.Entrevista com Helena Ignez

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ENTREVISTA REALIZADA POR Aristides Oliveira | Jaislan Monteiro | Rafael Spaca


Helena Ignez é uma atriz cuja potência criativa nos surpreende no cinema e no teatro. Sua história é marcada pelo trânsito nos mais importantes movimentos cinematográficos brasileiros dos anos 60 e 70. Foi no Cinema Novo que conheceu e trabalhou com Glauber Rocha (com quem foi casada e tiveram uma filha: Paloma Rocha) em O Pátio (1959), entre outras obras fundamentais como Assalto ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias, e O Padre e a Moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade.

Podemos dizer que sua aproximação com o diretor Rogério Sganzerla (casamento que trouxe ao mundo Djin Sganzerla e Sinai Sganzerla) gerou seus filmes mais intensos, política e esteticamente, seja em O Bandido da Luz Verme-lha (1968), A Mulher de Todos (1969), Copacabana Mon Amour (1970), Sem Essa Aranha (1970), entre outras parcerias de forte impacto para o cinema nacional.

Anárquica, iconoclasta de formação, Helena é uma referência no que se trata de experimentalismo e invenção no cinema autoral brasileiro. Uma artista que não se rende ao simplismo ou fórmulas para fazer filmes caça-níquel, mas uma atriz-diretora apaixonada pelos riscos e rabiscos da poesia visual em processo permanente.

Em 2010, deu continuidade à obra de Sganzerla com Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha, e produzindo vários outros filmes, como Canção de Baal (2008), Poder dos Afetos (2013), Feio Eu? (2013). Atualmente, mantém a Mercúrio Produções e está lançando pelo Brasil seu filme, Ralé. No meio da sua rotina corrida em São Paulo, conseguimos marcar um encontro na produtora que gerencia. Batemos um papo sobre sua trajetória e como vê o cinema nos dias de hoje. Confere aí!

Helena, fala um pouco do teu percurso artístico, teus processos em andamento.

São 55 anos e eu nem sei por onde começar… No princípio, no fim, hoje, ontem. Tá difícil, né? É cheia também de histórias. Sei lá como é essa carreira. É pontuada de filmes incríveis, realmente incríveis. Filmes que iluminam no cinema brasileiro, e também de peças de teatro magníficas até hoje, como agora a que eu participei no Festival Internacional de Teatro – Cena Brasil Internacional (RJ) com os melhores espetáculos do mundo, e eu estava com o livro “Da Grande Desordem e da Infinita Coerência”, dirigido por André Guerreiro Lopes, com Djin Sganzerla, Eduardo Mossi e comigo. Então, é manter hoje – de uma certa forma – sobre esse aspecto da qualidade, do que a gente pode chamar de carreira que é bastante notável. A qualidade dos espetáculos e filmes que participei, principalmente com Rogério Sganzerla e com grandes outros cineastas. Desde o começo da minha carreira, eu fiz O Pátio (1958) com Glauber Rocha, então realmente eu acredito que é uma carreira notável com o cinema. Isso me agrada porque vai além de mim. Isso já pertence ao meu eu, ao meu ego, mas é maior do que isso, pois já se expande. É um trabalho que fica na memória dos que conhecem a memória do país e fora dele. É uma questão de tempo que essa obra se expanda. Eu não tive a oportunidade de cair em armadilhas. Estava inserida num contexto muito bom de cinema e teatro.

Era o contexto que eu pertencia, que me apoiava a fazer isso e eu gostava dele. Eu não cheguei a ter armadilhas, nada que me interessasse tanto que valesse a pena eu deixar esses trabalhos, que eu preferisse outra coisa menos honrosa, ou digna, ou não, aí eu não sei. Nem tive vontade. Eu acho que tem a coisa da juventude, como Nietzsche, Rimbaud, e Rogério Sganzerla fala da juventude, e eu sou uma das porta-vozes, talvez o mais importante do trabalho dele, além dele próprio, que é a própria obra. Mas, como contribuição, eu acredito que a minha seja muito importante dentro do trabalho dele como atriz. Eu estou inserida nesse trabalho que é eternamente jovem, inquieto e falará sempre aos jovens, gerações após gerações, como está acontecendo. Cada vez mais. E eu diria aos “jovens de todas as idades”, como esta expressão de Rogério. Eu acho que existem jovens de todas as idades, e também tem esses velhos que amam Rogério. Eu mesma serei lembrada como uma atriz inquieta, que está sempre procurando alguma coisa a mais do que já foi feito. E, como artista, eu sou assim também, como expressão. Acho que é por aí que eu serei lembrada, e principalmente pelos que não são totalmente inseridos socialmente, como as minorias, que já são grandes maiorias, mas são minorias na verdade: os gays, travestis, as feministas. Isso faz parte de uma queda especial para curtir esses filmes que mexem tanto com o establishment, riem tanto do status quo, da respeitabilidade. O cinema nacional vai entrar cada vez mais dentro da mediocridade internacional do cinema como arte. Ao mesmo tempo, tem sempre figuras interessantes que se expressam muito bem, tanto no Brasil quanto fora, mas o cinema é uma arte do século XX. Ela já deu no que tinha que dar. Existe uma tentativa enorme de se manter o cinema como era, basta pensar no Festival de Cannes, com aquela história toda do salto alto, do tapete vermelho, tenta-se de qualquer jeito manter essa importância do cinema. Ridículo, completamente ridículo. Uma indústria. E não são mais os franceses que mandam. Então tudo ali é ridículo.

Você é uma artista bastante ativa no cinema brasileiro, seja como atriz, produtora, ou diretora. Fala um pouco do seu aprendizado com o cinema. O aprendizado vem de antes ainda, veio d’O Pátio. Acho que ali mesmo que foi desvendado para mim o que é o cinema.

Ali também com O Pátio nasceu o Cinema Novo. Essa é minha trajetória anterior à Belair*. Com os diretores que eu trabalhei nesse período, tive quase que uma parceria, porque eu vinha de uma escola – a escola de dança – e ali é um filme bastante coreográfico. O Pátio me remete um pouco aos filmes de 1920, um pouco ao surrealismo francês e também ali era uma formação de uma companheira que era eu mesma e aquele diretor, que é Glauber. Foi por aí. Com cada diretor que trabalhei eu também aprendi. Desde menina, eu escrevia, desde muito cedo, gostava de escrever roteiros, mas pensava também no teatro. Então aprendi o cinema de outra maneira. Essa experiência da Belair pra mim já foi uma atividade de um aprendizado que eu já tinha e tava desenvolvendo com aquele cinema de Júlio [Bressane] e de Rogério, que também era anterior à Belair. Meu contato foi com O Bandido da Luz Vermelha (1968), esse sim é um momento totalmente transformador, muito significante para todo o cinema, também como a Belair foi. Esse aprendizado vem vindo de todas as maneiras e chegou até hoje. A gente é sempre discípula. No meu caso, me digo que sou discípula do mistério. Sou discípula muitas vezes.

O que aconteceu com a Betty Bomba, personagem do filme desaparecido, Carnaval na Lama (1970), de Sganzerla?

Ela realmente explodiu! (risos) Meus personagens são kamikazes, todos eles. Anarquistas ferozes. Personagens fortíssimos, estranhos, porque eles todos têm eixo nessa loucura, e que curti muito fazer. É como se fosse fazer mesmo o personagem. E isso vai até hoje. O último trabalho que eu fiz como atriz foi um curta Gramatyka, de Paloma Rocha, minha filha. Extremamente bem produzido, fotografia maravilhosa, que eu acabo de fazer tem umas três semanas no Rio de Janeiro e que eu faço um perso-nagem de duplo sexo. Ele tá quase como semi-nu, com uma capa comprida, aquele sexo. Se vê pintado de branco e vermelho e é também um personagem escandaloso. Extremamente escandaloso. Engraçado que eu vi fazendo esse personagem, que o Joel Pizzini fez uma reflexão engraçada sobre ele: “Você fez uma performance zen”. Não acho tão zen, acho mais chinesa do que zen, mais para o lado do tao, do tai chi, que eu me dedico a vida inteira, praticamente. Mas é também um personagem anárquico e, quando ele pintar na tela, acho que vai ser um personagem que vai ficar dentro do cinema.

Rogério Sganzerla afirmou que o nosso cinema está fadado a ser criativo e, talvez por isso, ele seja constantemente podado, sabotado, estrangulado. Você se sente com mais liberdade criativa para fazer seus trabalhos audiovisuais hoje ou nos anos de chumbo?

Essa liberdade interior existe em qualquer situação. Rogério é quem mais prova isso. Ele atravessou toda ditadura com filmes criativos. Isso é interior, tá entendendo? A dificuldade – isso que ele fala – e a impossibilidade é a mesma. Eu acho também, citando o Júlio [Bressane], uma coisa bem interessante: “A posição do artista é ser contra sua época”, que é a época que é contra o artista. A minha posição é que é sempre difícil criar livremente. A ditadura foi a pior das épocas. Terrível. O pensamento, o intelecto é o alvo “deles”. Então você era obrigada a se rebelar contra. Eu acho que também a arte ganha com isso, uma indignação, uma rebeldia necessária. Hoje a coisa está mais “morna”. Não é mais esse momento de ter rebeldia, mas ela tem que existir, senão as coisas não andam.

O artista tem que ser um iconoclasta?

Sempre!

Que mudanças seu corpo vivenciou, enquanto criação performática, na transição entre a Mariana, de O Padre e a Moça (1965) e Ângela Carne e Osso, em A Mulher de Todos (1969).

Houve vários tipos de rupturas naquele momento e elas são flagrantes nos filmes, mas o pensamento sobre como criar a personagem é o mesmo, vem de algo bem anterior. Apesar de também ser um pensamento móvel, como tudo, e fragmentado, tinha essa força de conduzir dois tipos bem diversos, e em momentos diferentes da minha vida, que foi O Padre e a Moça e A Mulher de Todos. Politicamente diferentes, porque 63 e 64, quando foi feito O Padre e a Moça, ainda era “light”, a ditadura. Em A Mulher de Todos, estávamos vivendo o terror… O cinema também mudou com isso, fez surgir um filme como A Mulher de Todos.

Rogério Sganzerla, em entrevista concedida ao Pasquim em fevereiro de 1970, afirmou que sua interpretação no filme A Mulher de Todos “revela, sem dúvida nenhuma e sem falsa modéstia, o maior trabalho de atriz do cinema brasileiro”. Do seu ponto de vista, quais elementos inovadores você teria empregado nesse trabalho para ter sido alçada à condição de uma atriz singular?

Esse ano, em Locarno, eu ouvi duas vezes, uma de um brasileiro e outra de um crítico italiano, que convidou o filme para o festival e também O Poder dos Afetos, que eu dirijo, que eu era uma das melhores atrizes do mundo, uma das mais importantes. Bem, isso só aconteceu porque estava dentro de um filme, e dentro de um cinema que permitiu surgir esse trabalho. Em primeiro lugar, também tenho que ser crítica e saber que, se eu recebi uma homenagem em 2006 num festival suíço, extremamente capitalista, e que pega uma atriz brasileira e homenageia com 32 filmes – porque eram meus filmes, e os relacionados ao meu trabalho, como o Joel Pizzini, que tinha feito o Helena Zero – uma homenagem escandalosa que não tem outra atriz no Brasil que tenha recebido no cinema isso. Uma homenagem valiosa, não posso me queixar. De tapete vermelho, tipo cinema da minha adolescência, cinema com todo aquele glamour e dinheiro, na Suiça. Bem, acho que o Rogério [Sganzerla] foi mais uma vez inovador em dizer isso do meu trabalho. Foi o primeiro, talvez, a dizer isso publicamente. Durante esses anos todos, eu tenho, principalmente agora, no final, vivido constantemente, que é um trabalho extraordinário, que eu sou uma atriz realmente das melhores do mundo. Eu acredito, porque A Mulher de Todos é um dos melhores filmes do mundo!

Você informou ao Pasquim que, antes de sua atuação em A Mulher de Todos “estava praticamente intoxicada de cinema novo”, o que a impedia de fazer uma crítica mais incisiva ao movimento. O “incômodo” com o Cinema Novo manifestado nessa entre-vista estaria ligado mais diretamente a quais aspectos?

70 estava ficando com um ar pesado dentro do Cinema Novo. Pouca criatividade, aburguesamento. Um movimento que era de esquerda, inquietante, de uma certa forma eram cabeças jovens pensando, tinha envelhecido com uma certa rapidez. Já tinha 12 anos de Cinema Novo, a coisa já tava decaindo. E também tinha sofrido um tipo de preconceito bem machista. Era um machismo forte. A mulher era tratada como objeto. Em geral, só as mulheres dos diretores filmavam. Estava uma coisa meio “pequena” o Cinema Novo, que começou de uma forma tão inacreditável. Estava virando o poder.

O que você tem a dizer sobre o conceito “Cinema Marginal”?

Eu realmente não entendo e peço perdão, mas eu não sou atriz do Cinema Marginal. Os meus filmes com Rogério Sganzerla não podem ser chamados de “marginais”. Eu trabalhei em Nem Tudo é Verdade (1986). O que aquele filme tem de marginal? Eu não sou do Cinema Marginal, lastimavelmente!

E essa categorização?

Essa categoria não é a minha. Eu não gosto do Cinema Marginal. Isso eu falei para o [Marcelo] Ikeda. Não me situaria jamais no Cinema Marginal. Eu não fiz, os filmes do Rogério não são “marginal”. Isso é um engano absurdo. É pasteurizar essa personalidade cinematográfica. Não é marginal, isso é artístico! Sei lá que diabo de nome seja! Marginal pra mim é outra coisa. É quando esgarçou essa inteligência dos primeiros filmes. Claro que, dentro disso, aí podem sair filmes interessantes, sei lá. Como o do Trevisan. Mas eu acho que foi isso: esgarçou, a coisa enlouqueceu e drogou também, e sujou um pouco também. Essa cocainada não foi legal. E foi exatamente que eu saí. Então eu acho uma ironia dizer que eu sou do Cinema Marginal.

“Eu não posso dizer que sou uma atriz do Cinema Marginal. Apesar de ser baiana, o que eu fiz foi outra coisa”

Coloca-se o Cinema Marginal como uma totalização…

Um absurdo! Talvez eu seja uma das raras pessoas vivas ainda. Então eu não vou deixar passar. É um engano muito grande.

O que você achou que levou a se criar esse engano?

A totalização da mídia, uma falta de estudo detalhado. Júlio é “Cinema Marginal”? Eu já até nome de filme do Júlio pertencendo ao cinema da Boca, uma loucura! Nem teve contato com São Paulo. Uma coisa que virou tudo. Não tenho nada contra, amo as pessoas, mas não é! Eu não posso dizer que sou uma atriz do Cinema Marginal. Quando eu falo “Cinema Novo”, eu falo especificamente daquele pensamento no cinema também. Apesar de ser baiana, o que eu fiz foi outra coisa. E era atriz, e só atriz é uma coisa muito dependente, principalmente nesse período do Cinema Novo, as atrizes eram dependentes, não eram soltas. O que abriu esse trabalho foram esses filmes: O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos. Daí, das muitas imitações… eu não gosto tanto das imitações. O próprio Cinema Novo é extensão para o Cinema Marginal, que não foi muito carioca. O Cinema Marginal foi mais paulista. Eu acho furada, muito furada.

O que você poderia nos dizer, a partir de sua experiência enquanto atriz, sobre a interação entre técnica e criatividade no âmbito do cinema e do teatro?

Corre na internet um artigo que escrevi – acho que foi para o “Cinema Marginal”, do [Eugênio] Puppo, “Uma atriz errante” – em que eu falo que é preciso esquecer toda a técnica, jogar fora e viver o set. O cinema é o set. Mas a técnica, para chegar lá, ela te limita se você não tem. É preciso ter todas as técnicas. Eu também acho bom, lindo, adoro, umas das melhores coisas que Júlio [Bressane] tem sobre meu trabalho: falou que eu sou uma atriz de todas as técnicas, uma CDF. Tudo que eu faço é extremamente trabalhado, na respiração, na criação do personagem, para na hora h jogar fora e viver aquilo. Essa mesma intensidade que eu tive no trabalho de Rogério [Sganzerla] eu tive n’O Padre e a Moça, mas de uma outra maneira, que me permitiu ter um personagem importante. Joaquim [Pedro de Andrade] pediu para “me anular”, o oposto do que eu trabalhei. Era abandonar os braços, não sorrir. Num trabalho intenso, batalhado. Porque eu era o contrário, mas também sou o contrário d’A Mulher de Todos. Essa alegria eu tive na criação desses personagens.

Como era a relação de Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla na criação dos seus personagens?

Glauber foi o primeiro e a gente criou junto o personagem (O Pátio). Ele talvez me visse rolando nas minhas aulas, ele era muito participante dos meus movimentos, me pedia para fazer deitada. Era uma coisa junta. Com Júlio, fiz o primeiro filme dele (Cara a Cara – 1967) e fiz os filmes da Belair. Sabia precisamente o que ele queria. Pedia o que ele queria e deixava a gente criar além disso. Ótimo. Com Rogério, meus personagem ainda cresceram. No Bandido, já tinha um toque diferente de olhar a câmera, de enfrentar o personagem, de enfrentar o próprio cinema, tinha auto-referências que ficaram muito claras na Mulher de Todos. Em Copacabana Mon Amour (1970), que talvez eu acredite que seja o trabalho em que eu fique mais surpresa de como foi feito.

Fala um pouco da sua relação com Sem Essa Aranha (1970).

A única coisa que eu posso falar experiencialmente é que, com o Sem Essa Aranha, eu estava saindo, não aguentava mais. Estava dando um “bye, bye” aos meus personagens. Para mim, já tinha chegado ao auge, ali mesmo. Fazer esses filmes tinha um preço.

O que estava planejando pós-Sem Essa Aranha?

Mistério. Entrar em outras técnicas, conhecer outras formas de pensar. Transformação da minha vida e a atriz estava lá, mas em repouso, para ativar outros ares.

Certa vez, você afirmou para Antônio Abujamra ser uma mulher “orgiástica”. Fale mais sobre como essa potencialização é refletida no cinema, teatro e na vida.

Só ele ia acertar tanto, falando de outra pessoa que ele conhece, da maneira que ele conheceu essa palavra. Eu acho que é exatamente isso que define essa história toda da vida, dessa palavra dionisíaca: orgiástica, que é como entendo arte.

Como era sua visão, como artista, da produção cinematográfica da Boca do Lixo?

Eu não tinha ligação com a Boca. Quando eu vim fazer O Bandido da Luz Vermelha (1968) foi possivelmente a primeira vez que ouvi falar da Boca. Cada um fazia sua coisa, sua vida. Ela estava existindo ao mesmo tempo em que estava existindo muitas outras coisas. Não era um motivo de preocupação pra mim. Só existia a Boca naquele período aqui em São Paulo. Eu acho que a base. Porque a produção, inclusive, desenvolvia-se numa das salas da Boca onde foi filmado o Paulo Vilaça na varanda, olhando a Janete Jane. Ali tinha a produção do Deca, que era uma pessoa encantadora. Nunca tive esse tipo de mentalidade fechada não, de jeito nenhum. Cada uma na sua. Na minha geração não. E nem acredito que Odete Lara, que veio antes de mim, tivesse esse tipo de pro-blema. Hoje parece que possa ter, porque a religiosidade e o moralismo ficou muito mais forte. Isso é decepcionante porque eu não vi esses filmes. Eu estava completamente em outra nesse período. Nunca fui apegada a uma coisa só, grudada no cinema. Nem vi os filmes, não posso falar nem mau, nem bem.

Como você compreende a atual produção do cinema brasileiro? Que cineastas e filmes contemporâneos você considera fundamentais no circuito audiovisual.

Educação Sentimental (2013) é um desses filmes, do Júlio Bressane. Talvez o mais necessário, junto a Serras da Desordem (2006), do [Andrea] Tonacci, são os mais importantes. O último filme que eu vi do Tonacci, no Festival Fronteiras, num filme inédito sobre os “Araras”. Eu acho a coisa mais incrível. Aí eu não posso citar mais nada. Dos vivos, não.

Como você enxerga essa fase de resgate da memória do cinema brasileiro?

Com o maior carinho. Eu acho que é uma das poucas coisas inteligentes num país em que não foi a educação o principal objetivo. Esse interesse é maravilhoso e é uma novidade porque a quantidade de pessoas interessadas, que sempre houve… E os próprios artistas, os que eu convivi. O Glauber estava sempre voltado ao passado, e Rogério também. Só que agora ampliou, democratizou, são várias áreas de comunicação interessadas. É um trabalho que, oficialmente, o Ministério não faz questão de salvaguardar a memória.

Em que você está trabalhando, projetando?

Vai ter uma estreia na telona, em Portugal, de Ossos [dirigido por Helena], Santa Maria da Feira, numa sessão chamada “Transversalidades”, junto aos filmes de André Guerreiro Lopes, que também é meu genro e é meu diretor preferido de teatro, com quem eu fiz uma última peça magnífica, no nível das grandes peças que eu fiz na minha vida, O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência, do August Strindberg. Esse é o meu último trabalho, além de eu estar preparando uma produção para janeiro de 2015, Ralé. Um longa-metragem do Poder dos Afetos, esse filme é um média. Com ele eu tive a felicidade enorme de passar em Locarno esse ano, junto a Godard na mesma sessão, junto a Copacabana Mon Amour, com críticas maravilhosas.

Os filmes de Sganzerla estão sendo restaurados?

Sim. Copacabana Mon Amour foi restaurado esse ano, com lançamento no exterior, que foi muito bom. A tentativa agora é o Aranha, mas agora não tem Petrobrás. A gente ganhou “Petrobrás” com Copacabana Mon Amour, foi a maior sorte. O último ano, inclusive, e só tinha para um filme no Brasil, restaurado, e ganhamos. Então, não dá. É difícil, mas anda. Quando se pergunta se nós vivemos de cinema, é disso que a gente vive: o trabalho da gente a vida inteira.

“SÃO POUQUÍSSIMOS OS QUE GANHAM DINHEIRO SÓ COM O CINEMA. FAZEM PUBLICIDADE E FAZEM UM CINEMA RUIM, UM CINEMA SUBSTITUÍVEL, QUE VOCÊ PODE VER EM OUTROS LUGARES”

E a circulação dos filmes?

São vendidos para a televisão, sempre mantidos e revendidos. Tem a “Canal
Brasil”, agora o “Arte 1”, “Cultura”. Não há porque se queixar. Poderia estar muito pior. Agora quero vender para o SESC, mas ainda não está muito resolvido.

Porque o cinema brasileiro é tão pouco conhecido, visto e com artistas pouco reconhecidos pelo público?

O cinema ficou uma coisa de elite, cara. É um momento dificílimo para o cinema. Eu não sei como esse cinema vai continuar, esse cinema de shopping, esse ci-nemão. Como vai ser… Dizem que não dá dinheiro a ninguém. Tá ruim pra todo lado. São pouquíssimos os que ganham dinheiro só com o cinema: fazem publicidade e fazem um cinema ruim, um cinema substituível, que você pode vê em outros lugares. Não é mais uma diversão. Não cumprem um outro lugar, não sei qual é o futuro.

Que mentira você gostaria que fosse verdade?

Que louco! Eu pensei mentiras que eu nem tenho coragem de falar, logo em primeiro lugar. Que mentira… Que mentira, que mentira… Acho que, como tudo é sonho, não há mentiras.

  • BELAIR: produtora de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, de 1970. Nesse ano, os dois realizaram seis filmes em quatro meses, e por causa deles tiveram que se ausentar do Brasil temporariamente devido à repressão da Ditadura Militar. Bressane e Saganzerla, autores de O Anjo Nasceu e O Bandido da Luz Vermelha, respectivamente, foram as principais figuras do Cinema Experimental no Brasil. Os filmes da Belair apresentam a liberdade e a anarquia em seu ápice, caracteristicas desse cinema naquela época. Os filmes circularam pouco no Brasil, e um deles acabou se perdendo, arnaval na Lama, de Sganzerla, que também realizou Copacabana Mon Amour e Sem Essa, Aranha. Bressane, por sua vez, dirigiu A Familia do Barulho, Cuidado Madame e Barão Olavo, O Horrível. Helena Ignez foi atriz em todos os filmes, e em 2005 lançou o curta-metragem A Miss e o Dinossauro, que mostra os bastidores dessa experiência. Em 1975, Júlio Bressane fez A Viola Chinesa, chamado de o último filme da Belair. (Acesso: http://revistausina.com/2014/10/09/belair-sganzerla-bressane-e-helena-ignez/)
  • Fotos: Meire Fernandes.

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