmbulos,
os barcos que se cobrem de limos, grãos de areia,
esquecimento.

As harpas do horizonte ergueram-se já,
como árvores frondosas.
Nas colmeias de sangue, fervilha a rosa,
a corola verde, o tumultuoso nome,
o timbre infinito.

As ancas, os ombros, as falésias flutuariam,
na noite,
no vazio errante de um coração silábico
que se abre, suspenso,
por dentro das estrelas, à deriva.

No vazio leve das miragens, esconde-se,
nas vindimas da noite,
o corpo dormente da eternidade que rebenta,
silenciosa,
nos punhais ébrios de salsa, cinza,
aspergindo, na névoa minuciosa,
o ruir das telhas, entre ervas, dedos,

acariciados lentamente.


PAISAGEM AQUÁTICA

Violinos de água, cavalos, veados de música,
florestas nocturnas de água e ciprestes.
E a lua, sempre.
Passa nos olhos, no cume da montanha,
a sombra que torna as palavras lentas

e os olhos turvos de espuma,
no silêncio espasmódico de beber gota a gota
o espaço que é assim,
lacustre nos olhos do assombro.

Porque falta o sol.
E um girassol de palavras que o possa abrir,
na noite, para cobrir a nudez, o vazio,
um esqueleto de nuvens em busca do oiro,

da vertigem,
desperto na erupção da bruma, do sangue,

a língua por dentro movendo o besouro negro
(antigo), onde tudo é intolerável,
entre paisagens aquáticas, dunas febris,

côndilos esfacelados, fragmentos de música,
magnólias, constelações,
linhas repassadas,

entre retalhos meniscais.


MAGNÓLIA ATLÂNTICA

É de vida que o poeta se nutre, de poemas que vai beber
aos rios,
por isso as suas palavras são carne, fruto, seiva, essência,
constelação brilhante, semeada entre os livros.
É de vida que o poeta se nutre, do cântico dos pássaros,
de vivências exóticas.

Do outro lado do Atlântico, há brisas doces, água de coco,
palmeiras estivais, e a vida recorta-se, em toda a sua luz,
construindo do nada a sua essência.
Na luminosidade dos dias, releio o Memorial de Aires,
e as lágrimas aguardam, pacientes, num jazigo,
entre momentos lépidos, passados entre Shelley,
Thackery, e Fidelia, qualquer coisa a lembrar Beethoven.

Gosto quando as narrativas se enredam e me enredam,
entre uma carta de alforria, uma referência a Heine,
os jacarandás, o cheiro do café,
ou uma reflexão sobre a abolição da escravatura.

É assim o Brasil; entre araras e araucárias,
também se pode ler Goethe, Fausto (o Prólogo do Céu),
nas brisas mornas, feitas de pedras soltas, limas,
jacarandás, limões de açúcar,
quando o cheiro a tinta das tipografias atravessa as praças,
as ruas, os cafés, o céu perfumado e o vasto oceano,

onde refulge o sal precioso da magnólia atlântica.

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