.Entrevista com SERGIO COHN

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Sergio Cohn nasceu em São Paulo em 16 de abril de 1974, e mora no Rio de Janeiro desde 2000. Em 1994, criou a revista de poesia Azougue, que se tornou uma editora em 2001. É autor de quatro livros de poesia: “Lábio dos afogados” (1999), “Horizonte de eventos” (2002), “O sonhador insone” (2006) e “Poemas atuais” (2012), reunidos no volume “O sonhador insone – poemas 1994-2012”.
Organizou os livros “Nuvem Cigana – poesia e delírio no Rio dos anos 70” (2007), “Cultura Digital.br” (com Rodrigo Savazoni, 2009), “Produção Cultural no Brasil (4 volumes, 2010), “Revistas de invenção – revistas de cultura no Brasil do modernismo ao século XXI” (2011), “Roberto Piva” (Coleção Ciranda da Poesia, 2012), “Poesia.br” (10 volumes, 2013), além de volumes de Jorge Mautner, Hélio Oiticica, Flávio de Carvalho, Vinicius de Moraes, Gary Snyder, Michael McClure, entre outros.

Ele é um dos artistas mais corajosos do país. Como editor e poeta, fez um pacto com a cultura e, há muitos anos, trata essa relação com uma responsabilidade original. Ele não é tão reconhecido como, de fato, merece. Mas isso mudará daqui a pouco, é claro. Esta entrevista foi feita pelos poetas Demetrios Galvão e Thiago E neste começo de 2013.

Sergio, como foi teu início escrevendo poemas e o que te fez trilhar um caminho de editor na Azougue?

A poesia se aproximou de mim pela música. Rapidamente, já no início da minha adolescência, eu fui percebendo que o que me atraía nos grupos que eu ouvia – Velvet Underground, The Doors, Jesus & Mary Chain, Echo & The Bunnymen, Television – não era apenas a música, mas as letras, o jeito mágico com que as palavras estavam arranjadas. Mais do que riffs de guitarra, sonhava com versos como “better to paint my hate on the walls before the pictures goes” ou “I spoke to a man / down at the tracks/ I asked him how he don’t go mad / He said “Look here junior, don’t you be so happy / and for Heaven’s sake, don’t you be so sad.” Mas, infelizmente, eu não encontrava a mesma força existencial nos poemas que lia – o que eu tinha em mãos então era Drummond, Bandeira, Cabral, em edições que tentavam normalizá-los e tirar deles o seu potencial transgressor. A estrela da manhã ainda era abstrata demais para mim. Se caísse na minha mão o Bandeira de “ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados”, talvez a minha cabeça tivesse dado voltas…

Então, a poesia para mim não parecia um caminho possível. Pensava em fazer cinema, mas não prestei o vestibular porque achei que não conseguiria passar – era um péssimo aluno, costumava ir para as aulas sem levar nem sequer caneta ou papel. Assim, estava meio perdido, sem perspectiva do que fazer, quando caiu na minha mão, sem querer, um poema do Roberto Piva, do Paranóia. Isso foi logo após eu ter me formado na escola. Tudo o que eu estava programando fazer era viajar de carona pelo Brasil, dar um tempo para pensar. Mas aquele poema mexeu comigo: pela primeira vez, encontrei um poema que possuía a mesma intensidade das músicas que eu ouvia, e ainda era em português e falava da minha cidade. Eu fiquei totalmente tomado, e decidi que sim, a poesia era uma linguagem possível. A minha linguagem.

Quando voltei da viagem de carona, passei tardes inteiras na Biblioteca Mário de Andrade, lendo os poetas que o Piva citava em seus livros: Jorge de Lima, Murilo Mendes, Raul Bopp, Oswald de Andrade. E então passei para os poetas marginais, e comecei toda uma leitura da poesia brasileira. Na época, quase nada estava acessível nas livrarias, e comecei a ter vontade de dividir isso com as pessoas: era uma descoberta tão maravilhosa, e ninguém conhecia! Ao mesmo tempo, estava escrevendo, e não tinha ainda onde publicar a minha poesia – não eram poemas suficientes para um livro, e não havia revistas de poesia circulando. Na falta de espaços já existentes, decidi criar o próprio, e comecei a sonhar em fazer uma revista.

Foi assim que nasceu a revista Azougue, em 1994, com a intenção de mostrar aos nossos companheiros de geração a poesia que a gente estava lendo, do Piva, do Claudio Willer, do Afonso Henriques Neto, entre outros, e também de divulgar a nossa própria poesia. E, se quase 20 anos depois continuo editando, é porque descobri que é realmente esse trabalho que me move.

Tua poesia tem um ingrediente lisérgico e uma forma enxuta, concisa. Apresenta imagens fortes, mas não se lança em grandes sopros de frases longas, por exemplo. Como pensa o trabalho da linguagem em teus textos?

De certa forma, o que pode ser visto por alguns como qualidade é também uma prisão. O meu ritmo, a minha respiração, é bastante conciso. Não consegui, até hoje, transcendêlo. Essa concisão tem sido bastante elogiada pelos críticos e leitores, mas mais do que uma escolha tem ocorrido naturalmente: os poemas vão nascendo assim. Sempre que tento versos longos, eles se dilapidam em versos curtos antes de chegarem ao papel.

Penso que o fazer poético é também saber se reinventar. Reinventar sua voz, sua respiração, seu corpo. Então, gostaria de trabalhar futuramente com diferentes ritmos e dicções, com diferentes faturas poéticas. Gostaria, também, de extrapolar os fonemas, explorar outras formas de linguagens, como fizeram Antonin Artaud e Michael McClure. Mas são exercícios bastante radicais, e que precisam, para se tornar poesia, extrapolar o mero trabalho interno de reinvenção para virar uma expressão e um convite para o diálogo.

Os teus livros se apresentam com títulos articulados com duas pontas: Lábio dos Afogados; Horizonte de Eventos; Sonhador Insone. O que se esconde sob esses títulos? E por que fazer uma compilação de todo o seu trabalho poético tão cedo?

O poeta Armando Freitas Filho, em um texto importante sobre a poesia dos anos 1970, chamou Afonso Henriques Neto e Roberto Piva de “poetas imagéticos à beira do abismo”. Afonso e Piva são os meus grandes mestres, e é essa tradição imagética e delirante que ressoa nos títulos dos meus livros. O que não impede que a minha dicção poética seja absolutamente diversa da deles. O que, aliás, foi ressaltado de forma elogiosa por Piva quando ele leu meus poemas – ele sempre desgostou dos poetas mais jovens que tentavam repetir a sua voz.

Horizonte de eventos é um caso a parte. É um termo astronômico. Segundo o poeta e astrônomo Fernando Py, um “lugar geométrico dos pontos do espaço-tempo onde, segundo um observador distante, o tempo parece estar parado, como, por exemplo, a superfície que envolve um buraco negro. Esta superfície limita uma região no espaço da qual nenhuma matéria pode escapar e de onde nenhum sinal pode ser recebido por um observador externo. Os corpos no interior do horizonte de eventos não desaparecem temporariamente, mas de modo definitivo”.

Sobre a compilação dos meus livros, publicada em 2012, com o título de “O sonhador insone – poesia 1994-2012”: eu sempre estranhei compilações publicadas cedo, e até recriminei amigos que fizeram isso. Até que um deles me deu a justificativa exata para isso, e me convenceu do contrário: em primeiro lugar, os livros de poesia circulam de forma absolutamente marginal, então é muito difícil que algum leitor tenha acesso aos livros que publicamos anteriormente. Assim, se você quiser que alguém compreenda o seu percurso como poeta, é necessário publicar uma compilação. Em segundo lugar, entra o fator econômico. A diferença de custo entre publicar uma compilação de todos os seus livros ou apenas o livro inédito contido no volume é irrisória, em torno de 30% de acréscimo no custo gráfico. Assim, acaba fazendo sentido publicar uma compilação, o que permite a circulação por um público mais amplo de livros que muitas vezes não estão mais acessíveis.

Editar uma revista literária independente e duradora, sem apoio financeiro, passando por mudanças no corpo editorial, com pausas eventuais, sem uma distribuição ideal, e sem ter um público consumidor presente que sustente a revista. Qual a fórmula da vida longa da Azougue? E quais as estratégias pra expandir a editora? Publicando cada vez mais?

Amor. A única fórmula para manter uma revista literária no Brasil é amar o que você faz. E saber reinventar a revista, de acordo com as necessidades do momento. Ou seja, não se aprisionar a formas já consolidadas, estar aberto a novos desafios. Como foi o caso dos quatro volumes de entrevistas que fizemos sobre eixos temáticos (saque/dádiva, nomadismo/habitar, traição/vínculo, invenção/ experiência), onde fugimos da poesia propriamente dita para tentar descobrir o sentido dela no mundo de hoje, a partir de diálogos com pessoas de diversas áreas da cultura e do conhecimento. E assim sempre será: a revista Azougue terá um novo número sempre que esse parecer necessário, quando houver uma questão a ser abordada pela revista. Nesse sentido, assumir o precário como potência. Se não há a possibilidade de periodicidade e de trabalho contínuo, que seja um trabalho feito apenas quando houver prazer e inquietação.

Já a editora, estou assumindo o mote do Stuart Mills: “uma hora, é preciso parar de crescer e ser feliz”. Uma das piores armadilhas do mercado editorial é exatamente a demanda de crescimento. De repente, você se descobre com obrigações que não são as suas, e que o impedem de fazer os seus projetos verdadeiros. É importante estar atento e forte. Ao invés de crescer o número de publicações, agora quero diminuir. Editar só o que realmente importa. Atualmente, quem quiser publicar, publica. Não preciso mais que me preocupar que, se eu recusar um original, ele ficará perdido numa gaveta. Então, posso me concentrar nos projetos que são realmente da Azougue, para fazer bem feito.

E o binômio poetadministrador? Como é escrever, traduzir, editar, administrar a editora? Explica o funcionamento dessa relação artística (fruição), com tocar uma editora (racionalização)?

A cultura do Brasil sempre precisou de amadores, no melhor sentido da palavra. Atualmente, está em voga o termo “economia da cultura”, embora pouca gente saiba dizer exatamente o que seja isso. E a nossa cultura possui um mercado muito frágil, que não permite a sustentação de empreendimentos culturais consistentes em longo prazo. Então, se existe uma economia da cultura, o Brasil ainda está engatinhando nela. Assim, se não aparecerem de tempos em tempos alguns apaixonados, que toquem esses projetos contra todas as possibilidades reais, a cultura brasileira simplesmente parará de circular.

Digo isso porque acredito que estou muito mais na fruição do que na racionalização. Virei um empresário da cultura por acaso – ou fazia isso, ou não conseguiria tocar os projetos para frente. Mas não havia em mim nem a ambição nem a preparação para ser um administrador de empresas, e a Azougue se ressente disso até hoje. Assim como grande parte dos melhores projetos culturais que acontecem no Brasil. Vejo o paralelo na minha trajetória com a de muitos dos “agitadores culturais” que fazem o mundo continuar girando, contra tudo e contra todos. Espero, na verdade, que seja melhor poeta do que administrador. Porque sou um péssimo administrador, que só consegue seguir adiante com muita perseverança e murros em ponta de faca, resolvendo os problemas assim que eles aparecem.

Na verdade, não tenho nenhum olhar romântico sobre isso. Acredito que o Brasil merece um cenário cultural mais consistente, onde empresas de cultura possam existir e se sustentar através de seus produtos. Mas isso só ocorrerá com a maturação de um público consumidor de cultura, o que está cada vez mais longe de ocorrer. As leis de incentivo não visam a criação de um público, e as novas tecnologias estimulam a fruição do produto cultural sem a remuneração das pessoas que trabalham pela qualificação desse produto. Então, a tendência é que cada vez mais o Brasil dependa dos “loucos necessários”, como dizia o saudoso Carlão Reichenbach, para fazer a cultura circular e se renovar.

Com a experiência adquirida ao longo do tempo, qual é o papel das revistas para o cenário literário?

As revistas cumprem um papel fundamental para memória e renovação da literatura brasileira.
Sempre tiveram essa função. É importante pensar que foram nas páginas de revistas e periódicos literários que saíram textos fundamentais da nossa cultura, como o “Manifesto antropofágico”, de Oswald de Andrade, e o “Experimentar o experimental”, do Hélio Oiticica. A agilidade das revistas possibilita que se experimente com mais liberdade, e também que se abra espaço para autores ainda iniciantes. Assim, é um espaço privilegiado para o novo. Mas também é um espaço de retomada de autores, de revalorização da literatura brasileira.

Agora, para tudo isso acontecer, é preciso que se criem revistas corajosas. O Brasil é um país curioso. Nele, inventa-se um prêmio de cultura, e premia-se uma celebridade que se acredita que irá valorizar o prêmio, ao invés do prêmio ser um valor em si. O mesmo acontece com as revistas: muitas querem estampar na capa o mesmo autor de sempre, que possa valorizar a sua marca, ao invés de buscar o novo ou repensar o meio. E assim acaba perdendo a sua potencialidade de intervenção na cultura.

A Azougue talvez seja a editora mais corajosa do Brasil, ao encarar o desafio de traduzir, compilar e publicar os escritores beats no país, ao organizar e publicar poetas pouco conhecidos do grande público e, ao mesmo tempo, jovens escritores. Além de trabalhar com os poetas e grupos performáticos da década de 1970, como a Nuvem Cigana; ou de grupos mais novos, como o CEP 20.000; ter publicado a obra completa de Jorge Mautner numa caixa luxuosa! Fala sobre o papel da Azougue no contexto editorial brasileiro.


A Azougue possui um lema: mais que uma editora, um pacto com a cultura. E esse lema é levado a sério. O projeto da Azougue, desde a sua criação, em 2001, foi de intervir na cultura brasileira, refletir sobre ela, fazer um trabalho consistente de retomada de autores e diálogo com a nova geração. É um trabalho árduo, mas que traz frutos. E que acredito que ganha novo sentido no atual contexto editorial, com o surgimento das novas tecnologias.

Explico: atualmente, a função do editor tem sido muito atacada. Ele tem sido visto como um mero intermediário que não agrega valor, apenas custos. Com as novas tecnologias que permitem a auto-publicação, através de livros digitais ou sob demanda, esse discurso fica muito fácil. E é também alimentado por todos aqueles que consideram a pirataria e o compartilhamento de arquivos a solução para a cultura no século XXI. Não sou contra o compartilhamento, muito pelo contrário. Mas as coisas não são assim tão fáceis.

O editor exerce funções de qualificação de um produto, quando é um profissional sério. A leitura crítica de um livro, a preparação de um original, é algo que possui valor inegável. Muitos dos livros lançados em auto-publicação sofrem desse problema: não são apenas questões de erros de revisão, que poderiam ser relegados. São textos que poderiam ser suprimidos, em caso de poesia, erros de organização, falta de coerência ou erros de continuidade, quando prosa. E estamos falando de literatura, onde a questão é mais fácil: é só o autor ter um arquivo próprio, que pode fazer o livro.

Mas o trabalho que a Azougue faz, de pesquisa e organização, de trazer a público documentos importantes sobre a cultura brasileira e criar um debate e uma reflexão sobre eles, é insubstituível. Sem um editor que concentre forças para isso, raramente aconteceria uma coleção como a Encontros, por exemplo, que traz entrevistas reunidas de autores que vão de Gilberto Freyre a Darcy Ribeiro, de Carlos Drummond de Andrade a Roberto Piva, de Milton Santos a Clarice Lispector, de Nise da Silveira a Zé Celso Martinez Correa. Um panorama aberto e diverso sobre a cultura brasileira.

Então, acredito que o editor hoje não pode ser apenas um “publicador”. Ele precisa ser um agregador de pessoas e conteúdos, um mediador de diálogos com a sociedade. Só assim ele poderá sobreviver ao período turbulento que estamos entrando, onde o seu papel frente à sociedade será posto em cheque muitas vezes.

É impressionante o painel de 100 revistas brasileiras, montado no livro Revistas de Invenção, em um recorte que vai de 1922 ao contemporâneo. Quanto tempo levou fazendo esse trabalho e qual foi o percurso da pesquisa?

O livro “Revistas de Invenção” foi extremamente prazeroso de fazer, mas foi um empreendimento gigantesco. Encontrar essas revistas demandou mais de dois anos de pesquisa, sem recursos para isso. O livro foi concebido dentro de um programa do Ministério da Cultura, o Programa Cultura e Pensamento, que sofreu descontinuidade com a mudança ministerial ocorrida com a troca de governo, em 2011. O que foi uma pena, porque o projeto inicial era que além do livro haveria um portal de internet, onde as revistas contidas na publicação seriam digitalizadas e disponibilizadas gratuitamente.

Pesquisar sobre as revistas de cultura mostra a precariedade do nosso meio cultural. Muitas delas não estão no acervo da Biblioteca Nacional nem de outras instituições importantes. E, quando estão, conseguir a reprodução é muito difícil. O caminho mais fácil que encontrei foi elaborar o meu próprio acervo de revistas, através de uma extensa e lenta pesquisa em sebos. Hoje, possuo um grande acervo de revistas raras de cultura. Foi um investimento que tive que fazer com recursos próprios, já que não havia dinheiro no projeto para isso. E com isso descobri o quanto importante seria a retomada dessas publicações: existem em suas páginas documentos preciosos sobre a cultura brasileira, que precisam ser trazidos a público.

O livro foi feito com uma dupla intenção: é preciso chamar a atenção para a importância de se criar uma memória das revistas culturais no Brasil, e também para a importância de se criarem políticas públicas que possibilitem o surgimento e a sobrevivência de novas publicações culturais. Porque elas são espaços fundamentais de debate e renovação, e precisam entrar na agenda dos gestores públicos que elaboram as políticas de fomento à cultura.

É visível que belos e importantes livros do selo Azougue levam as marcas de projetos de incentivo à cultura. Qual a tua opinião sobre os editais que patrocinam a literatura, voltados para o campo das publicações?


Na verdade, a Azougue possui comparativamente poucos projetos que utilizaram recursos de leis de incentivo ou editais públicos ou privados. Foram menos de 10, em um catálogo de mais de 150 títulos. E muitos deles, como o “Revistas de Invenção”, o “Cultura Digital.br” e o “Produção Cultural no Brasil”, possuem as logomarcas oficiais não porque foram patrocinados por leis de incentivo, mas porque tiveram patrocínio direto do Ministério da Cultura, na gestão do Juca Ferreira, num momento em que o Governo Federal estava muito aberto ao debate com a sociedade. Infelizmente, as leis de incentivo não são favoráveis ao tipo de trabalho que a Azougue faz. De um lado, é difícil de captar. De outro, o nosso trabalho exige agilidade e desburocratização, tudo o que o incentivo não permite. Assim, sempre que podemos, evitamos a Lei.

Alguns casos são simbólicos para isso: por exemplo, a Coleção Encontros, que reúne entrevistas de grandes artistas e pensadores brasileiros. A Azougue é uma editora pequena, o projeto é interessante, e normalmente conseguimos a autorização de reprodução das entrevistas sem ônus. São em torno de 12 entrevistas por volume. Se houvesse um patrocinador, com logotipo na capa, ninguém autorizaria dessa forma. Os custos se tornariam proibitivos. E além do mais, algumas vezes estamos lidando com entrevistas muito antigas, de veículos que não existem mais, de entrevistadores que sumiram no mapa ou que não existem os créditos. Então, temos que seguir em frente assumindo o risco de um “direito reservado”. Ou seja, se o detentor dos direitos daquela entrevista nos procurar, negociamos com ele e explicamos que não conseguimos acessá-lo. Mas nenhum projeto patrocinado poderia correr esse risco.

Estamos com quase 50 volumes da coleção Encontros, em pouco mais de cinco anos. Se o projeto fosse patrocinado, possivelmente ainda estaríamos fazendo os primeiros. Assim, para fazer cultura no Brasil, muitas vezes é preciso assumir os riscos, não apenas financeiros. E o hábito que está se criando das pessoas só trabalharem com recursos garantidos, e todos os entraves burocráticos que isso demanda, pode realmente prejudicar a cultura em médio prazo.

As entrevistas-depoimentos são uma marca da Revista Azougue – posteriormente, reforçadas pelo trabalho da Azougue Editorial, como por exemplo nos livros Azougue 10 Anos, na Coleção Encontros, e no livro Os Dentes da Memória, das autoras Camila Hungria e Renata D’Elia, composto integralmente de entrevistas com Piva, Willer, Bicelli e Franceschi. O trabalho da Azougue vem possibilitando ao público leitor ficar mais perto de seus escritores preferidos, principalmente os que ficaram à margem e foram silenciados pelas estratégias de mercado…

Entrevistas, depoimentos e palestras são muito valorizados no exterior, mas não no Brasil. Não há um grande nome nos EUA ou na França, por exemplo, que não tenha publicado um livro reunindo suas principais entrevistas. Aqui, até a criação da Coleção Encontros, pela Azougue, eram raríssimos os casos. Já pensei muito sobre isso, e a minha teoria é que num país de analfabetos, e também num país cartorial, existe ainda muita desconfiança com a oralidade. O Brasil é um país que respeita muito mais a palavra escrita, que é para poucos. Mais um reflexo do nosso elitismo cultural.

E é a oralidade e a informalidade da entrevista exatamente que permite abranger um público mais amplo. As pessoas normalmente falam sobre os assuntos com uma linguagem mais clara, permitindo que mesmo leigos os compreendam. A entrevista é, por sua própria natureza, uma abertura ao diálogo. Além disso, numa entrevista, as pessoas se dispõem a falar sobre temas ou teorias que estão ainda em aberto, correm riscos que talvez não aceitassem num ensaio ou tese. E há uma abertura para se conhecer sobre a personalidade da pessoa, a sua história, o seu humor, e não apenas as suas ideias. Assim, considero a entrevista um veículo privilegiado de troca e difusão de conteúdo.

E tem outro fator, que acaba sendo um ganho a mais: fazendo todas essas entrevistas, você acaba tendo a chance de privar de pessoas maravilhosas, para depois poder publicizar o resultado do encontro. Conhecer essas pessoas, estar com elas durante toda a preparação das entrevistas, jogar conversa fora, tomar uma cerveja depois, ficar amigo: isso é muito melhor do que a frieza profissional de um texto pedido e recebido por e-mail.

A Azougue acaba de lançar uma caixa intitulada POESIA.br, uma antologia de literatura brasileira que vai dos cantos ameríndios aos dias de hoje. Com um total de 10 livros, mais de 150 autores reunidos e uma média de 1500 páginas. Esse é não só mais um projeto ousado, como é uma compilação importantíssima para leitores e pesquisadores conhecerem e discutirem as diversas expressões da nossa literatura. Como foi pensar essa antologia, desenvolver o projeto gráfico, fazer a seleção dos autores / poemas e materializar esse trabalho na forma dessa caixa? Comenta essa odisséia.

A caixa Poesia.br fazia parte originalmente de um projeto maior, com o mesmo nome, que me foi encomendado pela Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (SPC) em 2010. Eu já estava trabalhando com eles no projeto de revistas culturais, e o José Luiz Herencia, que era o responsável pela SPC na época do Ministro Juca Ferreira, me chamou para conversar. Ele disse que o Ministério estava muito preocupado com a falta de políticas culturais na área da poesia, que em oito anos de governo Lula, e dos Ministros Gilberto Gil e Juca, nada havia sido feito nessa área. E que isso era muito consequência da ausência de demandas de projetos da sociedade, mas agora era último ano do governo e eles não podiam mais esperar. Então eles tinham algum recurso para disponibilizar para a poesia, e solicitaram que eu elaborasse um projeto. Gostavam do meu trabalho na Azougue, e acreditavam que eu poderia fazer algo interessante na área.

Aquilo era um grande desafio. O recurso era alto, algo em torno de 1,5 milhão de reais. Fiquei algumas noites sem dormir, pensando no que fazer, e então liguei para o Herencia. Disse que aceitava fazer o projeto, desde que não fosse nada ligado a bolsas para escritores ou incentivos para publicação de livros. E expliquei: acreditava (e continuo acreditando) que não faltam livros de poesia sendo publicados. A questão está na difusão e no debate em torno desses livros, e do que é poesia hoje. E o dinheiro mal aplicado poderia mais engessar a poesia num estado que considero inadequado (muita produção, pouca troca) do que criar novos campos de ação. Herencia disse que era por isso mesmo que havia me chamado, e não alguém interno do MinC – para fazer algo inovador. E que eu fosse em frente.

Então, elaborei um projeto que contemplava uma série de ações discutindo as fronteiras da poesia hoje, criando diálogos com as outras áreas da cultura: performance, artes visuais, música, cultura digital, culturas ameríndias, entre outras. E também criei duas ações: um festival de poesia e uma cartografia da poesia brasileira, que seria disponibilizada num portal de internet, com entrevistas, poemas, textos críticos e outras ferramentas. A cartografia teria curadores descentralizados, e resultaria em mais de 150 entrevistas
com poetas brasileiros, em audiovisual, além de 150 videoclipes de poesia, que seriam disponibilizados no portal e em canais de TV. O projeto foi aprovado, publicado no Diário Oficial da União, e eu comecei a trabalhar na pesquisa da cartografia. Os poetas contemporâneos seriam escolhidos por curadores selecionados, mas os mais antigos seria eu que traria para o portal, então comecei a solicitar os direitos autorais e a selecionar os poemas.

Com a mudança de governo, o novo ministério decidiu que poesia não era mais uma área de interesse, e decidiu cancelar o projeto. O Ministério da Ana de Holanda, no governo Dilma, foi o maior apagão da cultura desde o Collor de Mello. Lutei muito pela permanência do projeto, mas não consegui. Quando o cancelamento se consolidou, em 2012, sem que nenhum recurso tivesse sido desembolsado pelo Ministério, eu já estava com uma série de poetas importantes autorizados para publicação no projeto, e comecei a pensar o que fazer. Não queria colocar tudo a perder, até por uma questão de honra. Como assim poesia não interessa? Decidi seguir em frente, por conta própria, e criar um produto que mostrasse a importância da poesia brasileira. E o portal foi transformado numa caixa de livros, denominada Poesia.br.

Isso trouxe uma série de desafios, como a organização dos livros. Se o portal poderia ser acessado por diferentes tópicos, a caixa precisaria de uma organização linear. A cronológica era, de todas as formas, a melhor. E também aumentou a responsabilidade sobre as minhas decisões: se antes as minhas escolhas eram apenas os primeiros autores, para um portal que seria aberto posteriormente para colaboração pública, agora a curadoria era definitiva.

Mas decidi seguir em frente, e fiz a caixa em 10 volumes, divididos por diferentes momentos da poesia brasileira. Comecei pelos cantos ameríndios, volume que abre e fecha a caixa, em tempo cíclico, já que essas etnias estavam aqui antes, mas ainda são nossas contemporâneas, assim como as suas poéticas falam muito dos desafios da poesia atual, como o esboroamento das fronteiras entre as artes, unindo palavra com canto, dança, performance e outras formas de expressão. E segui pela poesia colonial, romantismo e pós-romantismo, modernismo e pelas décadas do século XX, a partir dos anos 1940, chegando até ao século XXI. Para cada volume, busquei fazer textos introdutórios bastante explicativos, trazendo o máximo de documentos possíveis para a compreensão da poesia daquele momento.

Foi um grande desafio, e também um grande prazer fazer essas antologias. É claro que há ausências, algumas muito sentidas, mas ter conseguido publicar as antologias contra todas as dificuldades e sem nenhum apoio foi certamente uma grande vitória. Seguindo a discussão sobre a POESIA.br, fale sobre o primeiro volume da antologia “Os cantos Ameríndios”. Pois as produções das populações indígenas sempre foram excluídas da “Cultura do Brasil”, a não ser quando aparecem como elemento exótico, ou revestido em discurso pra turista ver. Porque, de fato, o que assistimos e lemos todos os dias é um desrespeito aos indígenas e à sua cultura.

Recentemente, entrevistei a Lucia Sá, autora do maravilhoso livro “Literaturas da floresta”. Ela foi precisa ao definir o problema em torno da cultura ameríndia: “Existe uma questão bastante espinhosa que permeia o tema indígena, que é a questão da terra. No momento em que você começa a respeitar o índio, a respeitar a cultura indígena, começa a dar valor para a cultura indígena de uma forma geral, você está a um passo muito pequeno de reconhecer os direitos dos índios a terra. E esta é uma questão muito complicada no Brasil”. Atualmente, estamos vivendo uma luta importante, e que precisa ser mais difundida: todo o movimento das últimas décadas em relação às etnias indígenas no Brasil foi de mandá-las para cada vez mais longe, para terras mais afastadas. E hoje se descobriu que elas estão sobre grandes tesouros. Não há praticamente mais rios sem hidroelétricas no sul e no nordeste do país, e tem muito a minerar nessas terras que hoje são as reservas indígenas. Então, o governo está tentando tirar dos índios todas as árduas conquistas da Constituição de 1988, para tentar pegar essas terras de volta. É o que estamos vendo em Belo Monte e companhia.

Ao mesmo tempo, nas últimas décadas, tem crescido a atenção em relação às culturas indígenas, e se criado interessantes diálogos e pontes com elas, não apenas na literatura, mas no cinema, na música, no teatro e em outras áreas. Esses diálogos são, como pode ser visto na afirmação de Lucia Sá, importantíssimos politicamente. A luta também é aqui.

Mas não só: como coloco na introdução do volume, lembrando Ezra Pound, se confrontar com a belíssima estranheza dessas culturas permite uma abertura para outras possibilidades de expressão que permite reinvenções da nossa própria cultura. Isso também é muito importante.

Quando fiz o volume dos cantos ameríndios, fiz pensando nessas duas posições, e também em outro ponto: em tratá-los como iguais. Em todos os sentidos. A ideia da caixa é de aproximação com o leitor, e acredito que é possível ler um poema marubo ou araweté assim como se lê um poema de Gregório de Mattos ou Drummond: com as estranhezas e familiaridades que isso nos traz. São poemas. Não busquei grandes contextualizações, notas de rodapés, explicações, como são os volumes normalmente dedicados a esses poemas, e fiz isso por esse motivo explícito de igualdade.

Os resultados tem sido ótimos: poetas estão lendo os cantos em performances públicas, com grande beleza, músicos tem realizado composições em cima desses textos. Ou seja, diálogos estão se criando. Isso tudo é muito importante, e espero que só cresça as pontes entre as culturas ameríndias e as nossas culturas contemporâneas. Ambas precisam dessa troca.

Que relações, envolvendo literatura e vida, você constrói com os beat americanos, com os poetas “marginais” dos anos 1970 e com os surrealistas de São Paulo?

Existem diversos pontos em comum. O primeiro deles é que surgiram com atuações contundentes em períodos políticos sombrios: os beat norte-americanos em pleno macartismo, na caça às bruxas dos anos 1950, os surrealistas de São Paulo e os poetas marginais na ditadura militar brasileira. E tiveram uma atuação importante não apenas na renovação de linguagem, mas na ruptura de padrões comportamentais
da época. A expansão de consciência através de alucinógenos, a sexualidade livre, a exploração de novos padrões de convivência, a consciência ecológica marcaram a vida e obra de todos eles.

Mas existe outro ponto, que eu considero especialmente relevante sobre esse assunto. Na maioria das vezes, são poetas vitais no melhor sentido da palavra. Solares. Experimentaram, tanto no campo criativo quanto existencial, correram todos os riscos, sem terem se autodestruído. É claro que nem todos sobreviveram, e não poderia ser diferente. Jack Kerouac, Neal Cassady, Torquato Neto, Guilherme Mandaro, Ana Cristina César, Paulo Leminski, grandes nomes sucumbiram no caminho. Mas ainda são poucos, considerando a quantidade de riscos que correram. E isso é fascinante, porque há ainda um olhar moralista que nos diz que se vamos experimentar, correr riscos, é para morrer aos 27 anos. Mas a biografia mostra a grande maioria deles passando dos 70 anos de idade, ainda lúcidos e alucinados, potentes e dilacerantes.

Essa subversão total, de dizer que é possível criar novas formas de viver e se expressar sem se destruir, une todos eles. Como diz o belo verso de Allen Ginsberg, é a “profecia sem morte como consequência”.

Durante muito tempo, houve uma rivalidade poética entre Rio e São Paulo. E talvez a maior parte dos poetas que tu publicou é desses dois Estados. Existe uma poética carioca? E paulista? Que diferenças tu percebe entre as duas? Pra ti, em que medida um regionalismo poético pode ser verdadeiro?

Poesia é vida, e se contamina de lugares, de experiências, de rua. Então, um poeta paraense com dicção paulista sempre me parecerá falso. Sempre me parecerá poeta de gabinete. E com falta de curiosidade com o mundo que o cerca. Ao mesmo tempo, vivemos no mundo da internet e da informação imediata, e ninguém está isolado numa província. Mas essa é uma questão que já foi resolvida não apenas pela antropofagia, mas também pela parabolicamará de Gil e pelos caranguejos com cérebro do Mangue Beat. A questão agora é que podemos viver num mundo pós-rancor. Não o pós-rancor da ausência de reflexão crítica, como apregoado por alguns, mas o da livre circulação de ideias por diferentes territórios, sem a fricção que causava atritos. Assim, rivalidades como a de Rio-SP não fazem mais sentido. Elas existiam entre os poetas menos interessantes desses lugares, aliás. Roberto Piva e Chacal se amavam, por exemplo, havia total sintonia entre eles. Assim como o modernismo abrangeu poetas das duas cidades. O sectarismo, a tentativa de criação de identidades estanques, é que criou esse falso conflito.

Sabemos que o cenário literário brasileiro é repleto de poetas, e de bons poetas. Pra quem esses poetas estão escrevendo?

Essa é uma questão em aberto, que o os poetas precisam responder. No ano passado, apenas uma empresa de self-publishing publicou mais de dois mil títulos de poesia brasileira. Alguém leu? Se pensarmos isso, levando em conta que uma pesquisa recente aponta que entre os gêneros literários a poesia é o mais admirado pelos jovens brasileiros, podemos perceber que há algo errado. E não adianta colocar a culpa apenas na educação, como já se tentou fazer. Os poetas também precisam entender sua responsabilidade nesse processo de esvaziamento de importância da poesia no mundo contemporâneo. Um ponto a sempre ser levado em consideração é que a poesia é uma mídia, e não um fim em si. Ela pressupõe um diálogo com o leitor, uma interlocução. E isso não se limita apenas nas pesquisas formais, em buscar linguagens que dialoguem com o mundo de hoje. Significa também sair na rua, transitar, dialogar com as outras artes, estar no mundo. Não adianta apenas publicar um livro, ou escrever um blog, e achar que está tudo pronto. É preciso trabalhar sua obra como se trabalha qualquer produto cultural, divulgar, ir atrás do público, achar formas de seduzi-lo. É importante, também, pensar que por muito tempo os poetas tiveram uma atuação central na cultura brasileira, e isso se perdeu. Para ficar só no século XX, podemos pensar em Mário de Andrade e sua importância para as artes visuais e a música, em Vinicius de Moraes e a bossa nova, em Ferreira Gullar e o neoconcretismo, em Torquato Neto e Capinam e a Tropicália, em Waly Salomão e a música dos anos 1970, em Bernardo Vilhena e Chacal e o rock dos anos 1980. Todos eles atuando não apenas como criadores, mas como articuladores de movimentos culturais. Onde estão os poetas hoje? A qualidade textual da obra dos jovens poetas brasileiros é inegável, mas isso não é tudo. Então, não é apenas uma questão apenas de escrever e ler – é de viver, trocar, dialogar. Se sujar de vida, fazer a roda do mundo girar.

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