Entrevista com João Silvério Trevisan

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Por Aristides Oliveira, Demetrios Galvão e Paola Marugán

Após uma chuva absurda, pedimos licença e ocupamos o apartamento de João Silvério Trevisan para conversar com ele sobre o cenário político brasileiro e os impactos do livro “Pai Pai” (2017), uma confissão profunda sobre sua a vida e a relação com José. Sexualidade, solidão, morte, família, queer e um exercício analítico sobre a carreira no cinema e literatura percorreram a sala de visitas do escritor, numa conversa potente e inesquecível.


Tomando “Pai, Pai” (Alfaguara, 2017) como ponto inicial da nossa conversa e o novo disco da Marina Lima (“Novas Famílias”, 2018), como você compreende a noção de “família” nos dias de hoje.

 Eu não tenho muita tranquilidade com relação ao conceito de família. Obviamente, isso tem a ver com minha experiência pessoal, mas também com a minha ideia do quanto uma família pode ser uma prisão. Então, eu tenho muita reticência com relação a esse tema. Se você vai aproximar a ideia do novo álbum da Marina Lima, certamente, quando ela fala de “novas famílias”, ela está se referindo às novas composições familiares, a partir de novas exigências afetivas. Certamente ela estará se referindo, entre outras, as famílias homoafetivas. Tenho meu total apoio quanto a isso, no sentido de que essa é uma possibilidade de repensar o conceito de família. Estou falando em possibilidades, não é que seja uma garantia. Uma possibilidade introduzir dentro do velho e tradicional conceito de família, elementos novos que possam eventualmente seguir na contramão das desgraças que estão implícitas no conceito tradicional de família: o autoritarismo, a dominação, a cristianização, a formatação do qual você não consegue escapar, mas que é frequentemente perverso, no modelo que você é obrigado a seguir regras. Você é um novo Ser, mas você já está predestinado a ser aquilo que esperam de você. Isso é uma fonte de grandes dores na ideia de família tradicional. É como se você fosse obrigado, ao nascer dentro de uma família, a perpetuar a imagem e a memória daquela família. Eu não vejo desgraça maior do que isso. Então, nesse sentido eu acho que é muito agradável e favorável a ideia das novas composições familiares. Inclusive, a própria ideia do casamento, que é uma coisa que sempre me provocou calafrios… eu acho que transformou-se num elemento político da maior importância na contemporaneidade, em termos de conseguir englobar elementos para um novo conceito de sociedade ou um conceito de sociedade mais abrangente, mais inclusivo e eu próprio passei dessas reticências para a necessidade de ter um contrato matrimonial. Eu já tenho com meu companheiro um contrato de união estável, mas provavelmente, se tudo correr bem, vamos ter um contrato matrimonial para evitar situações que se repetem ad infinitum. Eu tenho um artigo nos “Devassos do Paraíso” que é “Integrar-se ou Desintegrar”. Se você está se integrando, está comprando uma estrutura velha. Se você vai desintegrar, você não pode se integrar a estrutura velha, porque você vai rompê-la. Na nova edição dos “Devassos”, eu consegui re-equacionar e repensar meu artigo. Dentro de toda proposta queer, das teorias, do foco e do posicionamento queer, o que você tem é um “integrar e desintegrar” ou “integrar para desintegrar”. Você não tem mais a postura “meiaoitista”, do qual eu sou filhote – de 1968 – de que esta sociedade não tem nada que preste. Ao contrário, eu acho que há um pensamento, que parece abrangente e subversivo, que é a “subversão da subversão”. Você tem todo o projeto de entrar nessas sociedades para inserir elementos de subversão no interior dela. Eu acho que é aquisição muito importante da contemporaneidade. Nós não vamos mais nos distanciar, pelo contrário, nós queremos nos aproximar até o ponto de invadir. O projeto todo é INVADIR. Nós estamos invadindo as praias que nos refugam, que nos detestam e não aceitam nossa presença. Como dizem os americanos: “nós somos queer, nós estamos aqui. Melhor irem se acostumando”. É uma coisa boa para jogar na cara do Bolsonaro, que gosta de usar esse tipo de argumento. “Engulam-me”! Eles continuarão nos engolindo, certamente. Nós vamos estar invadindo… Sem arma, mas como nossa criatividade. Com a nossa capacidade criar conceitos e obras.

No seu novo livro (Pai, Pai), temos José como personagem principal… Como ele trouxe pra ti inspiração literária. Onde podemos encontrar José nos teus livros? Isso é possível?

A trajetória da sombra do meu pai na minha obra, não apenas na obra literária, mas no caso bem explícito é no “Orgia ou Homem que deu Cria” (1970), que eu cito. A presença dele obviamente está espalhado em toda minha obra, para meu espanto. Eu descobri isso enquanto escrevia o livro. O que eu acho mais curioso e emblemático desse mistério, do qual meu pai José faz parte é que ele me deu de presente esse livro. Enquanto eu escrevia, eu fui descobrindo, mas depois do livro e da repercussão que o livro teve… inúmeras vezes a fi cha não parava de cair. Meu pai me deixou este… eu não chamaria de presente, ele me deixou este projeto, que foi exatamente poder… graças ao desamor dele fazer a descoberta do perdão e conseguir escrever um livro que passa a ideia do perdão para muita gente que está precisando dessa ideia. Não estamos falando de autoajuda, estamos falando de literatura. O impacto da literatura encorpa, adiciona elementos muito importantes para a compreensão da sua vida interior e do mundo que te rodeia. Essa minha obra literária pode propiciar para um monte de pessoas, das quais eu recebi retorno de como o livro as tinha impactado. Os testemunhos são perturbadores dessas pessoas, de como o livro as afetou. Ou elas se identifi caram ou muito frequentemente elas tiveram pais maravilhosos, mas elas puderam descobrir outros elementos através da ideia do perdão. Outros elementos em função da paternidade, porque é exatamente esse processo que eu revelo pra mim mesmo… O que eu pude perceber é que eu tive uma aquisição muito grande com relação a minha própria vida interior. Meu pai me deixou este projeto de repensar a vida. Foi a compreensão de como a vida é constituída de paradoxos. Era muito surpreendente a cada vez que me caia a fi cha, eu me dar conta de que o próprio desamor pode provocar uma onda amorosa. A própria incapacidade de compreensão pode levar até a compreensão do perdão. Esses paradoxos todos fazem parte de uma compreensão que eu já tinha sobre a existência do mistério interior, o mistério que nós temos. Nós vivemos mergulhados no mistério de estar no mundo, mas a gente vive o mistério de estar consigo mesmo. De ser a si mesmo. Esse “ser a si mesmo” é uma coisa extraordinária, misteriosa. E faz parte desse mistério, ou desses mistérios, todos esses componentes de paradoxo. Todo o mundo e toda vida é um encadeamento infi nito de paradoxos. Nada daquilo que nós esperamos dentro dos nossos manuais acontece, porque a História é todinha feita de paradoxos. Essa reafi rmação dos paradoxos foi uma outra aquisição que o livro “Pai, Pai” me trouxe.

Quando você sai de casa (aos 25 anos) como foi o processo de compreensão dos conflitos com José? O que essa solidão te fez para esclarecer, ou não…

A questão é que essa solidão não é aos 25 anos. Eu fui um exilado desde criança. O meu exílio não dependeu do José, mas que o José certamente inscreveu esse exílio na minha história. Esse exílio começa com a minha homossexualidade, que eu não compreendia quando criança, mas eu sabia que havia alguma coisa diferente. O meu pai percebeu isso. Ele não percebia nitidamente os contornos da questão, mas ele compreendeu o suficiente para se defender de mim. Eu colocava a sua estrutura pessoal em risco. Eu era um dos – enquanto filho mais velho – elementos que colocaram José em risco. As surras eram em função… eram como se fossem surras não para me atacar, mas para se defender. Infelizmente eu sou obrigado a admitir isso. Aliás, isso nem está presente no livro, é uma ideia que eu acabo de expressar agora. Então, a minha vivência de exílio, que é uma coisa que eu tenho desde criança e que atravessa toda minha vida em diferentes circunstâncias e atravessa toda minha obra, ela obviamente, não acho que tenha a ver com a família explicitamente. A fuga da minha casa, fuga com aspas ou sem aspas, quando eu fui para o seminário, já configurava essa necessidade de conquistar minha solidão. Isso com meus 9 anos de idade era uma coisa impossível. Eu fugi para encontrar o meu espaço e encontrei um espaço de solidão ainda maior no seminário. E essa solidão é uma conclusão natural do exílio, esse sentimento de solidão perpassa toda a minha vida e irá comigo a terra. A vivência da solidão e a percepção da solidão estão o tempo todo presente. Eu não precisaria dizer que eu sou um depressivo crônico desde pequeno. Faz parte do quadro dessa depressão crônica o meu sentir-me em exílio, em estado permanente de exílio e me sentir um ser solitário. O que eu estou sentindo não é nenhuma novidade porque essa é a percepção de qualquer ser humano. O que talvez tenha sido revelado através da dor é que essa solidão é algo do qual eu não posso me envergonhar, da qual eu não posso fugir. A única coisa que eu tenho que fazer é a mesma entrega diante da experiência e da existência da morte. Diante da solidão, eu não tenho outra alternativa senão me entregar a ela. Ou seja, aceitar a sua existência e conviver com ela. Faz parte do meu ser, da minha experiência de vida e ela faz parte da vida de todos os humanos. Quando eu tenho essa experiência muito pesadamente, muito quente nas minhas mãos, eu tenho graças a esse incômodo, a possibilidade de levar as pessoas que tem contato comigo e minha obra até a melhor compreensão dessa solidão e sua importância. É a mesma importância que eu dou a dor e a morte. Eu fiz anos de análise e terapia para compreender a morte até o ponto de compreender que é impossível compreender a morte. A não ser transformar num elemento de propulsão que possa te levar a única coisa que pode te salvar, a compreensão de que a tua vida não existe sem a tua morte. Você vai compreender melhor a sua vida se adicionar a perspectiva da sua morte. E é espantosamente grande a diferença entre viver fazendo de conta que a morte não existe e viver convivendo com a possibilidade da morte. É uma compreensão da água para o vinho. Da fantasia pura, a fantasia no pior sentido, para a compreensão da realidade no melhor sentido.

Foto: Meire Fernandes

“Pai, Pai” te ajudou a repensar o teu papel como escritor?

 “Pai, Pai” mudou e não mudou muita coisa. Eu sempre pensei a minha obra. Sempre me achei um escritor sem estilo. Eu gosto de recomeçar a minha obra a cada novo livro. Eu não quero ter um carimbo: “agora vou começar um novo livro e vou usar o mesmo carimbo”. Eu tenho horror disso! Nesse sentido, o “Pai, Pai” é uma continuação. É bastante diferente. Há uma continuidade da minha obra por ser diferente das outras que fiz. Não apenas pelo resultado, mas pelo próprio método. Em geral, eu tenho projetos rigorosos para escrever. “Pai, Pai”, assim como “Vagas Notícias de Melinha Marchiotti” (1984), o projeto era muito vago. Isso é desafiador e ao mesmo tempo é muito doloroso. A escritura é dolorosa porque você meio que vai criando caminho enquanto você caminha. É bem mais difícil. Você não ter muita noção para onde você vai. É claro que, quando eu chegava na esquina, de repente, eu já vislumbrava um panorama que me permitia fazer escolha do meu próximo passo. Houve um começo que foi um pouco mais difícil e depois os desdobramentos foram mais flexíveis. O que houve de diferente no “Pai, Pai”, eu acho que foi o fato de sofrer uma transformação enquanto escrevia o livro. E essa transformação compareceu na escritura, no resultado. É um livro que você pega a primeira frase, que é uma frase cheia de ressentimento e mágoa e você chega na última frase e houve uma mudança da água para o vinho. Do ponto de vista da mágoa e do ressentimento para a aquisição do perdão. A metamorfose literária é clara. A metamorfose do ofício de escritor é clara no livro. Então, isso para mim foi muito novo e eu confesso que foi gratificante. Eu não tinha muita escolha em escrever o livro se não me expor. O livro é um grande striptease. Depois que eu escrevi e fui reler… na verdade, quando o livro estava na editora, eu entrei em pânico. Eu pensei: “você enlouqueceu, você entregou pedras para teus inimigos e para aqueles que possam não se interessar muito pelo que você fez”. Aí eu voltei a repensar que eu não tinha muita escolha. Na verdade, as pedras sempre existem quando você cria. Elas estão num momento ou noutro, presentes… e você não tem como se defender delas. No que você jogou sua obra no mundo, o mundo vai compreender de um jeito que não depende de você. É como fazer um filho: ele tem vida própria. No caso do livro, a vida própria significa um conluio com os leitores. O fato de ter me exposto até o limite realmente exigiu que eu pudesse ou que eu precisasse reelaborar meu posicionamento diante da própria literatura. Aquele que escreve sem máscaras. Aquele que escreve para retirar as máscaras. Na verdade, as pedras que eu posso receber do livro contém um antidoto que é o seguinte: vocês querem jogar pedra? Vocês estão jogando pedras contra uma vida. E uma vida não se nega mesmo com pedrada. Isso foi muito consolador para mim. Eu estou oferecendo às pessoas que vão descobrir esse livro a possibilidade de conhecerem uma vida. Ou seja, eu estou oferecendo o horizonte de uma vida que elas não conheceram. Eu nunca tinha tido essa experiência. Na verdade, as experiências que eu tive em literatura foram sempre oferecidas aos leitores e leitoras a possibilidade de um mundo literário que talvez eles não conheçam. Ainda que minha obra seja a enésima obra a falar sobre a presença do pai, certamente é a obra única que fala desse pai e desse filho. Não tem como escapar disso. Isso é muito consolador. “Vocês querem falar de mim?” Vocês vão ter que ler o meu livro. Vocês lendo meu livro, vocês necessariamente vão entrar em contato com uma coisa que não pode ser negada, que é a minha experiência de vida. Eu sou aquele que está no livro. Esse livro é aquele que eu sou. É claro que, mesmo quando você faz uma autobiografia, você estará fazendo interpretações. Eu cheguei até o limite de contestar as minhas interpretações no próprio livro. Não é apenas uma narrativa, mas uma narrativa ensaística. Os elementos ensaísticos que eu coloquei no livro já são elementos que repensam a própria história que eu estava narrando. Isso é muito agradável porque eu estou sendo personagem de mim mesmo.

Eu estou sendo o meu próprio leitor. Estou oferecendo para os leitores um desdobramento daquele escritor que eu sou. Eu ofereço quase uma obra em terceira dimensão. É muito agradável essa ideia. O impacto que o livro está tendo nas pessoas tem a ver com toda essa situação. Quando eu conto a cena do cinema, em que eu peguei no pau de um cara, essa cena é emblemática da minha relação com meu pai, eu não tenho mais o que acrescentar. E as pessoas não têm mais o que acrescentar senão baixar a cabeça e ler o livro que eu estou oferecendo a elas. É um livro radical, que exige uma leitura radical, portanto uma literatura de radicalidade, que não é estranha a minha obra. É uma radicalidade muito específica, porque tem uma raiz, no sentindo etimológico de “radical”. É a minha vida que está alimentando a árvore desse livro. As raízes estão fincadas na minha vida pessoal.

Como foi gravar “Orgia ou o Homem que deu cria” (1970)? Que impactos esse filme te causa?

Eu acho que “Orgia” é um filme muito doloroso para mim. As filmagens foram deliciosas, uma alegria. Foi tudo feito em equipe, as pessoas fazendo do fundo do seu coração, recebendo quase nada, comendo pão com mortadela, transando loucamente durante o filme. Era uma energia vital muito palpável. Agora, o dia seguinte foi complicado. Eu não tive problemas apenas com a censura. Eu tive problemas com o avalista, que fez um empréstimo no banco, que queria me matar e esse contexto todo acabou com minha carreira de cinema. E isso foi uma dor, uma facada profunda que eu só consegui encontrar uma saída para ela indo embora do Brasil. De fato, foi um salto que eu dei sobre o abismo. E funcionou. Eu não consigo ver, assim como eu não consigo ver minha vida atual sem a existência desamorosa do meu pai, eu não consigo ver minha experiência de vida a partir do “Orgia” sem a interferência da censura. É como se, graças à censura brasileira eu tivesse descoberto um novo mundo, que foi a minha ida para fora do Brasil. Eu comento isso em muito dos meus ensaios e artigos, como a ditadura brasileira trouxe, à revelia, pela contramão, grandes aquisições para a história brasileira. Ela nos obrigou a ter um banho de mundo. É claro que ela não queria isso, mas a nossa capacidade de reação é tão grande ao autoritarismo e a repressão que nós conseguimos transformar a repressão num elemento de criação. Isso vigora para todo sempre. Eu acho que “Orgia” significou para mim a dor de ter minha carreira de cinema terminada, até hoje eu sou um E.T. no cinema brasileiro, não só no passado, mas inclusive no presente. Eu tenho as gavetas cheias de roteiros e ninguém quer filmar, são radicais demais. Tenho um roteiro de um cara que se torna santo chupando o próprio pau, que é baseado na adaptação de um conto meu. Eu não consegui nem no Festival de Rotterdam encontrar saída para meu roteiro (traduzi para o francês e inglês), que se chama “O Onanista”, que é o nome do meu conto, no meu primeiro livro de contos: Testamento de Jônatas Deixado a David (1976). Eu tenho esses roteiros que são muito radicais e eu não escolho ser radical. Eu não posso fazer outra coisa. “Orgia” é um filme colocado dentro de um contexto chamado “cinema marginal”? É! Mas eu continuo fazendo cinema marginal. Eu não acho ruim que chamem. Tem gente que acha que não é marginal merda nenhuma! A mim tanto faz, quanto fez. Se quiserem dar o nome de “cinema de invenção”, o que quiser… Rigorosamente nós estávamos à margem. Nós estávamos de fato fazendo uma coisa nova que nem nós mesmos conseguíamos compreender o que era, tal a radicalidade dessa inventividade. Então você pega o “Orgia” e vê um anjo preto que caiu do céu, uma travesti preta com o penico na cabeça imitando Carmem Miranda e declamando Oswald de Andrade. O rei do país com uma coroa de madeira na cabeça e uma copa do mundo de plástico na mão, cadeirante rodando pelo país. Você tem um anarquista do começo do século XX que aparece no filme… Esses elementos que vão se misturando… eles não podem ser enquadrados numa compreensão de um cinema realista clássico. É verdade que eu fumei maconha para poder chegar até essa concepção do roteiro. Foi proposital. Coletar das raízes da brasilidade. Então eu fui ver muito teatro de rebolado, muita chanchada. Era nisso que eu queria me apegar para poder trabalhar com um elemento muito presente na cultura brasileira, especialmente a partir do Modernismo, que é o escracho. A minha geração não tinha outra reação mais adequada, senão o escracho. Aquela frase que o Rogério Sganzerla gostava de dizer, que não era propriamente uma frase do Rogério, mas era uma sensação que circulava naquela geração: “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba”. A chanchada e a antropofagia fazia isso. O componente de escracho da antropofagia é essencial. Oswald de Andrade é um representante fundamental do escracho. Em todos os sentidos eu pertenço a margem. Inclusive pelo fato de viver em estado de exílio.

Rolou uma história que o Glauber queria te dar umas porradas na exibição do “Orgia”. O que representaria o Glauber te bater?

 Era reviver a questão da autoridade do pai. O Glauber está presente no “Orgia” com a morte do pai. O filme começa com o assassinato do pai. E o Glauber era uma espécie de inspiração e travamento nosso. O Glauber nos inspirava e travava. Ele era um empata-foda, uma tesoura emasculatória. O seu talento era tão grande que se tornava um talento autoritário. Não apenas por conta da sua própria personalidade autoritária, mas por conta do que ele significava no cinema brasileiro daquele período. Ele era um grande referencial, mas nós não podíamos ficar presos ao Glauber. A história não parava no Glauber. Nós tínhamos que dar uma continuidade e era matar aquele que nós amávamos. “O Homem mata aquilo que ama” (Oscar Wilde). É um pouco dessa necessidade da morte do pai, que é longamente examinada e elaborada no “Pai, Pai”. É uma continuidade deste mesmo processo.

 Dentro da discussão literária, você acha que existe o rótulo “literatura gay”, “literatura negra”, “literatura de mulher”, ou que vale é a literatura de qualidade independente do segmento de gênero ou étnico racial?

É uma questão espinhosa. Eu não acho que seja uma questão que você, ao fazer uma afirmativa, você nega a outra. Essa adjetivação é fundamental, ou essa adjetivação é compartimentalizadora, portanto ela diminui o conceito. É um conceito mais fechado. O que eu acho é que toda tentativa de adjetivar é uma tentativa de minimizar. Ninguém fala em cinema heterossexual branco masculino, ninguém chama o Jorge Amado de escritor heterossexual. Ninguém chama a Clarice Lispector de escritora branca. Essas adjetivações, elas tendem a serem usadas para colocar em compartimentos que possam tornar a definição diminuidora. A mesma coisa quando você vê a literatura clássica: dentro dela está toda a literatura europeia e americana. Aí quando você vai falar de literatura fora desse quadro, você fala em “literatura brasileira”, “latino-americana”… A tendência é muito maior em você adjetivar. Eu acho isso bastante discutível e perigoso no sentido de embutir uma maldadezinha, que é tornar tudo isso menor. Ao mesmo tempo eu não acho que você possa negar a literatura escrita por mulheres, a literatura escrita por negros, a literatura que contém uma temática homossexual. Eu não acho que exista uma literatura homossexual, mas existe uma literatura de temática homossexual que tem que ser levada em conta. E ela é insistentemente negada como uma coisa menor! Eu vivo isso na minha pele o tempo todo! Estou sempre à beira de ser acusado como escritor que escreve com cartas marcadas, ou seja, o “escritor homossexual”, o que significa que só interessa a homossexuais, ora! Eu quero que a sociedade brasileira engula! Eu quero enfiar pela garganta abaixo da sociedade brasileira a minha obra de escritor, que é entre outras coisas, um homem homossexual. Agora, eu não quero que as pessoas deixem de me ler por conta da temática que eu estou abordando e isso é que me incomoda profundamente, isso que me deixa perniciosamente à margem. Eu me torno um escritor desclassificado. Os meus últimos três títulos não tiveram nenhuma resenha na grande imprensa. Mesmo as críticas, e não são resenhas, são pequenas críticas que me elogiam, até mesmo bastante, elas são muito medíocres. Elas medem o espaço que elas têm a disposição, o espaço que elas dispõem para falar da minha obra. O estudo da minha obra, por exemplo, só começou a ser estudada na Universidade a sério com “Ana em Veneza” (1994). Antes disso eu não tenho quase nada e pelo contrário, eu tenho até tese que é altamente negativa sobre obra minha, por incrível que pareça. Eu conto no “Pai, Pai” situações que eu vivi recentemente de estudantes que foram tentar estudar minha obra e que eram desautorizados e desorientados pelos orientadores. “A obra do Trevisan não interessa. Ele é pornográfico”. Esse preconceito eu não aceito como componente de qualquer abordagem literária. Preconceito não tem nada a ver com literatura. Eu tô fora.

Pensando a Literatura e Política, qual o papel da sexualidade na política? Por exemplo: o “ser viado”, “ser puta”, “ser preto”. Essas afirmações altivas parecem dizer mais politicamente nos dias de hoje do que uma bandeira ideológica partidária?

Eu não sei se eu compreenderia esses elementos que você citou como rótulos. Na verdade, são destaques específicos de experiências de vida. Uma experiência de vida de um negro brasileiro é muito diferente da experiência de vida de um homossexual branco. A experiência de uma mulher-mãe é muito diferente de uma experiência de uma mulher, negra e lésbica. Todos esses elementos não são desprezíveis, porque compõem vidas, trajetórias de vida. Na medida em que você está inserido na sociedade, impreterivelmente você tem uma inserção política. Ou porque sua inserção é ativa, ou porque ela deixa de ter um posicionamento ativo. Em qualquer circunstância, essa inserção é política. Eu não consigo entender como é que seria possível considerar esses elementos específicos, de certas vidas e que foram relegados a invisibilidade durante muito tempo, ou pelo racismo, homofobia ou machismo. Eu não consigo entender porque que eles seriam muito diferentes da vivência de um homem branco, ou de uma mãe preta, ou de uma lésbica branca. Esses componentes diferenciados criam espaços sociais muito diferenciados, mas não porque cada um deles criam uma nova sociedade: esse é o problema. A identidade ou as políticas identitárias escorregam na exclusão, na auto exclusão. No final dos “Devassos no Paraíso” (1986) eu faço uma análise a esse respeito e me assusta muito. As pessoas começam a trabalhar dentro do conceito do politicamente correto, até o ponto de criarem políticas identitárias que são exclusivas, e não inclusivas, eu acho que elas estão cavando um buraco para si próprias. Nós não podemos pensar uma sociedade democrática sem ter todos os tipos de identidades incluídas. Uma nova força não pode se sobrepor aos outros elementos identitários que já habitam essa sociedade. A identidade transgênero tem uma importância extraordinária, porque ela veio com um impacto imenso, trazendo novas propostas e novos projetos sociais. Isso não é uma aquisição apenas aos/às transgêneros. É uma aquisição para toda sociedade. Quando a teoria queer fala da possibilidade do gênero ou uma definição de gênero ser uma definição à deriva, isso propõe uma revolução na sociedade. Em todos os sentidos. Quando essa abordagem propõe a passagem ou ausência entre a fronteira entre os gêneros, nós estamos falando de um tsunami do ponto de vista da reorganização de todo um projeto social. Não é uma brincadeirinha. A tomada de posse do meu próprio corpo, até o ponto de transformar aquilo que a sociedade considera o gênero, no qual eu estou inserido e isso chega até o ponto de impor modificações no meu próprio corpo é de uma radicalidade impossível de ser desconsiderada. Se essa radicalidade chega até o ponto de se considerar tão radical que ela vive sozinha, ela estará cavando o seu próprio buraco. Os excluídos – isso é uma coisa antiquíssima dos tempos do Lampião1 e do Somos2. Nós já falávamos disso – não existe nenhuma possibilidade dos excluídos lutarem se eles não tiverem unidos por um forte esquema de solidariedade. Se a palavra Solidariedade desaparecer da luta dos oprimidos, a luta dos oprimidos vai desaparecer. A solidariedade não é uma coisa fácil, assim como o perdão não é uma coisa fácil. A solidariedade tem que pensar o seu Eu, o seu subjetivo interagindo com outros subjetivos. É uma subjetividade interagindo com outra subjetividade, não tentando negar outra subjetividade. Esse é o cimento da solidariedade. Esses elementos colocados na pergunta são políticos, pelo fato de serem, como eles provocam um desdobramento político radical. É bom que seja assim, porque a sociedade democrática tem com esses novos elementos agregados, ela tem uma compreensão muito mais ampla do seu próprio significado. Nem se discute a questão da luta antirracista. É próprio da sociedade democrática ter uma postura antirracista, antihomofóbica, antimachista, antissexista. A presença da mulher na sociedade não é só porque é mais de 50%, é porque ela é parte da sociedade! Nem que ela fosse 10%, 20%. A presença de homossexuais é a mesma coisa, ainda que ele fosse uma presença de 1%. A mesma coisa com os indígenas. Eles fazem parte da sociedade brasileira e impõe uma problemática muito específica, porque eles têm sua própria sociedade, a sua própria história, que as nossas sociedades e histórias ocidentais estão tentando negar. Portanto, eles colocam um desafio e é ótimo que a sociedade democrática seja desafiada. A democracia é um desafio eterno, em processo. Enquanto ela for um desafio, ela será democrática. Quando eu falo em desafio, é ampliar o espaço democrático. Jair Bolsonaro é um monstro antidemocrático por natureza. Seja dito isso com todas as palavras! A compreensão de que existe um Jair Bolsonaro na história brasileira é a compreensão de como nossa história criou um monstro.

 Fala um pouco das lembranças que você guarda do grupo de teatro “Vivencial Diversiones”.

Eu não posso falar do Vivencial Diversiones porque a saudade que me dá provoca uma dor sem tamanho, justamente porque o Vivencial seria absolutamente impossível, senão naquele momento. Seria igualmente impossível captar o Vivencial tal qual ele foi. Ainda que a gente quisesse refazer o Vivencial com todos os seus mínimos componentes seria impossível. Ele era o cruzamento de vários paradoxos entre cristianismo e profanidade, entre pobreza e criação, entre repressão e ruptura, imoralidade e criatividade. Ele tinha um componente de liberação impossível de ser reativado ou retomado, porque ele não tinha uma compreensão de que estava sendo libertado. Na verdade, não é que ele quisesse ser libertado, mas ele tinha uma inocência ao ser libertado que nós já perdemos. O Recife dos anos 70 tinha uma vibração descontrolada. Para mim, aquilo era uma forma de respirar no meio do caos. Era uma forma de pensar o caos como sendo o fulcro da criação. Todas as inovações artísticas começaram no caos e o teatro Vivencial era a arte no mangue. Não acho que o Recife e a cultura pernambucana, talvez até a cultura nordestina contemporânea possa ser pensada sem a existência do Vivencial Diversiones. Não me pergunte sobre como descrever o Vivencial. É impossível dar uma descrição totalizante. Eu só posso ter pequenos retalhos e lembranças. Se você pega um filme como Tatuagem (2013) por exemplo, é um filme muito bom, impactante, mas está longe do que significou o Vivencial. Ali tem coisas que distorcem obviamente o que foi o grupo porque é impossível captar o que eles significaram.

Vivencial Diversiones. Foto: Ana Farache.

Sobre o grupo SOMOS, quando conheceu Néstor Perlongher? Como foi esse encontro, as trocas políticas, intelectuais, sexuais?

 A presença do Néstor é pré-SOMOS. Ele trouxe um jornal argentino chamado Somos e foi a partir desse jornal que nós adotamos o nome SOMOS. Minha própria relação com o Néstor foi muito conturbada e é uma lembrança dolorosa. Ela sofreu vários desdobramentos e evoluções que não são de memória agradável. O Néstor que eu conheci antes do SOMOS, ele nunca se integrou ao SOMOS no período que o grupo foi aquilo que se costuma pensar que como sendo SOMOS… Uma parte ele estava morando na Argentina, outra parte ele veio para cá e realmente não tinha interesse, porque os interesses dele eram outros: literários e acadêmicos. Sobretudo o interesse acadêmico, acho que prejudicou muito minha relação com ele e a sua própria compreensão da sociedade brasileira naquele momento. Ele acabou se fechando. Toda a proposta anárquica do Néstor se concentrou no PT (Partido dos Trabalhadores), o que significa que ele se fechou num quadro determinado com um projeto e objetivo determinado, com propostas muito fechadas em função daquilo que partidos têm como suas prioridades. Ele se submeteu a essas prioridades. Com isso ele matou a ideia do que o SOMOS tinha de mais importante, que era a autonomia partidária, dos movimentos sociais. O Néstor que eu conheci depois da dissolução do SOMOS é o Néstor que se integrou ao SOMOS que já estava integrado ao PT. Era um Néstor raivoso, não era aquele Néstor generoso. Eu cito no “Pedaço de Mim” (2002), com todas as letras essa cena, quando a convergência socialista tomou o SOMOS e levou para o PT que tinha acabado de nascer, se integrando fisicamente, porque o SOMOS foi para o diretório do PT do Bexiga (SP). Nós nunca tínhamos tido uma sede, nunca quisemos ter. A gente queria um grupo itinerante, que estava nas casas das pessoas e o totalitarismo partidário já se apresentou na cooptação que levou o SOMOS para dentro (fisicamente) para o diretório do PT. Foi aí que ele morreu enquanto SOMOS. Não conseguiu sair do lugar e ficou sem nenhuma autonomia. Movimento Social é um movimento da sociedade, é um empreendimento da sociedade. É a sociedade que se organiza para pensar um projeto. O que os partidos fazem é cooptar o movimento social para que ele pense um projeto de sociedade tal como o partido quer. Quando ele entra no partido, ele tem que se submeter às prioridades do partido. Eu tenho uma visão muito pessimista dos movimentos sociais brasileiros e latino americanos, até onde eu conheço. Eu estive em contato com várias delas no passado. Eles têm o grave problema de estarem cooptados por um partido hegemônico de esquerda, que no caso brasileiro é o PT. Eu não acho que tenhamos no Brasil verdadeiros movimentos sociais. Nós temos verdadeiros movimentos petistas dentro da sociedade. Eu acho isso perigoso, lamentável e muito triste. Toda a possibilidade criativa do movimento social está sufocado. É óbvio que isso é uma visão particular minha, mas eu faço questão de não abrir mão dela, porque eu continuo achando que ela é fundamental. O que aconteceu com o Néstor é que ele abriu mão dessa autonomia para se integrar a Universidade. Do ponto de vista político, ele obviamente se integrou ao PT. O fato que me chocou, quando eu compreendi o que tinha acontecido foi quando apareceu o fenômeno da AIDS, mas que não era AIDS e sim Sarcoma de Kaposi, chamado de “câncer gay”, que estava atacando membros da comunidade LGBT em meados da década de 80. Eu fui alertado por um médico que deu uma entrevista sobre o que estava acontecendo. Eu fui contata-lo quando vi a entrevista no jornal e ele disse: “meu filho, vocês têm que se organizar porque vem vindo uma coisa muito feia por aí e por favor, deixem de lado qualquer possibilidade de culpa, vocês vão estar ajudando a sociedade”. Aí eu resolvi chamar pessoas para pensar o que nós iríamos fazer, porque São Paulo estava na vanguarda dos doentes. A barra pesada começou aqui. Eu fui, entre outras pessoas, falar com o Néstor. Nos falamos a tal ponto que estávamos distanciados. Eu expus a questão a ele, da urgência de tomarmos uma posição e a resposta que Néstor me deu concentra toda a problemática que nós estávamos vivendo naquele momento de cooptação e incompreensão da realidade. Ele me respondeu: “Nós temos problemas muito sérios dentro do grupo SOMOS, estamos discutindo questões internas muito graves para perdemos tempo com as bichas burguesas que pegaram uma doença em Nova Iorque”. Virou as costas e foi embora. O componente de autoritarismo presente nessa resposta e de preconceito de classe ao inverso… Ele achava que era uma doença de classe, quer dizer, chegou até o ponto de achar que a sociedade de classe estava estruturada de acordo com o manualzinho até o ponto de a doença adoecer uma classe e não outra. Do que o Néstor morreu? De AIDS. É uma ironia extraordinariamente dolorosa para a minha nervura espiritual, interior. Eu apalpei naquele momento uma compreensão absurda da realidade até o ponto dele ter sido vítima de sua própria incompreensão. Eu escrevi um ensaio sobre o Néstor, que foi meu amigo querido e que fomos nos afastando. A medida que ele se integrava eu me desintegrava. Esse ensaio foi escrito para um livro que estava sendo elaborado sobre ele. Me pediram um artigo. O meu artigo foi censurado no livro porque eu falava mal do Néstor. Eu não estava interessado em fazer críticas ao Néstor, mas em revelar a personalidade. Eu achava que não era um livro chapa branca. Estavam esperando um elogio chapa branca. Tô fora!

 O brasileiro tem em mãos o Brasil que merece?

 Um é retrato do outro por um lado. Um é resultado do outro. Eu acho que o Brasil sempre tratou boa parte dos seus cidadãos e cidadãs não como uma pátria, mas como uma madastra. Uma pátria-mãe, mas uma pátria madastra. E ele está colhendo os frutos, mas ao mesmo tempo os frutos geram um Brasil altamente problemático, quase impossível de chegar até uma construção histórica aceitável e compreensível como sendo o Brasil. No “Devassos no Paraíso” (1986), uma das epígrafes é de Jomard Muniz de Britto e uma das coisas que ele diz: “O Brasil é nosso Câncer”. Eu acredito profundamente nisso. Não é uma compreensão agradável e nem muito gratificante do Brasil, mas o que eu posso dizer é que o Brasil é um país de exilados em sua própria terra.

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