.Entrevista com Jomard Muniz de Brito

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Entrevista realizada por Aristides Oliveira em 5 de Janeiro de 2017.


Inquérito doméstico cultural: Uma entrevista policialesca com Jomard Muniz de Britto

O agitador cultural Jomard Muniz de Britto completa 80 anos de ações provocativas na cena pernambucano-brasileira. Um dos pensadores mais ativos do Tropicalismo, professor e realizador audiovisual – com mais de 40 filmes em super-8 e vídeo – perseguido pelo regime militar, ele responde ao interrogatório para revelar memórias que o situam no mundo contemporâneo. Vida, morte, prisão, facebook e lembranças filosóficas percorrem este bate papo afetivo, para afirmar e negar tudo isso…


Aristides: O que me inquieta hoje é saber um pouco mais da sua vida pessoal…

JMB: Minha vida pessoal?! Isso não é consultório psicanalítico não! Tá gravando?!

Queria fazer uma regressão… (risos).

Regressão? Você é freudiano ou lacaniano?

O que você quiser!

O que você quiser?

Isso (risos)! A Fabiana [Moraes] acabou despertando esse interesse a partir do que ela já escreveu sobre você.

Ela viu as fotografias! Pergunte o que você quiser.

Vamos fazer uma volta no tempo para você falar um pouco da sua vida afetiva e familiar.

No começo da idade adulta?

Isso.

Eu acho que o pessoal que interessa aos leitores é um pessoal já conjugado com político e o social. Então eu queria lembrar que em 1968 eu já estava aposentado pelo golpe civil-militar em 64. Houve um fenômeno, que é muito brasileiro, brasilírico que eu continuei na Universidade Federal da Paraíba. Eu era bi-universitário: UFPE e UFPB. Lá na Paraíba eu tive um amigo, mais velho do que eu, já falecido, grande escritor, grande comunicador… É o José Rafael de Menezes. Foi ele que me levou para a Universidade Federal da Paraíba. Depois da prisão (setembro de 1964) eu continuei na Paraíba. As pessoas diziam que meu contrato não seria renovado no final do ano… aquelas pessoas que gostam de fazer alardes… Depois outro professor me disse: “Não, você já tem cinco anos de serviço público, porque você antes de ensinar aqui, você ensinou na Escola Normal, que era o Instituto de Educação daqui de Pernambuco. Então isso é serviço público. Então havia uma lei que dizia que não poderia ser demitido. Isso me tranquilizou. E no lado pessoal, eu ficava entre Recife e João Pessoa. Eu digo que fui criado pela vó e pelas tias. Tias e tios… falar em tio, tinha um tio chamado José Amorim Silva em que ele gostava muito de fotografar. Então, essas fotografias que eu dei para a Fabiana foram todas tiradas pelo “Tio Zeca”, como a gente chamava. Ele foi uma pessoa que me estimulou muito pela coisa da imagem. Eu sempre fui muito envolvido porque minha vó materna (porque a família paterna era de João Pessoa – Itabaiana), pela família da minha mãe: Amorim Silva. Então, eu tinha uma vó que a gente chamava de “vovó maroquinhas”, que ela tomava chá todo fim de tarde. Ela sabia tocar piano, ela me convidava: “quer tomar um chá?” e eu não tinha interesse em tomar chá às cinco horas da tarde, em 68/70. Eu acho que morava em Casa Forte, com meus pais e tinha uma tia. Meus pais sempre foram muito valorizadores de ter um filho precocemente professor. Eu comecei a dar aulas adolescente ainda ligada a minha relação com o cineclube Vigilant Cura. Eu assistia as reuniões, pois tinha os cine-fóruns, que eram os debates depois da exibição do filme, mas tinham umas reuniõesmais delimitadas com a diretoria desse cineclube. Umas freiras se interessavam por cinema e iam para essas reuniões, de dez a quinze pessoas no máximo. Era uma reunião para discutir a programação, a história do cinema, a estética. Por conta de existirem duas freiras fãs do cinema, uma delas era do Colégio São José e a outra dos Colégio das Damas Cristãs. Elas me convidaram… isso era o que eu queria colocar… que é mais importante do que saber a coisa familiar, íntima. É a minha iniciação profissional. Eu fui convidado para dar aulas de cinema, não era fazer cinema não! Era como assistir, compreender um filme, sobre a linguagem do cinema e um pouco sobre a história do cinema. Eu dava essas aulas no Colégio São José, diga-se de passagem que nesse colégio já tinha a faculdade de Filosofia, mas nessa faculdade só entrava alunas. Homens só se fossem professores. Então, como eu era professor do Colégio São José eu podia assistir algumas aulas. Eu me lembro de um professor maravilhoso chamado Nilson Sucupira que deu um seminário sobre Henri Bergson. Um seminário de alguns meses, uma vez por semana. A plateia era feminina, mas eu estava lá presente.

Você morou com seus pais até quando?

MEU FILHO! ESSE NEGÓCIO DE “ATÉ QUANDO” É UM ATESTADO DE MORTE! O QUE É ISSO?! Eu sempre morei com eles! Morei na Gervásio Pires, antes de Casa Forte. Depois de Casa Forte eu gosto de dizer que por ser um bairro aristocrático, eu morava numa encruzilhada… numa mediação entre Casa Forte e Casa Amarela. Nas minhas noitadas… meus pais me tratavam muito bem porque eu era professor e escrevia no jornal. Eles acreditavam no que eu não acredito mais! Eu era um jovem intelectual. NEM HOJE EU SOU UM VELHO INTELECTUAL, QUANTO MAIS JOVEM INTELECTUAL NAQUELA ÉPOCA! O meu relacionamento com meus pais era o melhor possível. Minha mãe ajudou a editar alguns livros com dinheiro dela (Escrevivendo, 1975). Ela, sem me comunicar nada, ela falava com um aluno que tinha uma gráfica e ela dava o dinheiro. ISSO TAMBÉM EU ACHO QUE NÃO É INTERESSANTE MOSTRAR ESSAS MIUDEZAS. EU NÃO SEI AONDE NÓS VAMOS CHEGAR, PORQUE ISSO NÃO É PSICANÁISE SELVAGEM, NÃO É PSICANÁLISE DOMÉSTICA, NÃO É FREUD, NÃO É JUNG, É OLIVEIRISMO (risos)! É O NOVO PSICANALISTA, QUE É PSICÓLOGO, PSIQUIATRA E PSICANALISTA AO MESMO TEMPO! Eu estou sendo aqui um im-paciente do Aristides Oliveira que está revelando com essa calma dele, com essa disponibilidade, com essa inteligência perturbadora… ele tem uma tríplice vocação PSI: Psicólogo, Psiquiatra e Psicanalista! Como eu gosto desses PSI’s, eu vou naufragando e ao mesmo tempo invalidando tudo isso porque eu acho que NÃO INTERESSA! Mas se interessa a você, EU FALO! Mas o que é mesmo que você quer? Saber se eu era feliz, ou infeliz?! Eu era tranquilo. Meu pai nunca gostou de comércio, minha mãe teve um bar, restaurante, negócios. Ela era a parte comercial, não tinha tabu. Ela tinha essa vocação comercial que eu não herdei dela infelizmente, por isso estou aqui, sentado, não estou ocupando nenhum cargo no governo. Se eu tivesse alguma vocação monetária desse precoce capitalismo eu não estaria aqui, mas veja só: minha mãe sempre me estimulava. Tinha ORGULHO de ter um filho jovem professor. Ela me acompanhava quando havia lançamentos em João Pessoa. Meu pai, que não gostava de comércio, mas ele trabalhou no Banco Econômico da Bahia (centro de Recife). Você deve querer saber coisas que sua discrição não permite perguntar. Aí vem com esses panos mornos, essa psicanálise “Ô meu Deus…” Olha o Espírito Santo! Isso é uma coisa importante! QUANDO EU NASCI… é importante dizer isso… Eu fui gerado por sete anos. Para minha mãe ter o primeiro filho ela passou sete anos… pensava que não ia engravidar… Então, ela me consagrou, porque diz que quando o menino nasce laçado… ela me consagrou ao Espírito Santo… Meu pai era Caixa do Banco. Ele era uma espécie de secretário particular meu, porque nas folgas dele ou no expediente livre, ele ia procurar livros pra mim nas livrarias, ia colocar correspondência minha no correio. E eu quando ia falar com ele… me apresentava as coleguinhas dele no banco… e uma delas disse uma coisa interessante: “Ah, você não nega que ele é seu pai, que você é filho dele… porque você é bem humorado”. Quer dizer, meu pai que era calado em casa, ele era uma bem humorada e brincava com as colegas dele no Banco. O importante é o hoje e o agora! Esse negócio de memorialismo… vocês vão fazer uma enciclopédia?! Não precisa entrar em miudezas… Faça perguntas mais concretas! Tenha mais coragem para perguntar alguma coisa concreta!

Como sua família reagiu à prisão que você sofreu no regime militar?

Ô MEU DEUS!!! ELES APLAUDIRAM OS MILITARES?! Minha mãe ia lá. Ficava indignada! Ela ia diariamente com uma irmã dela no Forte das Cinco Pontas, mas EU NÃO ESTOU ME ENVAIDECENDO DISSO, PORQUE TEM PESSOAS CRETINAS QUE ACHAM QUE QUANDO EU FALO NISSO, QUE VOCÊ ESTÁ PERGUNTANDO AGORA, EU ESTOU QUERENDO ME AUTO PROMOVER! ISSO É UMA CRETINICE FANTÁSTICA DA PERNAMBUCANIDADE! Eu, nesta prisão, eu fiquei numa mesma cela (uma cela dupla) com Gregório Bezerra e Joel Câmara. Eles tinham posições políticas de esquerda e contrárias. E eles disseram para mim: colocaram nós dois juntos porque eram antagônicos na visão da esquerda deles. ENTÃO ISSO NÃO INTERESSA MAIS A NINGUÉM! PORQUE ESSE PESSOAL CRETINO DA PERNAMBUCANIDADE DIZ QUE EU ESTOU ME AUTOPROMOVENDO QUANDO DIGO QUE FIQUEI QUASE UM MÊS NA COMPANHIA DELES! ENTÃO, ESSE PESSOAL QUE PENSA DESSA MANEIRA VAI PARA AQUELE LUGAR QUE ELES NUNCA DEVIAM TER SAÍDO, QUE É O FUNDO DO POÇO! ACHA QUE TUDO É PROMOÇÃO? MINHA GENTE… UM VALOR QUE O “PALHAÇO DEGOLADO” TEM, QUE VOCÊ DEU TANTO É QUE AS PESSOAS DIZEM PRA MIM QUE EU CONSEGUI ENFRENTAR DOIS GRANDES ÍDOLOS QUE ERAM INTOCÁVEIS E CONTINUAM E EU AQUI CONTINUO BATENDO PALMAS! Gilberto Freyre, o gênio de nossa raça latino-americana! Ariano Suassuna também! Então, quem achar que eu quero me autopromover, culpem o Aristides Oliveira! Vamos, vamos! Porque eu começo falando e depois eu grito! Vamos dar um intervalo lúdico?

Você lembra o mês que foi preso em 64?

Foi em setembro. Teve uma coisa muito curiosa… Estava passando no cinema Arte Palácio (que não existe mais hoje) o filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Direção: Glauber Rocha). Então, uma amiga minha, a Astrogilda (tá gravando tudo já?) foi falar com um coronel desses… ela achava que era através dele que os jovens intelectuais estavam sendo presos… Ela disse pra ele: “Olha, ele tem que sair da prisão porque está passando um filme em que ele é amigo do diretor do filme e domingo é o último dia de exibição desse filme”. Me liberaram por conta desse apelo. E eu saí e fui pra casa e fui ver o filme que ainda não tinha visto. Não é curioso isso? Não é boa essa? Hoje eu estou muito cordial, não estou?(risos)

Documento que declara a aposentaria de Jomard nos anos de chumbo, resultante da perseguição aos intelectuais “subersivos”. (Arquivo JMB)

Fala da tua experiência como professor nos anos de chumbo.

Na década de 70, eu não podia, pelo fato de estar cassado pelo regime civil-militar, ensinar em nenhuma instituição que tivessem verbas do governo! Eu comecei, porque uma grande amiga minha chamada Astrogilda de Carvalho Paes de Andrade esteve nos Estados Unidos fazendo uma especialização e ela me trouxe uma câmera pequeninha de super-8… Como eu não podia ensinar nas instituições, Astrogilda veio falando de Leitura Dinâmica, que era uma moda nos Estados Unidos. E como eu era muito amigo dela, ela me convidou para ser uma espécie de assessor dela. Fui aposentado da UFPE com 27 anos de idade. Com o AI-5 (dezembro de 1968) eu fui impedido de lecionar na Paraíba. A minha formação é em Filosofia e minha pedagogia é influenciada por Paulo Freire. O que é que eu vou ensinar? Então, eu inventei uns cursos de Comunicação e Criatividade. Fui ensinar na Escola Superior de Relações Públicas (ESURP). Uma prima minha, Eleonora Martins, conhecia um dos diretores. Eu disse: “Pergunte se estão precisando de um professor de Comunicação”. Ela falou com o diretor e eu pedi para ela não falar nada de que eu fui aposentado, cassado, que fui subversivo. Ele disse: “Nós estamos precisando de um professor de Fundamentos Científicos da Comunicação, porque o nosso professor está indo para Minas Gerais”. Eu ensinava a noite no curso de Relações Públicas. A essa altura eu morava no bairro das Graças com meus pais. Nessa Escola de Relações Públicas eu procurei o desafio: como, numa sala de aula com no mínimo 60 alunos eu fazia um grande retângulo e procurava dinamizar. Se em 70, eu passei o ano nessa escola é porque eu já estava impedido de ensinar com o AI-5 na Universidade! ISSO NÃO É GLORIA PRA MIM NÃO! NEM É TAMBÉM DANAÇÃO! É UMA CURIOSIDADE PARA ESSE MEMORIALISTAS DE ARAQUE! Você faz a maldade e ainda planeja! Vou pegar esse velhinho e testar a resistência dele! Menos de uma hora de entrevista… Eu me lembro muito que foi nessa época, eu na ESURP, que houve a explosão do super-8. Isso é que interessa. Não tem mais aquela auréola de prisão. Então surgiu um movimento super-8. Era fácil fazer filme super-8, câmera pequena, etc… Nessa época que eu dava aulas a noite na ESURP, eu tinha o dia todo para ler? Não! Eu queria fazer outras coisas! Entre outras coisas surgiu o super-8. Eu comecei a filmar coisas que eu achava interessante na cidade. Pera aí! Vamos dar uma parada agora… Não podemos ficar só na fala. A fala mente, rebusca, enfeita, a fala trai. A escrita é mais perigosa porque você tem que assumir. Tudo era objeto de preocupação… Deixa eu dar um exemplo… E não fazia super-8? Para você exibir o filme super-8 você tem que agradecer ao Deus e o Diabo na Terra do Sol… você ter essa liberdade que você tem hoje! Então para você exibir o filme em qualquer lugar que fosse tinha que ir à Polícia Federal/Secretaria de Segurança para PEDIR AUTORIZAÇÃO! Você tinha autorização para fazer aquela exibição. Se depois de quinze dias, fosse chamado para exibir em outro lugar, tinha que pedir de novo autorização. Aí o que é que aconteceu? Quando eu fui no primeiro dia, uma pessoa me orientou e disse: “Não Jomard, não fique preocupado porque o chefe é uma pessoa muito de fino trato, muito bem educada”. Todo mundo tinha um certo medo da polícia. Então, quando eu chego lá com os filmes para pedir autorização… tinha que levar o filme! Aí quem é que eu encontro lá?! Várias alunas da ESURP que trabalhavam lá! “Professor, o senhor por aqui?!” “Ah, que bom, eu vim aqui pedir para autorizar”. Sabe o que é que eu fiz? Depois dessa aclamação por ex-alunas ou alunos que trabalhavam lá, para conseguir autorização eu mandava meu pai, meu secretário particular para ir lá! Era ele quem ia! “Ah, é o pai do professor Jomard!” Veja como ele era meu secretário, não só para ir na livraria comprar um livro não! Eu pedia para ele ir pedir autorização.

Fala um pouco sobre suas aulas…

Eu me envolvia daquelas ideias paulofreireanas, da necessidade dos círculos de cultura, que eu acho que foi a grande invenção de Paulo Freire. Foi antes de entrar na palavra, na palavração, no letramento propriamente dito. Tinha um debate sobre Natureza e Cultura. Isso mostrava que o Paulo Freire já tinha uma leitura antropológica, porque ainda hoje, quando se discute o meio ambiente ou o inteiro ambiente, a questão chave são as relações entre Natureza e Cultura.

E o que você usava como ferramenta pedagógica?

Projetava slides. Textos, usava música, muito. Olha o “Modernismo à Bossa Nova (1966)… No “Contradições do Homem Brasileiro” (1964) tem todas as minhas citações musicais lá. Em vez dos alunos ficarem numa fila, uma atrás da outra, eu fazia um grande retângulo e fazia pequenos grupos para discutir as coisas, fazer debates.

Como nasceu sua relação com o carnaval de Recife?

Meus pais eram foliões, meus pais gostavam de dançar! Meus pais gostavam das festas. A famosa “Festa da Mocidade” na rua Treze de Maio. Eles iam me levavam pequeninho com eles também. A coisa que me marca muito… Hoje em dia tem uma palavrinha que está na moda: Trans. Trans de transtorno, que eu estou sentindo agora, do que transformação. Então, a coisa do Trans que eu me lembro muito quando garoto era o tempo do lança-perfume. Tinha muito pavor porque tinha gente, criancinha que gostava de botar no olho da pessoa. Minhas tias faziam fantasias pra mim. A minha lembrança mais forte era os homens de verdade fantasiados de mulher grávida! Naquele tempo era uma novidade! O homem, macho, se vestindo de mulher grávida! Teve um carnaval que meus pais foram passar na cidade do papai, seu Babá. Era seu Muniz, mas a gente chamava de seu Babá. O meu avô tinha um armazém grande lá, em Itabaiana. De noite, no clube principal da cidade, tinha uns bares… Acontece que esses bares eram para adultos, mas meus pais me levavam porque eu era tão danadinho que queria ir de qualquer jeito. Era a única criança no meio do baile de adultos. Então isso não era precocidade minha, era a animação dos meus pais, era o contágio dos meus pais.

Qual a importância de Carlos Cordeiro no seu percurso superoitista?

Tudo que eu fiz até agora… o “Palhaço Degolado” só é famoso porque conta do seu livro. Eu quero dizer que eu fui notando que eu filmava muito precariamente, que eu não era um técnico de filmagem… Conhecemos o Carlos Cordeiro… ele trabalhava no DER (Departamento de Estradas e Rodagem). Fizemos uma parceira e ele trabalhava com imagens. Foi uma grande parceria minha… ele está em todos ou quase todos os filmes meus: “Carlos Cordeiro e JMB”. Quero dizer que eu não tenho grande méritos na minha obra. Qual a importância de Carlos Cordeiro no seu percurso superoitista?

Carlos me falou da relação de vocês nas gravações do “Palhaço Degolado” (1977)…

Carlos Cordeiro foi uma pessoa chave, porque o que eu improvisava, ele topava. Eu nunca fui de fazer roteiro… Não me peça opinião sobre meus filmes porque isso é uma cretinice! Não é cretinice sua, seria minha, porque: “olha, o Jomard se auto elogiando!”. Com Carlos Cordeiro, o que é que a gente fazia? Eu fazia uma locação prévia na Casa da Cultura ou Casa de Detenção da Cultura. A gente foi alguns dias lá e descobriu que tinha um amigo meu que estava como diretor da Casa da Cultura, foi João Batista de Queiroz, com quem eu fiz o primeiro filme super 8. Um dia que era fechado, segunda-feira. Então vamos filmar nesse dia que não tem movimento. Tinha movimento mínimo… Essa parceria com Carlos Cordeiro foi fundamental.

E como era seu diálogo com Luci Alcântara no processo de criação de “JMB: o Famigerado”?

É bom que acabe com essa maldição com Luci, porque ela é muito crítica, ela não poupa ninguém, então ela é muito boicotada! Isso é um absurdo! Ela, outro dia disse: “Jomard, estão escrevendo um livro sobre você, mas eu fiz um filme COM você! Olhe que colocação da Luci! Luci foi minha aluna na ESURP na década de 80. Ela é tão independente, tão performática que eu comecei a chamar ela de Luci Lucética. Ela criticava muito… Ela disse que só o Jomard que pode chama-la de Luci Lucética. Então eu quero dizer a vocês, como memorialistas de vocês mesmos, vocês não podem esnobar o filme da Luci. Tem que fazer uma leitura, porque foi um filme que passamos meses fazendo e onde eu não tinha essa irritação que eu tenho hoje… E com a Luci não tive… foi loucura dela mesmo1. O governo vai cortar o que desagradar a eles.

O que gosta de fazer na sua vida noturna?

O que sempre gostei, conversações… Depois de algumas doses de whisky Teacher’s, que é “professor” e é mais barato… eu chamo de conversações analíticas. É isso que a gente está fazendo aqui, com algumas explosões minhas… onde a gente está misturando o real, o simbólico e o imaginário, o famoso RSI, do Lacan. Isso de uma maneira totalmente LIBERTINA! Não é nem libertária, é libertina. Apelando para o inconsciente, mas eu acho que você ainda não fez nenhuma pergunta do seu inconsciente. Você é muito racional. Eu vou para alguns bares… eu não faço farras solitárias. Eu já encontrei pessoas que bebem sozinhas, mas eu sempre sou grupal. A minha geração frequentou muito o bar Savoi, que era na Guararapes, mas fechou a muito tempo. Esse bar era muito aberto que a intelectualidade frequentava e pessoas do povo também. Eu vou a bares onde a gente possa conversar, chamar os garçons pelo próprio nome deles. O Mustang foi um grande bar que as esquerdas pressionadas e aprisionadas, ou ex-aprisionadas, ex-prisioneiras, liberticidas frequentavam, na Boa Vista. No dia de domingo de tarde eu vou a pé até o Recife antigo…

Você falou que sua vida noturna é grupal, você gosta de sair com os amigos nas suas conversações, mas você vive só…

Às vezes o grupal pode ser uma pessoa só… NUNCA CASEI NEM QUIS CASAR! Tive várias amigas, muito amigas e algumas pensavam até que eu poderia cometer esse ato do casamento, mas eu escapei.

Por quê?

Porque eu quis ser só! Agora, as mulheres tiveram uma grande influência em mim, na minha vida! Eu não penso em mulher apenas como sexualidade. Afetividade, sobretudo, a pop filosofia. As mulheres são pop filosofantes. Elas têm uma capacidade de mutação muito maior que a dos homens. Elas, para se vestir, roupa, cabelo, maquiagem, elas têm uma versatilidade. Eu tive duas pessoas que me influenciaram muito. Uma se chama Maria do Carmo Vieira, já falecida, que era conhecida como “Du”. Ela trabalhava na SUDENE, no setor de biblioteconomia… ela fez curso de Filosofia. Ela nos animava e motivava muito, porque ela já tinha lido muito, mais velha do que a gente… uns dez anos, no máximo… “Du” terminou sendo mais famosa como psicanalista. Ela morava no exterior…

Uma influência intelectual…

Intelectual e humana! Você ainda separa o intelectual do humano, do afetivo! Eu nunca separei, meu filho. Por favor, não confundo, não me confunda com esses intelectuais famosos, que dizem que quando escrevem um poema e o poema está definitivo, eles não mudam nenhuma linha, nenhuma vírgula… Eu mudo tudo. Esse meu sentido do trânsito, transe… eu acho que tudo é mutante, é mutável. Com “Du” eu aprendi essa postura filosófica, que não se usava essa expressão “pop filosofia”, mas era uma filosofia corpórea. A corporificação, a corporalidade, a vivência da filosofia. E porque “Du”? Ela me apresentou ao que eu considero o guru da minha geração, da nossa geração: padre Daniel Lima, já falecido. Daniel era um poeta.

Eu queria fechar essa questão afetividade… fale um pouco da Tia Lucila.

Era meu xodó. Com ela, eu aprendi a dar presentes. Essa história que vou falar eu não me lembro, mas era a família que contava… Teve um determinado momento que meu avô Luís (meu avô era muito sério, a avó era muito tranquila, tomava o chazinho dela, tocava piano…), ele resolveu levar as filhas todas de navio para conhecer o Rio de Janeiro. Aquele deslumbramento… viajar de navio… Quando voltaram, minha tia Lucila, com uma mala de presentes pra mim, para os outros irmãos tinha um presente pra cada um… Pra mim foram muitos presentes! Até uma analista que veio me dizer que dar presentes é sentimento de culpa! Eu achei engraçado! (risos) Ela costurava muito bem. Minhas tias tinham habilidades. Uma delas tinha um curso de corte-costura, livro. E a Lucila era quem fazia as minhas camisas.

Suas roupas, que são personalizadas também têm influência dela?

É. Isso eu acho que foi influência do Tropicalismo. As fantasias do cotidiano. Eu telefonei para Arion e disse: “Eu gosto tanto do Aristides, mas ainda eu dou uns bailes nele”. (risos) O Arion conhece essas coisas minhas de gritar às vezes. Tem um farmacêutico, é o Candeia… Ele diz: “Jomard, quando você grita comigo eu fico com distonia” e mostra as mãos dele suando…

Como você compreende a solidão?

Esse tema persegue todo mundo que pensa na vida. A grande solidão é agora.

Você tem cuidado da saúde?

Todo ano eu faço check-up. Esse ano meu check-up está sendo com você! Um check-up mental! (risos) Eu criei o hábito das caminhadas e durante muito tempo eu ia caminhar no Treze de Maio pela manhã. Tomava café e ia caminhar… Ultimamente eu fiz uma opção de caminhar de tarde, no entardecer, a partir das 16h. Agora eu faço minha caminhada pelo centro do Recife. Eu atravesso as pontes. Eu aprendi com um jovem que atravessar pontes… as pontes significam a ligação entre o moderno e o pós-moderno!

Bordel seria uma edição comemorativa do Tropicalismo?

Não especialmente… porque o Tropicalismo é o avesso da tropicologia de Gilberto Freyre. E ainda continua sendo renitente tropicalista. A leitura do Brasil, da cultura brasileira, fora de alguns cânones gilbertianos e outros. Antes do Bordel, a grande homenagem ao Tropicalismo é com “Terceira Aquarela do Brasil” (1982). Pela capa você já sente. Até Lula está na capa. Esse livro é mais tropicalista que o Bordel, que fala em Godard, que fala em Glauber. O Bordel é a antropologia ficcional…tem uma ligação, que na época, eu li alguma coisa de João Silvério Trevisan, que ele falava nisso. É interessante porque a orelha do livro é do Geneton Moraes Neto. O copyright é meu e de minha irmã, Célia Muniz Machado Cavalcante2.

Capa do Livro “Bordel, Brasilírico Bordel”, de 1992

Nesse livro você escreve o Abecedário de Teresina. Como foi sua relação com a cidade nesse período?

Um grande amigo meu, chamado professor Severino Lucena Filho foi meu aluno na ESURP (Escola Superior de Relações Públicas) e fez concurso para a Universidade do Piauí (UFPI) e passou. Ele me levou duas ou três vezes pra lá para fazer palestras (começo dos anos 90). É claro que eu indo para Teresina eu tive que ler tudo sobre a poesia de Torquato Neto. Eu achei a cidade muito bonita e era uma cidade traumática pra mim, porque é uma cidade muito calorosa, muito calor. Todo lugar que você entrava era gelado! Aí saia… o calor! Isso é qualquer desafio para um organismo normal (risos). Uma cidade muito ecológica. Levamos a I Exposição Iconográfica do Tropicalismo, para os alunos de Comunicação Social da UFPI. Todo lugar que eu ensinava eu estimulava os alunos a não só escreverem, mas a projetarem coisas visuais. Fazia isso com os alunos daqui (Recife) e da Paraíba e fui levando a exposição “Tempos Espaços Abismos”… Houve repercussão, sobretudo em João Pessoa. A imprensa de lá valorizava muito. Era um desejo eu de fazer um diálogo com os alunos. E através dos alunos, com alguns artistas que estavam dentro do campo da experimentação. A palavra-chave para tudo isso não era o experimental (concreto ou não concreto, ou neo-concreto)… Era o experimental no sentido mais amplo, onde entrava o super-8, onde entrava as performances. Uma pessoa que você tem que lembrar… ele quem fez os cartazes todos, foi o Vavá Paulino. Ele foi meu aluno aqui na Universidade. Ficamos muito amigos. Atualmente ele está na cidade dele, que é Floresta do Navio (PE). Ele era performático. Quando foi meu aluno ele fazia o curso de Teatro. Tinha um projeto aqui chamado “Pernambucanidade”, que era do Marcílio Lisboa. Ele fazia na televisão e ele me convidava sempre para ter uma participação nesse projeto. E o Vavá participava. Então nós fazíamos umas performances em conjunto, na década de 90.

Capa do Livro “Atentados Poéticos”, de 2002

Me fala sobre o projeto “Atentados Poéticos”.

2002. O editor das Edições Bagaço, Arnaldo Afonso me convidou… porque eu estava algum tempo sem lançar livro e ele queria fazer um livro meu na Bagaço. Então eu fui trabalhar nesse projeto… Mas depois da repercussão do livro eu comecei a divulgar pela internet uma vez por mês. Eu tenho uma lista de 400 nomes e a Heliane (minha aluna na ESURP) é a pessoa que manda os e-mails. Os Atentados é o que eu penso, a minha produção literária, digamos assim… escritural naquele momento. E ainda hoje eu vivo os textos.

Você nunca teve interrupção nos seus Atentados mensais?

Não. Tem um amontoado deles lá dentro.

Seria uma atualização do seu pensamento?

É. Uma crítica.

Teve uma época que o jornal do comércio me convidou para ter uma coluna semanal, no dia de domingo. Isso só durou quatro meses. Tinham pessoas que gostavam e outras que não entendiam. Depois disseram que iam fazer uma reforma no jornal… Então, inspirado nisso… nessa cassação que eu tive no Jornal do Commercio, aí eu comecei a fazer os Atentados e assumir como um texto.

Você não tem whatsapp?

Não, Não! Nada disso! Quando me falam, as pessoas entusiasmadas com o facebook… nada disso me interessa… É A SOLIDÃO! Não me interessa por causa do meu culto à solidão (risos). As pessoas querem muita comunicação… Eu perderia muito tempo… Tenho tanta coisa pra ler, que eu gosto, que me dar prazer. Nada contra, eu gosto que as pessoas tenham.

Você tem ideia para publicar algum livro novo, algum material?

Não, só essas memórias já me deixam aflitos.

Se, para você, o memorialismo é um certo narcisismo, porque você aceitou ser biografado?

Não aceitar seria uma estupidez. Primeiro: porque eu não tenho muito acesso aos meios de comunicação. Eu não sou aqueles escritores que tem muita ligação com os jornalistas, e que dão muitas informações. Então, eu fico muito na minha… Na verdade, eu continuo sendo um professor, ao meu modo. Se vocês desistirem, eu não vou ficar lamentando não.

Chegar aos 80 anos…

É UMA DESGRAÇA PORQUE A VELHICE CHEGOU! (risos) A velhice é uma desgraça. Você tem que ter senso de humor para enfrentar os 80 anos. Pela sua entrevista hoje, eu acho que isso é um divã transanalítico, é um divã psicanalítico, sem ser divã. Você é mais investigador. Vamos ver o que sairá… Estou gostando e estou sofrendo também (risos). Estou padecendo, mas isso é a vida.

Você tem medo da morte?

A morte tem medo de mim.

Por quê?
Pergunte a ela (risos). É o seguinte: a minha família, sempre meus pais tiveram uma longa vida… Eu tenho medo de mortes que seja fruto de uma doença que a pessoa tenha e vá sofrer… Mas a morte… eu acredito que a vida continua na memória dos outros. A morte não me atormenta, nem me alegra, nem me fascina. Tem pessoas que gostam de curtir o tema da morte. Eu não me interesso.

Como você encara as perdas, as ausências?

Sobretudo, uma irmã minha, que é uma espécie de alma minha… quando ela faleceu (ela teve um câncer que durou algum tempo) e eu sofri muito com isso. Essas perdas são terríveis, mas algumas, por idade, não. A angústia é, para quem vive com o mínimo de decência intelectual e afetiva, é algo que faz parte da nossa existência. Não é a angústia para dramatizar nem teatralizar, é a angústia como insatisfação, com a melancolia. É como você trabalhar com as PSIs. Essas sessões aqui foram de PSI, porque mistura a psicologia com a psicanálise e com a psiquiatria. Você tão jovem e ao mesmo tempo fazendo tudo isso.

Qual verdade você gostaria que fosse mentira em sua vida?

Esse jogo da amizade. Que você é amigo de várias pessoas, você sente que há uma reciprocidade e de repente, mesmo você tendo convivido com a pessoa durante décadas, surgem os estranhamentos. Isso é uma coisa que me constrange, mas quando eu não me sinto culpado: “O que foi que eu fiz?” Nem vou procurar ir atrás porque você se contrariou comigo. Eu nem sei o motivo, isso é irrelevante. Então, eu gosto de curtir, mas ao mesmo tempo eu sinto como… há uma coisa precária nas relações de amizade. Eu cultivo muito as amizades. A precariedade. Porque o ego das pessoas é muito bem cuidado… As pessoas dão muito valor ao seu ego. Vivem na sua subjetividade. E você não sabe até que ponto uma opinião sua pode contrariar… A precariedade das amizades está muito nisso… Pessoas que você considera de total confiança, pelo tempo de amizade, pela convivência, de repente há um estranhamento: “mas o que foi que houve?” Eu não vou enlouquecer com isso não. Eu tenho vários amigos… aí eu passo pra outros… Não vou ficar querendo ser o “bonzinho” da história não. Eu sou famigerado. Há uma constância na nossa cultura, não só pernambucana, mas brasileira dos autores se autoconsagrarem. Os autores são muito felizes com sua condição autoral. E eu relativizo muito isso. Se alguém perguntar: “O senhor é poeta?”, “Não, eu gosto de poesia”. “Você é um filósofo?”, “Não, eu gosto de Filosofia”.

Fechamos a nossa sessão!

Vou me arrumar pra gente sair.
Vamos lá, vamos dar uma volta…

Seus pais são vivos, os dois?

Só minha mãe…
Diga a ela que ela continua de muitos parabéns, que ela lhe educou muito bem.

SETEMBRO de Incertezas
Jomard Muniz de Britto (ainda JMB)

Não se trata de mais ou menos.
Nem do mínimo ao máximo.
Agora é tempo de reler o que nosso
BR nunca pensou em deflagrar.
Mais de trinta países questionam
a violência contra as populações
indígenas. E seguimos ignorando.
Nada será como antes no território
dos pensamentos em transe.
Que leitores somos nós?
Pensamos antes e além das buscas
e apreensões de PROPINAS.
E continuamos antigos figurantes.
Apesar de toda beleza
ARCOVERDEsejante.
Outras hipóteses.
Envolvidos por outros e novos
setembros, outubros, novembros…
Sertões e cidades transbordando
mitos em perplexas cidadanias.
Entre invernos e belos veraneios
para escritores comprometidos.
Continuamos preguiçosos.
Ou sempre em transe e tragédias.
Gil continua a engendrar rouxinóis?
Mas o FORRÓ LUNAR de Alceu
valenciando BRASILÍRICO.
Onde foi disparar a língua dos três
PPP, paisagens periclitantes?
Mas Isadora Melo sabe inovar além
dos sons, gestos e muito amor.
Continuemos na escuta permanente
para enfrentar cruéis temeridades.
Sem temor ou terror. Sem tramoias.
Não se trata de mais, de meses,
da melhor cantoria de Chico César
reinventando a UFPB!
Setembro poderia ainda ser mais:
sutil, sagaz, sinuoso, saliente,
sofredor sem a banalidade das
sofrências bem remuneradas.

— — a[email protected] Recife, setembro de 2017.

Para conhecer a obra de Jomard acesse:
www.plataformajmb.com

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