Rita Hayworth foi a Paris e outras histórias [ou, talvez, pedaços] – André Gonçalves

| |

André Gonçalves, 52, é brasileiro, vivendo hoje na cidade de Teresina/PI. Artista visual, fotógrafo e escritor, um dos editores da revista cultural Revestrés.

Rita Hayworth foi a Paris e outras histórias [ou, talvez, pedaços], é o seu terceiro livro, lançado em março de 2020, às vésperas da suspensão de tudo por conta da pandemia. Além dele, tem Coisas de Amor Largadas na Noite (2008), Pequeno Guia das Mínimas Certezas (2012) e o livro de fotografias Paris (2019). Todos os livros publicados pela editora Quimera, em Teresina. Trabalha no quarto livro, provisoriamente com o título de Belgrado. A previsão de publicação é 2022.

Abaixo, alguns trechos de textos publicados em Rita Hayworth foi a Paris.



rita hayworth ficou sem sono e resolveu ir a paris, porque sua analista lhe disse mais de uma vez que atividades físicas lhe fariam perder um pouco da normalidade e voar ela podia à vontade. então rita hayworth foi dar uma volta e escolheu um cavalo branco de nome eliseu ao invés de caminhar, porque seus pés doíam a cada vez que ela pousava. rita hayworth em seu cavalo branco eliseu desfilava na madrugada, acenando para a plateia que se formou para assistir ao insólito momento, rita hayworth com a mão dentro do casaco segurando o coração que catapumba catapumba parecia querer pular fora do peito. rita hayworth achou lindo o som dos cascos plec plec plec plec mil e novecentos metros para lá e as bandeiras bleu blanc trés trés rouge plec plec plec mil e novecentos metros para cá plec plec plec e no surprises, no surprises. rita hayworth realizava o sonho: vinte e um tiros de canhão e o céu tinha fumaça bleu blanc trés trés rouge, era julho, aniversário de rita hayworth, e todos os generais a esperavam ao lado do triunfo, rita hayworth gritando “comam brioches, comam brioches, brioches, enfants de la patrie”, e o cavalo branco fez uma reverência ao público. uma criança sorriu e disse “que lindo, mamãe, que lindo” e rita hayworth chorou discretamente. com o indicador direito rita hayworth colheu a lágrima que caía e a guardou embaixo do chapéu. “são momentos assim que fazem a vida valer a pena”, pensou.


há um dia no ano em que rita hayworth perde a cabeça. nesse dia ela faz o que mais ama de todo o coração: vai a paris já que, se é para perder a cabeça, que a dita cuja seja perdida onde foi criada a maneira mais rápida de se torná-las perdidas. rita hayworth ainda é muito infantil e essencialmente pura e virtuosa, dizem os que a desconhecem muito bem. talvez por isso viva no eterno desequilíbrio entre sorvetes e brioches, entre saudades e uma revolução interior que a deixa com os pés formigando de tempos em tempos, e é para coçar os pés que ela corre pela grama nos jardins de seu castelo. antes que nos percamos, rita hayworth está pronta para perder a cabeça e veste branco, com a alma trancada no cachot intransponível que carrega para onde vai. rita hayworth enviou email whatsapp sms divulgou no twitter e publicou em sua fan page o dia, a hora e o minuto em que daria sua cabeça por perdida e sorriu, feliz, ao ver todos os amigos familiares conhecidos inimigos estranhos aplaudindo e comendo pipoca, enquanto ela subia os degraus do cadafalso. rita hayworth é um tanto desastrada, e pisa no pé de sua carrasca. moça educada , “perdão, senhora, não fiz de propósito”. são 12:15 no coração de rita hayworth e a lâmina fria do julgamento daquilo que, dizem, se chama povo, cai em seu pescoço. a carrasca segura a cabeça pelos cabelos curtos e a levanta para o delírio da multidão, que canta em uníssono: “morreu rita hayworth, morreu rita hayworth, viva rita hayworth que nunca mais será melhor que nós!”. mal sabem eles que em 16 de outubro do próximo ano rita hayworth voltará para perder a cabeça outra vez. assim será, para sempre.


o coração de rita hayworth anda um tanto acelerado: uma extrassístole levemente alucinada deixa a moça sorrindo pelos cantos. isso ocorre com alguma frequência e nessas horas ela finge que não é com ela, mas desta vez rita hayworth tranca a porta, fecha os olhos, respira fundo e logo já está desembarcando em paris, levando nas mãos apenas o pequeno coração palpitante. hoje rita hayworth está particularmente confiante. ela aponta o coração para o sol, pálido, mas suficiente. o coração de rita hayworth começa a piscar, indicando o caminho a ser seguido. cada passo de rita hayworth faz o coração piscar mais rápido, e um pouco mais, e mais um passo e o coração pisca ainda mais rápido. rita hayworth atravessa toda a paris e causa algum estranhamento. até que a dois passos de pigalle o coração de rita hayworth se acende por inteiro e brilha tão intensamente que ilumina dois quarteirões inteiros da frochot. rita hayworth olha para os lados e o coração parece lhe querer voltar pela boca. a moça vê a casa número 1 e pensa: “o número um de todos os amores desse mundo está aqui”. mais uma vez fecha os olhos e suspira, e assim rita hayworth já está dentro da pequena casa. o coração de rita hayworth, é bom que se saiba, não diferencia x de y, como qualquer coração que se preze deveria fazer. há uma voz que canta, e que paralisa rita hayworth. a voz abraça rita hayworth, que tem agora o coração batendo no ritmo que ela sempre achou o melhor de todos. rita hayworth fica feliz como nunca quando a voz morde delicadamente seu lábio inferior, e ainda mais feliz quando a voz entra suavemente por todos os poros já então completamente livres de qualquer cobertura, e infinitamente feliz quando sente o cheiro da voz e percebe que a voz tem cheiro de grama úmida em manhã de inverno. rita hayworth entende nesse momento todo o sentido da frase que tatuou há nove anos na coxa esquerda: “let the seasons begin, take the big king down”. e dorme, profundamente.


então maria de deus tinha marido e cinco filhos, alfredo e outros dois meninos e duas meninas, alfredo o mais velho. a cada ano nascia uma criança naquela casa, e o que chamava a atenção, claro está que além da evidente virilidade do pai e da fertilidade de maria de deus, era o rigor das datas: todas as crianças, a partir de alfredo, nasciam no mesmo dia, fique claro que no mesmo dia é forma simbólica de o dizer, já que cada uma era de um ano, mas todas nasciam na mesma data, 21 de janeiro. todos os dias 21 de janeiro havia um novo choro de criança naquela casa e havia festa, e havia um pedaço de carne, e havia bebida, e havia música, e havia certeza de que, em 21 de janeiro do próximo ano, haveria mais choro de criança, mais festa, mais um pedaço de carne, mais bebida, mais música. e assim foi por cinco anos, o ano de nascimento de alfredo e os quatro seguintes, onde nasceram, alternadamente, uma menina e um menino, o que fez com que chegássemos ao número de crianças aqui já apontado, cinco, três meninos e duas meninas. dificuldades havia, eram pobres e de pouca instrução e de poucas oportunidades na vida, mas o que não tem remédio remediado está, assim dizem muitos por preguiça ou desengano, e a fé de maria de deus e o trabalho do pai davam conta do mínimo para se viver, sendo que o mínimo, se formos pensar bem, é o suficiente apenas para sobreviver e se tanto, ora se é fato inconteste que a maioria das pessoas mal tem o mínimo para se manter de pé e minimamente asseadas e ainda humanas, é esse verdadeiramente o mal que assola o mundo desde o dia primeiro de todos. assim pensavam maria de deus e o marido, e chegou dezembro e maria de deus já ia com grande barriga, a prenhez arredondando suas formas já em ponto de rebentar, arredondando talvez um exagero, o bucho um grande caroço, assim era sempre, em toda prenhez maria de deus era barriga, pernas e braços e rosto finos, magros, ossudos, parecia que toda a carne do corpo se lhe voltava para dentro para formar a criança, mas isso rapidamente deixava de ser tão logo o rebento ou rebenta gritasse ao mundo, cá estou, claro que bebês não o gritam, mas berram como se o quisessem, então era só dar-se o tal berro ou choro e maria de deus voltava às formas, digamos, originais, nem tão magra, nem tão gorda, uma mulher normal, se diria, mais que isso era quase impossível, já que pela personalidade pudica de maria de deus pouco mais se vira de seu corpo qualquer dia que fosse, a não ser as parteiras, essas mesmo assim apenas duas, e ainda uma morreu logo após o parto do segundo bebê da família, nenhuma ligação de um fato com o outro, morreu de um tiro, a pobre, dizem que crime passional, mas tinha ela setenta e três anos, que diabos. então, ia-se o mês de dezembro e já tudo começava a encaminhar-se para as festividades do nascimento do sexto filho, quando deu-se. um a um, os filhos de maria de deus e do pai foram tomados por uma febre, cada dia um, e ao fim de cinco dias todos sentiam os mesmos sintomas, e deliravam, e suavam, e choravam, e um dia morreu um, noutro dia morreu outra, sempre da criança mais nova para a mais velha, seria alfredo o último, no ritmo em que se ia em menos de uma semana não haveria descendentes de maria de deus e do pai, e ainda maria de deus foi tomada pela febre, e foram vômitos e foram dores, ela chorava sem tempo de se acostumar às sucessivas perdas, diárias, e não se sabia se maria de deus chorava e gritava mais pela dor que sentia dentro ou pela dor que chegava do mundo fora, e maria de deus perdeu o filho ainda não nascido, em verdade uma menina, e maria de deus, agora mãe de filho ainda vivo apenas de alfredo, que já também agonizava em dores, ainda na cama chamou padre muniz, que, como toda a cidade, fazia vigília em volta da casa dos sofridos pais e moribundos filhos, ou moribundo apenas alfredo, os demais já além de moribundos, defuntos filhos. padre muniz prontamente atendeu ao chamado da mais devota paroquiana, mas para quê, imagine-se o susto com o que lhe disse maria de deus, que foi: padre muniz, hoje pela manhã renunciei a deus e pedi ao diabo que acabe com as dores de alfredo, que deus já quase tudo me tirou, só me resta alfredo e ele quer me tirar também meu filho mais velho, então eu renuncio, padre muniz, não sou eu mais devota do divino, quem sabe o serei do demo, pedi ao cramulhão que recupere alfredo, mesmo que me leve, mas ele é tinhoso e não vai me levar, vai curar alfredo e me manter como prova viva de que o de baixo é mais poderoso que o do alto. padre muniz tão chocado ficou que nem pensou em excomunhão, nem em exorcismo, nem em enviar carta ao bispo nem ao papa, apenas ficou ali em frente a maria de deus, ou seria agora maria do cão, e sem ter o que fazer fez apenas o que um cristão faz em momentos em que não se sabe o que fazer ou quando não se tem mais jeito de fazer nada, que é desenhar sobre si mesmo o sinal da cruz e pedir ajuda a deus e nossa senhora e a todos os santos, coisa que, padre muniz pensou, isso sim deveria ter feito maria, até então de deus e sabe-se lá como se chamaria agora.
é impossível no momento entrar em detalhes do tumulto que tal situação causou na pequena cidade, nem nos desdobramentos nas comunidades religiosas local, regional, nacional e mundial, isso pode porém ser imaginado, mas certamente o leitor deverá mesmo querer saber o que sucedeu com alfredo e tudo o mais depois da declaração inesperada de maria, antes, de deus, agora sabe-se lá de quê. deu-se que alfredo ficou curado, que maria ficou curada, que as outras crianças foram sepultadas, que o pai nunca mais desabraçou-se da garrafa e, diz-se, nunca mais foi visto sóbrio, assim como tio bezerra, veja, do nada e sem motivo o tio aparece na história com outro alcoolismo e já dela aqui sai, e então se explica o que teria causado, ao pai, as perdas do indicador e do polegar da mão esquerda, foi com um machado, quando, em uma manhã cheia de sol, tentando arrancar rolha de uma garrafa e não o conseguindo, cismou de fazê-lo com o tal machado, segurando a garrafa pelo gargalo. acontece que abriu-se a garrafa, o pai perdeu dois dedos e no hospital da cidade chegou cambaleante e com os dedos decepados no bolso para esperado reimplante, o que acabou sendo inútil, pois o hospital mal tinha como costurar um talho feito por faca no dedo, quanto mais reimplantá-los após golpe de machado, ainda mais que sendo dois.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!