POÉTICAS MARGINAIS PERIFÉRICAS & O RAP DE YANNICK HARA

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por Patrícia Marcondes de Barros

Professora e pesquisadora nas áreas de História (UNESP) e Literatura Marginal (UEL)

Em meio aos escombros do século XXI, entre o ritmo e a poesia, caldeada pela sempre crítica realidade brasileira, dando voz aos que estão à margem da sociedade, encontra-se o rapper Yannick Hara, o chamado “afro-samurai”(nome que é o título do seu primeiro EP inspirado num mangá, lançado em 2016), que nos revela nesta entrevista a potência das margens contemporâneas.  

“Caçador de Andróides”

SOU O CAÇADOR DE ANDROIDES/SOU UM BLADE RUNNER (NEGO)/SOU O CAÇADOR DE ANDRÓIDES/SOU UM BLADE RUNNER/DO LIVRO, AO FILME, O CONCEITO AO CONTEXTO, EU, TRADUZO NAS LINHAS/DOS ANOS 80, A DOIS MIL E DEZENOVE, QUEBRO PARADIGMAS (NEGO)/É A CÓPIA DA CÓPIA/RÉPLICA DA RÉPLICA/ANDROIDES QUE SONHAM, VOIGHT KAMPFT É O TESTE/TESTO NOVAS FÓRMULAS, PRESTO A SUPERNOVA, OLHA, EU VEJO E CREIO, ESCREVO E DESCREVO COM PALAVRAS SOLTAS, POUCAS/ASTIO NOVAS FLÂMULAS, MEÇO NOVAS TROVAS. BORA, RELEIO, NORTEIO ME BASEIO COM PALAVRAS OUTRAS, NOUTRAS/A RÉPLICA DA RÉPLICA/A CÓPIA DA CÓPIA/POR QUE VOCÊ FEZ ISSO PRA MIM? POR QUE VOCÊ FEZ ISSO PRA TI? QUESTÕES E MAIS QUESTÕES SÃO QUESTIONADAS SEM QUALQUER QUESTÃO DE SEREM RESPONDIDAS/RESPOSTAS E MAIS RESPOSTAS SÃO RESPONDIDAS SEM QUAISQUER PERGUNTAS A SEREM PERGUNTADAS…

(Blade Runner, 2019,com participação de Rafael Carnevalli)

Yannick, percebo na sua arte como um todo, elementos orientais e ocidentais originados da sua ancestralidade, a construção da ideia do “Afro Samurai”. Conte-nos sobre seu trajeto pessoal, a formação da identidade que atravessa a sua produção artística. 

Tudo começou por uma busca por identidade, infelizmente eu sofri por muitos anos de personalidade fragmentada, eu busquei ser tanta coisa que me perdi e já não sabia mais quem eu era. O “Também Conhecido Como Afro Samurai” (2016) me levou a entender quem eu sou, precisei mergulhar fundo dentro de mim, ir até a essência e consegui ver no personagem deste mangá e anime a origem de tudo, a união de duas culturas de povos originários. Assim pude demonstrar não só pro rap, mas para mim mesmo quem realmente é o Yannick Hara, um filho de pai negro e mãe japonesa, filho da quebra de paradigmas, o filho da revolução.

Percebo que sua poética é uma bricolagem do mundo contemporâneo, dentro do universo ciberpunk com as mais diferentes linguagens desde mangás,  filmes de ficção, punk até a poesia performática, o teatro, entre outras. A sua identidade artística se reflete em uma estética futurista, urbana e híbrida. Como foi a entrada neste universo, desde que se lançou no rap em 2010 pela internet? 

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De 2010 até 2016 eu estava intoxicado de toda uma narrativa e estética de arte destrutiva que fragmentou minha personalidade, eu era algo que eu não sou, era um personagem que eu mesmo criei para ser aceito. Após 2016 busquei resolver pendências pessoais através da arte, as três obras são ideias antigas que procrastinei, eu ainda estou no começo de algo extremamente grandioso pra mim. Ter resolvido essas pendências emocionais, psicológicas e psíquicas através da música me permitiu ser vanguarda de algo imensamente atemporal. Hoje sem nenhuma arrogância ou prepotência eu acolho e aceito isso, ter feito muito com tão pouco e ao mesmo tempo ter feito pouco e perceber que ainda falta muito, me mostra que eu ainda estou no começo de uma gigantesca jornada, que como você mesmo descreveu na pergunta passa por muitos universos.

Para fazer seu disco Caçador de Androides (2019) você se inspirou no escritor Philip K. Dick em Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas (1968) e sua adaptação no cinema com o filme Blade Runner (1982)de Ridley Scott. Conte-nos sobre a produção deste disco e as parcerias artísticas realizadas.

Fiz esse disco por influência do meu pai e meu irmão, ambos me mostraram esse universo da ficção científica que quando fui escrever o disco acabei conhecendo mais sobre a cultura cyberpunk, a cultura da alta tecnologia e baixa qualidade de vida. Primeiro veio a trilha sonora de Vangelis, em seguida o filme Blade Runner (1982) o livro de PKD apareceu depois quando precisei me aprofundar mais no assunto. Sobre as participações no disco, todas elas vieram de referências musicais que senti que caberiam nessa estética, o punk, o hardcore, o trap, a música eletrônica. Aproveitei tudo àquilo que me inspirou como música na infância para experimentar. O Caçador de Androides terá uma sequência, o disco número 2 está pronto e terá como sonoridade o EBM industrial e contará com uma participação especial incrível a do vocalista X da banda Câmbio Negro, uma das primeiras bandas de rap/rock oriunda do bairro da Ceilândia em Brasília/DF.

Em Caçador de Andróides você estabelece a dialogia entre os problemas do mundo contemporâneo que envolvem a tecnologização com a desumanização crescente propiciada pelo sistema vigente, além dos temas sociais e políticos abordados em todas as suas músicas, como em O Sangue das Massas, o Cenário de Guerra, entre outros. Como é a recepção dessas músicas, tendo em vista o momento político brasileiro em que foi produzida?

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Sinceramente, hoje eu não me importo como as pessoas vão receber tudo isso. Entendo que trabalhamos com uma arte que incomoda muito, que dói até de ouvir. O acolhimento, eu realmente deixo e entrego para as pessoas se identificarem se assim o quiserem. Eu me libertei dessa necessidade de ser ouvido, de ser aceito, eu faço música hoje pra ter sanidade nesse mundo, é minha terapia, é meu tratamento, minha cura, é o que me traz paz. Claro, quando recebo um retorno sobre o trabalho eu fico grato, mas não é isso que me move e em relação ao momento político brasileiro em que foi produzida, sim o ambiente me motivou a dizer o que precisava ser dito na época e que ainda precisa ser falado, infelizmente o Brasil ama estar em transe.

O Brasil é a terra em transe/Em transe em estado incansante/Aqui não existe consciência/O que existe é ignorância/Misturada com fé e ciência/Quantas alecrins, quantas eldorados/Usadas de palco para os mesmos ratos/Canibais triviais procriam em suas relações políticas promíscuas/ Nada vai mudar/Como nunca mudou/A mudança só troca de lado.

O Brasil É A Terra Em Transe, 2022, Yannick Hara.

ACORDE-ME DO TRANSE!

Nos EPs Terra em Transe Vol.1 Brasilis (2020) e Terra em Transe Vol.2 Politiki (2022) vocêestabelece um elo com o Cinema Novo de Glauber Rocha, como se deu este encontro?

Em 2013, na época dos protestos eu conheci o Pedro Paulo Rocha, filho do cineasta Glauber Rocha. Ficamos amigos e na época ele me apresentou ao filme Terra em Transe (1967), fiquei maravilhado com a obra e disse a ele que aquilo era um rap, que tinha ritmo, atitude e poesia. Infelizmente na época não consegui dar início a esse trabalho de misturar rap com o Cinema Novo. Mas foi em 2021, após o falecimento da nossa amiga Marina Veneta, uma grande artista, demos início a esses dois EPs que contam com a produção de CrackPiece, outro grande artista e irmão que conheci através de outra artista, a Dy Fuchs. Então foi no meio de encontros, desencontros, procrastinação, falecimento que nasceram esses dois trabalhos. Trabalhos esses que ainda vão ser absorvidos e que tem um grande objetivo, remover a memória de Glauber Rocha da culturalização da classe média e levar a obra do Terra em Transe para o povo e para o rap.

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Assim como em Glauber, no emblemático filme Terra em Transe (1967), há uma descrença ao sistema político instituído abrangendo todos os espectros ideológicos. Os versos do poeta Mário Faustino que estão no filme de Glauber e em sua música dão o tom desta desesperança: “Não consegui firmar o nobre pacto/Entre o cosmo sangrento e a alma pura/Gladiador defunto, mas intacto/Tanta violência, mas tanta ternura”. Você anuncia uma crise existencial indo além. Como acordar desse “transe” em terras brasilis”?

Sou bem descrente sobre o acordar do “transe” em terras brasilis. Sinceramente, assim como no filme eu não acredito nesse sistema político brasileiro, um sistema promíscuo, volátil, injusto e genocida. Quando eu tenho esperança, sempre acontece em seguida algo que me tira essa mesma esperança, é uma alteração constante não só de humor, mas também de sentimentos. O importante desses 2 EPs é deixar para a posteridade o que realmente acontece no Brasil. E agora estar vinculado ao Terra em Transe será algo eterno, haverá sempre alguém inconformado que irá se conectar com tudo isso.

REVIDE!

Sobre o novo single Revide (2023), conte-nos sobre esta produção, as parcerias artísticas diferenciadas (que são perceptíveis desde suas primeiras produções) e seus projetos futuros.

Revide vem para continuar a estética do cyberpunk, levando a sonoridade do boom bap a essa linguagem da ficção científica através do videoclipe produzido por Gustavo Freoli e com os desenhos de Law Tissot. Revide é sobre revidar todo o mal que assola a psique humana, os dogmas, o sistema e resignificar as linguagens que antes eram ditas como malignas e não são. Revide começa bem dolorosa e depois acaba em esperança, é uma música que antecede o próximo single que lançarei em parceria de Teco Martins (Rancore/Sala Espacial/Luz Ametista), essa canção se chamará Mãe Superior.

Credito da foto: Gustavo Diakov.

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