Palavras por um Triz: conversando com Rachel Ventura Rabello

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por Maria Vieira e Aristides Oliveira

Cariopiauiense. Com uma certa pretensão, atrevo-me a criar este adjetivo para apresentar a protagonista desta entrevista. Porque há algo em comum entre estas duas palavras que formam esta parassíntese. O calor. E calor, aparentemente, é o que sai das mãos de Rachel Ventura Rabello.

Carioca de nascença, a professora e poeta Rachel veio para Teresina diante de uma mudança necessária. Aos 30 anos, ela já tem dois livros de poesia publicados, “Em Mãos” e está lançando “Triz”. Ela conversou com a gente para falar desta nova fase de produção poética. E é entre poemas que falam sobre amor, feminino, morte, solidão, família e misticismo, que encontramos muita vida, muito calor, na forte escrita de Rachel. (Texto: Maria Vieira)

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Como você poderia nos descrever o processo criativo de “Triz”? Que percursos foram traçados para chegar ao trabalho final?

Ao concluir o mestrado, em março de 2019, decidi começar a escrever meu segundo livro. Era preciso encontrar um tema, eu não queria que o livro fosse uma coletânea de poemas sem ligação entre si. Nessa busca, vasculhei minha “gaveta” e encontrei o poema “Triz”. Investigando o significado da palavra, decidi que o livro seria todo em torno desse campo semântico.

Falando assim, pode parecer que o processo foi duro, puramente racional, mas não foi. Escrevia distraidamente, depois verificava se condizia com o tema e só então incluía o poema no livro. Tudo fluiu muito naturalmente, talvez porque eu mesma estivesse imersa nessa atmosfera da palavra Triz.

Organizei o livro em duas partes, embora não tenha marcado explicitamente essa divisão. A primeira se relaciona mais com o primeiro significado da palavra Triz (“quase nada, pequena diferença; átimo”). Inclui poemas que abordam o ínfimo, a relação da passagem do tempo e do instante. O eu lírico está sozinho, confrontando-se consigo mesmo (o eu do passado ou do futuro).

A segunda parte se liga ao segundo significado da palavra (“por um fio, por uma linha”), incluindo poemas que exploram essa imagem do perigo e também de um fio, uma linha invisível que separa a hesitação e a entrega. O eu lírico já não está só, com ele mesmo, mas confronta-se com um outro.

Esse momento de organização do livro, de seleção e ordenação dos poemas, é um momento crucial. É quando reúno tudo o que produzi, faço uma revisão e separo o joio do trigo, além de pensar numa certa narrativa por trás da ordem dos poemas. Depois, peço que algumas pessoas leiam e faço ajustes de acordo com o retorno delas (quando concordo, é claro).

“Triz” é o seu segundo livro. O primeiro se chama “Em Mãos”. Existe algo por trás de títulos tão sucintos? Por que Triz?

Tanto “Em mãos” quanto “Triz” são títulos de poemas que julguei condensarem em si o eixo temático primordial dos livros. “Em mãos” é uma coletânea de poemas escritos entre 2009 e 2014 e que, por seu teor intimista, organizei como se fosse uma correspondência extraviada e – no entanto – recebida em mãos.

Triz, como expliquei acima, é a palavra que motivou todos os poemas do meu segundo livro, por isso a coloquei no título também. Sou sucinta por natureza, busco a precisão, a exatidão em cada palavra e verso que escrevo, quero dizer o máximo com o mínimo. Talvez por isso a escolha de títulos tão sucintos.

Ao ler os seus dois livros, a gente consegue perceber uma grande diferença na linguagem poética. Uma delas é a maturidade com a qual você aborda algumas temáticas, como o amor e o feminino. Essa mudança vai seguir do “Triz” em diante?

Publiquei meu primeiro livro aos 24 anos de idade, os poemas que o compõem foram escritos entre os meus 17 e 23 anos. O segundo livro foi publicado aos 29, com poemas escritos, em sua maioria, um ano antes…  Então penso que o amadurecimento foi algo natural, orgânico. Certamente meu próximo livro será mais maduro que os anteriores. Acredito – e espero – que isso se repita por toda a minha vida artística.

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“Triz” foi lançado durante a pandemia ainda no ano de 2020. Por conta disso, você recebeu muitas colaborações de amigos e artistas se utilizando de outras mídias, como o audiovisual, visando ajudar na divulgação. Como foi receber esses materiais de diferentes lugares do Brasil. Você pensa em publicar um livro multimídia?

A ideia dos videopoemas surgiu em um coletivo artístico (Trilith coletivo) que integro com duas amigas, as atrizes Ilana Villar e Michelly Barros. Juntas, concebemos uma série de três vídeos baseados em poemas do Triz, para divulgar o lançamento do livro.

Na live de lançamento, comentei que adoraria receber outros vídeos, feitos por outras pessoas, e alguns amigos enviaram, inclusive um grupo de leitura dramatizada, o “Leitura em cena”, e a Maria Vieira (amiga, professora, escritora, fotógrafa e colaboradora nessa entrevista).

Foi – tem sido – uma experiência incrível. Cada leitor/intérprete emprega a sua interpretação pessoal e é um privilégio para mim, como autora, ter acesso a essas interpretações. A Literatura é uma arte muito solitária para quem a produz, o retorno é lento, escasso, por vezes superficial (embora esteja sendo bem mais profícuo com o “Triz”). Portanto, é muito gratificante ver assim tão concretamente como os leitores receberam o que escrevi. Mas não, não penso em publicar um livro multimídia.

Como está fazendo para seu livro circular entre os leitores/as numa fase que estamos impedidos de nos aglomerar em eventos literários?

Tenho procurado divulgar o livro em minhas redes sociais, publicando alguns poemas online. A circulação de um livro de poesia é limitada mesmo em tempos “normais”, em que há eventos literários.

Mesmo nesses eventos, é preciso conhecer os organizadores para que você seja chamado para uma roda de conversa ou palestra. Só participando de algo assim é possível despertar o interesse do público, do contrário, o seu livro é só mais um numa mesa de livros… Hoje em dia (e será que não foi sempre assim?), o escritor precisa estar o tempo todo estabelecendo contatos, se autopromovendo, algo que pra mim ainda é difícil…


Que rastros “Triz” deixou em você, após o livro ganhar o leitor/leitora?

“Triz” ainda está em mim. Ao escrevê-lo, cruzei a linha invisível que separa a hesitação e a entrega. Foi um mergulho necessário – e irremediável… Esse livro tem tido um retorno bem maior que o primeiro e isso me alegra – e me espanta, porque nunca escrevi nada tão íntimo e com o qual, no entanto, tanta gente se identificou. Acho que é o que a minha amiga, a poeta e atriz Brenda Lua, me disse certa vez: “quanto mais pessoal, mais universal”.

Arquivo pessoal.

Olhar para o passado e colocá-lo diante do espelho não é um exercício perigoso? Mas seguir em frente sem olhar pra trás pode nos levar ao abismo… Como Triz investiga essas conexões temporais?

“Triz” é um exercício perigoso, do início ao fim. Investiga o risco da perda da identidade. Uma das faces desse risco é a passagem do tempo. Sim, seguir em frente sem olhar para trás pode nos levar ao abismo, mas fazê-lo olhando pra trás também pode nos levar a isso, ao abismo entre o que fomos e o que nos tornamos… “Triz” investiga esse aspecto da passagem do tempo e também o estar presente no agora. A dificuldade de se definir como um eu quando estamos sempre em devir…


“Aquela” nos deixa numa zona de escuridão e fluxo para o indefinido. Às vezes desaparecemos e voltamos, sem nos darmos conta. Comente sobre os borrões que nos trazem a condição de mistério e medo nessa narrativa.

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Seguir adiante, mudar, implica desaparecer, passar uma borracha no passado, no que fomos – e não conseguir apagar. Resta sempre um borrão, uma sombra, um fantasma do que fomos. Isso faz pensar que é impossível começar do zero… Mas acho que esse poema fala tanto dessa impossibilidade quanto do seu revés, a possibilidade de conseguir começar do zero, apagar tudo o que fomos antes. Ambas são apavorantes. É como uma frase que ouvi certa vez “quando os deuses querem nos castigar, eles nos dão o que desejamos”.


“Não é preciso” joga entre a necessidade da calmaria e o viver intensamente. Daí te lanço a pergunta que você nos coloca pra gente pensar: viver pelo último gole ou contemplar o infinito? Não seria um causa e efeito do outro?

Ainda não tenho resposta para essa pergunta. Convivo com ela, diariamente… Quem sabe a pergunta não é mais interessante do que a resposta?

Sim, acho que viver intensamente, pelo último gole, pode nos levar a uma contemplação do infinito, o infinito do instante. Assim como viver de modo mais sereno, contemplativo, pode nos levar a uma compreensão de que cada instante, mesmo o mais calmo e limpo, é intenso, é imenso… Tudo é o equilíbrio? Resposta clichê, mas talvez os clichês sejam clichês por serem verdadeiros…


Você é filha do violonista Raphael Rabello. Como era a relação entre você e seu pai e como isso influencia a sua produção poética?

A minha relação com meu pai é de ausência-presença, pois ele morreu quando eu tinha 4 anos de idade. Mas essa ausência é apenas física: sei que ele me amou muito e esse amor é para mim como um manto protetor – eu sinto e sempre senti esse amor.

Ele morreu aos 32 anos, teve pouco tempo e muita coisa para realizar. Acho que essa pressa, essa fé, essa garra com que ele galgou seu caminho artístico foi o que me fez publicar dois livros antes dos 30 anos.

Para mim, ele é um exemplo concreto daqueles versos de Torquato “só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder”.  Além disso, a minha poesia tem uma relação profunda com a música. E isso é influência dele, não tenho dúvida. É herança genética e espiritual: a literatura veio da minha mãe, a música veio dele. A poesia é como a literatura e a música se manifestaram em mim.


Quando o seu pai morreu, você era muito nova, uma criança ainda. A partir disso, sua convivência foi com a sua mãe, irmã e tias. De que forma essas relações femininas se apresentam na sua poesia?

Quando meu pai morreu, eu, minha mãe e minha irmã fomos morar com a minha avó materna, que morava muito perto da minha tia, irmã da minha mãe. A convivência com elas foi fundamental para que eu me interessasse por literatura.

Minha mãe lia muito e nós dividíamos um quarto, então eu tinha acesso aos livros dela e aos livros infantis, eles ficavam juntos na mesma estante e eu os abria com o mesmo interesse. A minha tia cantava o tempo todo, foi na voz dela que conheci as canções de Vinícius de Moraes, Milton Nascimento, Chico Buarque…e entendi que letra de música é poesia.

Minha irmã gostava de ler e escrever, tinha um diário que eu lia sem pudor… Cada cartão de aniversário escrito pela minha avó era um poema em prosa. Convivendo com elas, diria que experimentei principalmente os modos de sentir femininos. E isso certamente resvala na minha poesia.

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Entre os escritos que acompanhamos e nos levam ao teu mundo, que influências podem ser mencionadas na construção estética de “Triz”?

Acredito que todos os livros que me marcaram influenciaram a construção estética de Triz. Mas vejo como influências mais presentes (em ordem alfabética) Cecília Meireles, Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Hilda Hilst, Manoel de Barros, Samuel Beckett e Wislawa Szymborska.


Indica pra gente livros de mulheres que marcaram sua formação artística. Por que ler essas referências nos dias de hoje?

Tentando responder à pergunta, me fiz outra: por que não ler essas referências? Eu as li porque tive acesso a elas e me identifiquei, não foi um esforço, não li como parte de um programa de formação, mas como um prazer.

Então acho que é válido ler essas referências hoje – e em qualquer tempo. Citarei, em ordem alfabética, as autoras que me marcaram e que li antes de publicar o meu primeiro livro – e às quais retorno sempre. Acredito que a formação artística esteja sempre em construção, então poderia citar outras…

Cecília Meireles – Viagem/Vaga música.

Clarice Lispector – Água viva.

Elisa Lucinda – O semelhante.

Florbela Espanca – Sonetos.

Hilda Hilst – Exercícios.

Wislawa Szymborska – poesia completa.


Que desafios você enfrenta na condição de escritora num país que pouco lê e sobre a recepção do mercado editorial quando se trata de uma escritora.

Ser escritora num país que pouco lê… Mesmo que estivesse em um país com muitos leitores, será que esses leitores seriam de poesia? Acho que o público de poesia é restrito em qualquer país, não é todo mundo que gosta. Não é o que vende, seja por motivos econômicos ou sociais, seja por motivos íntimos, individuais, se é que existem…

Não sei se tem a ver com isso, mas, como escritora branca, nascida e criada na zona sul carioca, não encontrei dificuldade para publicar meus livros. Já para distribuí-los, sim.

No entanto, não acho que isso tenha a ver com o fato de ser mulher, mas com as restrições da poesia. Trabalhei em livrarias no Rio e sei que poesia vende pouco. Quando vende, são os autores ou autoras canônicos. Dificilmente alguém compra um livro de poesia de um autor desconhecido, seja homem ou mulher.

Eu mesma, que sou escritora e leitora de poesia, raramente faço isso, preciso ter ao menos ouvido falar no autor.

Acho que é muito difícil ser escritor no Brasil – talvez em qualquer país –, viver somente da escrita. A Clarice disse numa entrevista que não era escritora profissional, porque só escrevia quando queria.

Acho que eu sou assim também, prefiro ser assim. Não quero transformar aquilo que amo em trabalho, não no sentido convencional do termo. Pela minha experiência, ter um compromisso de escrever sobre algo que não parte sinceramente de mim, ser obrigada a escrever, mesmo quando não tenho vontade, assunto ou identificação com um projeto, é muito ruim. Então procuro ser verdadeira com o que eu desejo, me respeitar. Se eu ficar pensando na Literatura, no público, no mercado, na recepção, a escrita fica artificial. Procuro escrever algo que eu gostaria de ler – o resto é consequência.


Você é carioca, mas mora em Teresina há três anos. Você acha que isso, sua nova casa, vai se refletir nos poemas que virá a escrever?

Acho que isso já se refletiu nos poemas do “Triz” (os poemas “mar” e “redemoinho”, por exemplo, tiveram como imagem motivadora o mar de Barra Grande, não o mar de Copacabana) e certamente continuará se refletindo em poemas futuros. Mas, pelo menos por enquanto, a minha poesia não trata tanto do que está ao redor de mim, mas no meu interior, que, claro, é afetado pelo exterior. Por isso, não espero ver as paisagens ou figuras piauienses na minha poesia. A influência do Piauí se mostrará de forma mais sutil, eu acho.


Existe já um terceiro livro a caminho? Como anda a sua produção poética?

Sim, estou trabalhando num livro infanto-juvenil que vai misturar prosa e poesia, mas, por enquanto, prefiro manter os demais detalhes em segredo. Estou muito no começo, o plano é que o livro saia ano que vem (2022).

Além do livro, tenho escrito poemas com amigos, a gente elege um tema e escreve, como exercício. É preciso estar sempre escrevendo. Eu sempre soube disso, mas só agora estou conseguindo realizar na prática. E é muito gratificante.

Para comprar o livro entre em contato com a escritora: @poesiadarachel

Sites para compra:

Editora Penalux

https://www.editorapenalux.com.br/loja/triz

Crédito da imagem de abertura: Maria Vieira



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