Nuno Gonçalves nasceu em Recife, mas é cearense. É mestre em história pela UFC, tendo se graduado pela UECE, e doutor em Estudos Latino-americanos pela UNAM. Publicou os livros de poesia Cacos de Cristo, O Sol e a Maldição, Cartas de Navegação, Calabouço de Reticências e o de prosa O Canto das Onças.
A Monja, seus Pés: o Rio e a Pedra
eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva
pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar
aprendi o segredo, o segredo, o segredo da vida
vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar
rauzito
seus pés, não sem dor, enfim abandonam
o chão do monastério
a chuva lhe espera, sem medo e sem roupas
sem dívidas e sem tempo a perder
sem demoras nem muitas lembranças
seus pés, não sem espinhos, dão adeus
ao império da pedra
ao desafeto da terra em eterno estado de espera
estancando em promessa, em calvário,
em cismas prolongadas
seus pés, não sem saudades da língua, se vão
se oferecem em sacrifício à sorte
ao risco de ser em tudo o oposto da morte
de ser luz pura, nirvana, assunção e glória
seus pés, não sem saber, seguem sua própria intuição
em busca de uma pulsação própria
de um sentido vívido
de uma outra tempestade, ritmos ressuscitados
o velho rio em seu leito fica
um e outro ao mesmo tempo
conversando com a pedra
sobre o nada, sobre a morte,
sobre a precária direção dos ventos…
Encruzilhada
duas línguas me sopraram suas verdades. Uma trazia a mensagem dos touros, a outra trazia o código das vespas. Forjei alguns passos nas duas direções até entender quão ridículas eram. Foi então que preparei carinhosamente o despacho, ofereci ao sétimo e decidi tatear o espanto do mundo por conta própria. Em busca de minha própria febre e do amor profundo ao meu permanente desabrigo. Meus olhos viram coisas que minha boca não seria capaz de relatar. Abraçado ao meu rancor, fui sol fui lua fui estrela nos festejos da rainha do mar. A piedade que ainda sinto por aquelas línguas é o único empecilho que resta pra que meu sonho se desfaça em mar, sigo deserto, sigo vomitando naufrágios minerais.
O Prisioneiro da Grade de Palavras
Dar nome certo às coisas incertas da vida é tarefa árdua. Como arar a terra, como destripar um boi, como extrair inteiro o esqueleto de um inseto, a caixa craniana de uma borboleta ou a virgindade encantadora de uma pulga de circo. Ferrão de abelha visto ao microscópio e aquela dúvida sobre se cabe ou não vírgula no desvão onde dormem nossos sonhos mais frágeis, mais delicados, mais sensíveis à luminosidade do astro medonho. Nem falar disso de busca de sotaques e outros ritmos para expressar a contracapa de nossas sombras & nossos quadrinhos & nossos feitiços & a outra palavra capaz de se transformar em grampo feminino e operar sobre o cadeado enferrujado que nos separa da rua lá de fora, do mármore que trouxeram de carrara para construir túmulos para afortunados, afinal de contas, nunca se termina de explicar a música do vento que no ventre sopra.
A Pedra: Signo Segundo
ofegante, asmática,inexata
a Rocha vagueia pelo chão empoeirado
sem reconhecer nenhum dos traços de sua última visita
perambula pelo tempo esse lagarto de pedra
com seu fogo amolado
em busca da pele e seus calendários
faminta como os carneiros e os albatrozes
a Rocha se ergue nas águas turvas do aquário
e o horizonte se converte em um emaranhado de águias
a Rocha retorna à garganta emplumada do equinócio
e lança suas maldições sobre o Sol:
esse bastardo encarnado…
Finis Hombre
nenhum salto é arbitrário no escuro
o avesso da linguagem é a realidade do gato
nenhuma ilha é espelho de outra
toda lágrima é uma metáfora do homem
o suicídio não é um ato retórico
nenhuma história traduz a força do mito
todo estilo é uma potência do instinto
a morte é o silêncio do grito